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Pepo
J. Miguel

Resumo:
Conto infantil

Pepo


     Ursos de pelúcia não costumam ter histórias longas. Mas Pepo tem.
     Normalmente a história de um urso de pelúcia começa em uma fábrica – que pode ser grande, com muitos empregados, ou algo bem artesanal, nas mãos de uma mãe, nos intervalos entre o almoço e o jantar – uma rápida passagem em uma loja de brinquedos ou presentes, uma festa de aniversário, uma ou duas – ou muitas! – noites de sono ao lado de sua dona e o inexorável destino final de todos os brinquedos: lixo.
     A duração de cada período é que pode diferenciar, mas as etapas nunca diferem umas das outras. Com Pepo, não foi assim. Bem... mais ou menos.
     Pepo saiu da fábrica – que não era grande, nem pequena – felpudo, marrom e cheiroso, em uma bela caixa de papelão, toda colorida e uma linda janela panorâmica de plástico, que lhe permitia ver as crianças passando defronte à prateleira onde ficou exposto quase um mês inteiro.
     Dona Clara veio, pegou a caixa com Pepo dentro, que a essa altura era apenas “ursinho”, pediu que embalassem para presente e o levou para a sobrinha que completava seu primeiro aninho de vida.
     Mariana, sentada em meio a seus presentes, olhou aqueles doces olhos de vidro e o abraçou bem apertado. Foi entre aquele instante e o despertar depois da soneca, que Pepo soube que tinha sido batizado. A menina acordou e começou a pedir à mãe:
     - Pê-pô... pê-pô...
     Seus olhinhos encheram dágua, as pessoas vieram, correram, buscaram, traziam de tudo, mas Mariana continuava chorando e pedindo:
     - Pê-pô! Pê-pô...
     Até que alguém lhe deu o ursinho e Marianinha parou de chorar. Se realmente era o ursinho - algumas testemunhas juram que ela queria que lhe trocassem a fralda – não se sabe, mas o importante é que Pepo fôra batizado.
     Foram vários dias de indizível felicidade para ambos, até que Pepo se viu substituído por uma boneca bailarina - mas ganhou um lugar de destaque na prateleira das bonecas.
     O tempo foi passando e Pepo viu-se cada vez mais afastado da posição central da prateleira, até que um dia, após o costumeiro banho na máquina de lavar, foi levado diretamente para o bau de brinquedos. Pepo até quis reclamar, espernear, gritar algo como:
     - Ei! Me leva de volta para a prateleira!
     Mas não gritou, não esperneou, não reclamou. Ficou quieto, justamente porque era um brinquedo... e foi para o fundo do bau de Mariana.
     Pepo se impressionava com o quanto a menina crescia, a cada visita que fazia ao bau. Um belo dia, reparou que Mariana tinha outra menina a seu lado, que o abraçou.     As crianças foram juntas para a varanda da frente da casa, carregando diversos brinquedos. Pepo se viu outra vez em estado de indizível felicidade e passou um longo e interminável tempo entre os abraços e carinhos de Lilian, a prima de Marianinha, até que a Mamãe de Mariana as chamou para o lanche, exatamente no momento em que um rapaz passava pelo portão para entregar uma pizza.
     As meninas largaram os brinquedos ali mesmo, na varanda, atravessando a porta de entrada da casa, correndo esbaforidas para dentro, ansiosas por aquela massa redonda coberta de queijo derretido.
     Ao sair, o entregador tropeçou em Pepo e o jogou longe, perto do portão. Pepo queria reclamar, mas novamente não o fez.
     Sem perceber o que estava fazendo, o entregador puxou o portão para fechá-lo e arrastou Pepo para a calçada.
     Pepo começou a achar que até tinha bastante sorte de não ter miolos, pois com o calor que fazia, os teria cozinhado. O Carteiro veio entregar as cartas da Mamãe de Marianinha e encontrou aquele ursinho de pelúcia com um babador já amarelado, com o nome “Pepo” bordado e pensou em levar o brinquedo para a caixa de coletas de doações de brinquedos do correio. Foi assim que Pepo viu pela primeira vez tudo o que havia dentro da imensa mochila de um carteiro.
     Pepo queria gritar, reclamar, implorar ao Carteiro que o devolvesse a Marianinha, mas, como sempre, sequer se mexeu. Todavia, rezou para aquele “Papai do Céu” que Marianinha sempre rezava, e pediu que lhe desse um destino bom, que não fosse abandonado dentro daquela imensa bolsa, repleta de papéis e envelopes.
     De repente, sentiu um baque violento, uma sensação de estar flutuando no ar dentro da bolsa e outro baque, desta vez no chão. As cartas, envelopes, papéis e Pepo se espalharam pela rua. O Carteiro fôra atropelado.
     Uma sirena de bombeiros, pessoas agitadas, alguém recolhendo os papéis, envelopes e cartas e, não fosse o próprio acidentado, Pepo teria ficado ali na rua mesmo. Mas o Carteiro pediu que o colocassem dentro da bolsa também, antes de desmaiar.
     A bolsa com toda aquela papelada e o ursinho ficou um bom tempo abandonada na seção de achados e perdidos do quartel dos bombeiros. Apenas um soldado tivera o cuidado de limpá-lo, antes que tudo fosse devolvido aos Correios. Algum tempo depois, um funcionário dos Correios veio e levou a bolsa. Cada envelope, carta ou papel tinha um destinatário. Exceto Pepo.
     - Chefe, aqui está o malote do Cristóvão, aquele que foi atropelado.
     - Então despacha para o Jorge, que ficou com a área do Cristóvão.
     - E este urso? – indagou.
     - O que tem ele? – redargüiu o Chefe.
     - Não tem. Nem etiqueta, nem endereço de remetente, nem destinatário...
     - Então leva para a Seção de Achados e Perdidos.
     “Pronto” – pensaria Pepo, se tivesse um cérebro para pensar – “agora é que estou ferrado de vez. Nunca mais vou sair de uma seção de achados e perdidos”. Mas rezar Pepo podia, porque para rezar, a gente não necessita de cérebro, só precisa de fé. Então, o ursinho rezou outra vez para o Papai do Céu de Marianinha.
     Acontece que a Seção de Achados e Perdidos dos Correios era bem grande, mas dividida em duas partes: as vindas do aeroporto e as da própria cidade. Isso porque aquilo que é perdido no aeroporto normalmente não é de alguém da cidade. Por via das dúvidas, o funcionário colocou Pepo no balcão das coisas do aeroporto.
     Naquela semana, um novo diretor dos Correios determinou que todo objeto da seção de Achados e Perdidos do aeroporto fosse enviado para o aeroporto. Colocaram Pepo em uma das muitas caixas que empacotaram todos os achados que foram perdidos no aeroporto e um grande caminhão os levou embora.
     Quando a claridade voltou, Pepo estava sendo colocado em uma prateleira, entre uma bela pasta de couro preta e um prato de cerâmica com um desenho de uma montanha coberta de neve. Se pudesse pensar, Pepo se perguntaria:
     - Como é que alguém consegue perder um prato em um aeroporto?
     Dentro da sala de achados e perdidos do aeroporto não havia nem dia, nem noite. Havia gente o tempo todo passando, perguntando, discutindo em várias línguas. Então, Pepo não foi capaz de precisar quanto tempo passou ali, naquela prateleira, vendo seus vizinhos sendo levados e outros tomando seus lugares.
     Um dia, assim, sem mais nem menos, uma moça bonita, vestida como as aeromoças, veio e o levou. E lá foi Pepo debaixo do braço da aeromoça, na direção de um avião gigantesco, parado na pista. Ao lado da escada dos fundos do avião, estava parada uma ambulância, com uma menininha deitada em uma maca, que depois foi levada para dentro da aeronave.
     Depois que a maca da menininha foi amarrada em um dos corredores do avião, com uma enfermeira e um médico a seu lado, a aeromoça veio e entregou Pepo à menininha adoentada.
     Algumas horas depois, o avião taxiava em um aeroporto nos Estados Unidos e a menininha foi desembarcada novamente pela porta de trás da aeronave. Por descuido, sabe-se lá de quem, Pepo foi abandonado em uma das poltronas.
     O comissário de bordo viu o ursinho de pelúcia ao desembarcar e resolveu levá-lo consigo para o hotel. Era um boneco já desgastado pelo tempo. Certamente não faria falta a ninguém. Deixá-lo no avião seria o mesmo que entregar o brinquedo no achados e perdidos do aeroporto. Nunca mais sairia dali.
     Pepo entrou em seu primeiro hotel em Nova Iorque sob as axilas do Comissário.
     Instalado em seu quarto, o homem foi tomar um banho, arrumou-se e foi aproveitar a noite novaiorquina.
     No dia seguinte, uma ligação urgente da companhia solicitava que se apresentasse ao Comandante do avião que faria o vôo de retorno. Iria substituir um colega que ficou doente. E Pepo retornou para o aeroporto debaixo das axilas do Comissário. Ao chegar ao balcão de embarque para o retorno, alguém cismou com o pobre ursinho de pelúcia e resolveram passá-lo pela máquina de raios-X. Desde os atentados de 11 de setembro, só Deus sabia o que poderia haver no interior de brinquedos tão ferozes.
     O Comissário achou uma grande besteira ter que perder tempo com um boneco de pelúcia gasto e deixou-o no próprio balcão do Raio-X. Uma funcionária zelosa do Aeroporto Internacional John Kennedy, ao ver que alguém esquecera o brinquedo, tirou uma fotografia do ursinho e colocou-a em um envelope. Ambos, envelope e ursinho, foram colocados dentro de um saco plástico transparente e enviados à Seção de Achados e Perdidos.
     Outra vez, Pepo perdeu a noção do tempo. Pelo menos, agora tinha uma etiqueta do Aeroporto Internacional John Kennedy no peito, à guisa de medalha.
     Se Pepo tivesse cérebro, pensaria que as línguas não haviam mudado; as pessoas eram as mesmas e seus vizinhos nas prateleiras se mudavam com a mesma constância. Por sorte, Pepo não tinha cérebro com que se martirizar com pensamentos negativos. Mas podia rezar ao Papai do Céu da Marianinha. E rezava. Sempre. Todas as vezes. Em cada troca de turno. Até que um dia, uma menininha o reconheceu como sendo seu.
     Não era. Talvez, se pudesse, Pepo teria gritado:
     - Sou seu sim! Me leva daqui!
     Muito embora Pepo não pudesse gritar, a menininha com sotaque espanhol pareceu entendê-lo e garantiu que era ele seu brinquedo perdido. E Pepo saiu da Seção de Achados e Perdidos todo contente outra vez. Chegou a imaginar que finalmente teria um lar, uma dona que o amasse e dormisse abraçada a seu pelo marrom, mas logo descobriu estar enganado.
     Mal entrou no táxi, a menina distraiu-se com a paisagem e o colocou de lado. Na primeira freada brusca, Pepo caiu no assoalho do automóvel, exatamente naquele pequeno vão entre o chão e o banco, onde vão parar todos os itens perdidos dentro dos automóveis.
     Ao ver os pés da sua nova dona desembarcando, Pepo até que cogitou gritar, espernear, berrar:
     - Ei! E eu?!
     Mesmo que fosse capaz de gritar, certamente a menina não o teria ouvido, porque saiu em desabalada carreira, de encontro aos primos que a aguardavam na calçada defronte ao prédio onde moravam.
     O taxista também não percebeu que ainda havia um passageiro no veículo e prosseguiu seu trabalho pelas ruas de Nova Iorque.
     Lá pelas tantas um marinheiro entrou no carro, sentou no banco de trás e – olhar de lince - logo divisou um ursinho de pelúcia. O Marinheiro finalmente lembrou de uma namorada na Nicarágua e colocou-o sobre sua mochila de embarque, com aquela absoluta cara-de-pau do “achado não é roubado”.
     - É claro que é roubado! – diria Pepo se pudesse falar.
     Infelizmente, mesmo que Pepo pudesse falar, o Marinheiro nem ligaria e o colocaria do mesmo modo dentro da mochila. Tudo se escureceu imediatamente após o ursinho de pelúcia se ver embolado entre meias e camisetas.
     Às vezes, o Marinheiro aparecia, mostrava seu rosto, tirava uma camiseta, ou uma meia, ou um calção, e a mochila escurecia novamente. Pepo agradecia aos céus que o rapaz não colocasse suas roupas sujas ali dentro. Com toda certeza, odiaria partilhar a companhia de um par de meias sujas, ou o que poderia ser pior: cuecas sujas!
     O tempo se passou interminável. Pepo contava os dias pelas vezes em que a mochila era aberta para a saída ou entrada de alguma roupa limpa. Sim! O Marinheiro lavava suas roupas e as colocava limpas dentro da mochila, ao lado do boneco.
     Até que um dia, Marinheiro desembarcou do navio, mochila ao ombro. Antes de sair do Porto, o rapaz teve que passar pela Alfândega, cujo funcionário viu o ursinho com a etiqueta de Nova Iorque e não teve dúvidas: colou-lhe uma etiqueta da Nicarágua. Se tivesse cérebro, certamente Pepo ficaria orgulhoso: agora ostentava duas medalhas em seu peito de pelúcia.
     Marinheiro saiu correndo pelas ruas da cidade, entrou em um ônibus, desembarcou em um bairro modesto e correu rua adentro, até parar ofegante diante da porta de uma casa humilde, onde foi recebido por Joanita, sua namorada. Entre beijos, abraços, carinhos e juras de amor eterno, a moça recebeu o ursinho de presente com lágrimas nos olhos. Logo viu que era um ursinho usado, mas trazia a etiqueta “Made in Brasil” e um carimbo de Nova Iorque. Ao menos era um urso viajado.
     Marinheiro ficou na casa de Joanita por uma semana. Novamente, se Pepo tivesse um cérebro pensaria que ali era o Paraíso. Voltou a dormir abraçado com alguém, se bem que dessa vez era uma moça bem mais velha que Marianinha e, quando o Marinheiro chegava, Joanita largava Pepo sobre o sofá. Mas quando o Marinheiro estava no navio, Joanita lavava o ursinho com xampus e cremes e secava sua pelúcia com um secador, escovando de leve. A melhor parte foi que a moça tomou todo o cuidado para não molhar as medalhas de Pepo. Contudo, bastou Marinheiro dizer que seu navio iria partir, para Joanita ficar emburrada e largar Pepo de lado. Quando foi se despedir de Marinheiro no Porto, Joanita levou Pepo junto e pediu que os fotografassem. Na fotografia, eram como uma família: Papai Marinheiro, Mamãe Joanita e seu filhinho Pepo. Ao fundo, o porto de Manágua, capital da Nicarágua.
     Enquanto se despediam, Joanita colocou a foto dos três dentro do envelope onde ainda estava a fotografia de Pepo em Nova Iorque e guardou junto com o ursinho, dentro do mesmo saquinho plástico em que viera.
     Com um último beijo, sussurrou ao Marinheiro:
     - Traga nosso filho de volta.
     - Trarei, meu amor.
     Marinheiro beijou uma última vez as faces chorosas da namorada e correu pelas escadas do navio, com sua mochila e Pepo às costas. Foi assim que o ursinho voltou para a escuridão.
     Alguns dias depois, o rapaz desembarcava na Flórida. Novamente, na Alfândega, alguém viu as etiquetas de Nova Iorque e da Nicarágua e não teve dúvidas: aplicou-lhe a terceira medalha de Pepo, com a insígnia da Flórida.
     Marinheiro levou Pepo em sua mochila para um alojamento, dentro de uma vila de moradia de militares em Cabo Canaveral, que é de onde são lançados os foguetes.
     Marinheiro conversava com todas as moças que passavam à sua frente na rua e Pepo até ficaria chateado, se tivesse um cérebro. Como não tinha, não disse nada.
     Uma das moças que Marinheiro conheceu quis ver Pepo fora do saco plástico e apaixonou-se por seu cheiro, que era dos perfumes de Joanita.
     Com um olhar choroso, a moça nem precisou insistir muito para que Marinheiro lhe desse Pepo. E lá se foi Pepo para a casa da moça, debaixo de seu braço.
     A moça era estudante e às vezes tomava conta de crianças para que seus pais pudessem sair. Assim que anoiteceu, a moça se arrumou e foi para a casa do Astronauta, tomar conta de sua filha Jenny. Quem poderia explicar por que a moça levou Pepo junto? E qual seria a explicação para a moça dá-lo à Jenny? Se Pepo tivesse um cérebro, certamente diria que o Papai do Céu da Marianinha é que tinha ouvido suas preces e lhe dera uma nova dona.
     Foi amor à primeira vista. Quando Jenny viu o envelope que acompanhava Pepo, pediu que o pai tirasse também uma foto dela com o ursinho.
     Astronauta viu as outras fotos e achou aquilo estranho.
     - Estranho nada, Papai. Pepo é um ursinho viajante. Em cada lugar que vai, as pessoas têm que tirar uma fotografia com ele. Agora é a nossa vez.
     Embora de modo algum Astronauta pudesse conceber aquela conversa de ursinho viajante, atendeu ao pedido da filha e fizeram uma fotografia juntos: ele, a esposa, Jenny e Pepo. Quando a fotografia ficou pronta, colocou-a dentro do envelope, junto com as outras.
     Em poucos dias, Astronauta foi convocado a se apresentar na Base de Lançamento, onde faria parte da tripulação do ônibus espacial Endeavour, cuja missão era levar suprimentos à Estação Orbital. Ao sair de casa, Jenny levou Pepo até ele e pediu:
     - Papai. Por favor, leve o Pepo com você. Ele precisa ir para a Estação Orbital.
     Bem, se Pepo tivesse um cérebro e pudesse exprimir sua opinião, diria:
     - Não, Jenny! Eu não quero ir para a Estação Orbital. Não quero ir para o Espaço. Quero ficar com você.
     Mas Pepo não tinha cérebro, por isso nada disse. Astronauta deu um beijo na filha e colocou-o dentro de sua mala.
     Quando a luz voltou, Pepo estava sendo retirado da mala por umas pessoas vestidas de branco, e o levaram até um aparelho, onde foi borrifado com vapores para descontaminação. Os técnicos da NASA até aceitavam levar um ursinho para o espaço, mas de modo algum poderiam admitir que levasse microorganismos e bactérias para lá.
     Os dias se passaram e Pepo sentiu muita pena de Jenny, pois ser filha do Astronauta significava passar muitos dias sem seu papai.
     Um belo dia, Pepo foi levado para dentro do ônibus espacial e colocado dentro de uma espécie de caixa de vidro, ao lado dos controles do piloto. Havia uma certa brincadeira entre os tripulantes e a Torre de Comando, em que todos se referiam a Pepo como sendo mais um astronauta da nave e aquilo o teria enchido de orgulho, se tivesse um cérebro.
     Foi um barulho muito grande e sentiu uma pressão muito forte no corpo durante a decolagem, mas em pouco tempo, toda aquela sensação se dissipou, bem como todo ruído lá fora. Apenas o rádio, a comunicação entre a tripulação e a Equipe de Controle de Terra. Embora tivessem levado alguns minutos para sair da Terra, foram horas até a nave acoplar à Estação Orbital. Depois de acoplados, durante a transferência dos suprimentos para a Estação, todos os tripulantes faziam questão de lembrar de Pepo.
     Quando entraram na Estação, depois dos cumprimentos generalizados, alguém o apresentou à tripulação russa que já estava ali e tiraram uma foto de todos os tripulantes americanos e russos juntos, com Pepo no meio. Uma mulher daquela tripulação ficou impressionada com a falta de objetividade dos americanos e quase externou seus pensamentos, mas só Pepo percebeu o que ia em seu íntimo:
     - Trazer um ursinho de pelúcia para uma Estação Orbital? O que eles estão pensando? Que isso aqui é a Disneilândia?
     Foram horas de trabalho para a transferência dos suprimentos e outras horas para a instalação de um painel solar na Estação. Muito trabalho, pouca conversa, pouca atenção ao que era dispensável e Pepo ficou largado a um canto do compartimento de carga. Um solavancozinho e Pepo descobriu a falta que faz a gravidade. Flutuou, flutuou e acabou ficando preso a uns cabos junto à porta do compartimento.
     Quando os americanos começaram a se despedir, bem que Pepo gostaria de ter esperneado, gritado, berrado mesmo:
     - Ei! Seus estúpidos! Vocês não estão esquecendo ninguém da tripulação?
     Ninguém lembrou. Pepo também não se manifestou e ficou esquecido um bom tempo ali, junto aos cabos da porta do compartimento de carga da Estação Espacial Internacional.
     E como Pepo seria capaz de dizer quantos dias ficou por ali? Mesmo que tivesse um cérebro não poderia dizer. Os dias na Estação Orbital são muito loucos. Podem durar minutos ou meses, dependendo da posição relativa à Terra. E naqueles dias, os astronautas estavam mudando a posição da estação, pois a chegada dos suprimentos os obrigava a uma mudança de posição.
     Até que os tripulantes russos receberam a notícia de que estavam vindo outros astronautas para substituí-los. Foi arrumando sua bagagem que a astronauta russa encontrou Pepo. Imediatamente, comunicou o fato ao comandante russo, que se comunicou com a Estação de Controle de Terra da Rússia.
     Lá na Estação de Controle, os cientistas russos não tiveram dúvidas em imaginar que ali estava um artefato da mais alta tecnologia americana e não deveria, sob hipótese alguma, ser devolvido aos americanos antes que tivessem a oportunidade de descobrir seus segredos.
     - Para mim é só um ursinho de pelúcia... – comentou a astronauta russa.
     - É claro que não é. Ou você acha que os americanos seriam idiotas a ponto de trazer um simples ursinho de pelúcia para o espaço? Pode apostar, Pietra: este ursinho é um artefato científico de última geração.
     Pepo até sorriria da desconfiança dos russos, mas como não tinha um cérebro, achou melhor continuar calado.
     Pietra ficou encarregada de retornar para a Terra com o “artefato” como todos o chamavam.
     Ao entrar na apertada nave russa, Pietra apertou Pepo contra o grosso uniforme e o ursinho se sentiu querido mais uma vez.
     Para encurtar a história, quando os russos descobriram que Pepo não passava de um ursinho de pelúcia com as etiquetas de Nova Iorque, Nicarágua, Flórida e Cabo Canaveral, também lhe colaram uma etiqueta, dizendo quantas horas passou na Estação Orbital e outra provando sua estada em Moscou.   
     Um dos cientistas encarregados de desvendar os mistérios de Pepo acabou levando-o para casa, para sua netinha de oito anos.
     Pepo passou uma boa temporada na Rússia, mas aquele ar eternamente gelado não lhe fazia bem e acabou indo para a Alemanha, para a casa de uma prima de sua nova dona. Ao sair da Rússia, embalado em seu saquinho plástico e acompanhado do envelope com fotos, alguém lhe carimbou uma etiqueta da Alemanha.
     O tempo passou; Pepo passou de uma pessoa para a outra em toda a Europa, indo do Leste para o Oeste. Mal as pessoas o pegavam viam aquele envelope cheio de fotografias e acrescentavam as suas, em seus países. Por isso, quando chegou a Escócia, o envelope de fotografias estava abarrotado e já não havia lugar para se colar etiquetas no pequeno corpo de Pepo. Na França, haviam colado uma etiqueta na sua... aham... parte traseira. Pepo não gostara nenhum pouco daquilo.
     A parte boa era que Pepo tinha fotografias de vários lugares da Europa em seu envelope:
     Nas praças de Amsterdã, nos canais de Veneza, nas ruínas gregas, no Coliseu de Roma, no Vaticano, sendo beijado pelo Papa; na Espanha, com o Rei; na França, aos pés da Torre Eiffel; defronte ao Big Ben em Londres...
     Da Espanha deveria ter sido levado para Portugal, mas alguém errou e o enviou de volta à Inglaterra e dali foi levado para o Egito. Conheceu as Pirâmides de Gizé, o Delta do Rio Nilo e vários países africanos, até chegar surrado a Angola. Neste país, a língua oficial é o português e dali alguém resolveu embarcar com Pepo na mochila, em um navio de volta para o Brasil.
     Pepo agora estava na bagagem de um corredor angolano, que viera ao Brasil para participar da Corrida de São Silvestre, que acontece no último dia do ano, 31 de dezembro.
     Acontece que Corredor não tinha lá muito dinheiro para se sustentar durante o quase um mês que faltava para a corrida e resolveu vender Pepo em uma loja de artigos usados.
     Comprador regateou o máximo que pôde e só ficou com aquele ursinho velho e desbotado por causa das etiquetas e fotografias do mundo. Corredor virou as costas, ainda contando o dinheiro que recebera e Comprador ligou para a Casa de Leilões. Um verdadeiro achado! Um ursinho de Pelúcia com etiquetas de quase o mundo todo e fotografias. Um Ursinho Viajante.
     Pepo foi levado para a Casa de Leilões e vendido dois dias antes do Natal, por uma pequena fortuna. Antes de ser exposto, Pepo fôra submetido a um verdadeiro tratamento de beleza, que lhe trouxe novamente brilho e um cheirinho bom de limpeza a seus pêlos, que a essa altura, nem pareciam mais gastos e esmaecidos.
     Jorge ficou encantado com o ursinho de pelúcia de babador bordado à mão, escrito Pepo. Só pelo fato de ser um urso de pelúcia não valeria a pequena fortuna que pagou por ele, mas aquelas fotografias de pessoas e lugares do mundo todo lhe imprimiam uma alma de viajante. Como por uma necessidade de exprimir seus pensamentos, tirou o ursinho de dentro do saco plástico, olhou cada uma das etiquetas e disse em voz alta, como se o ursinho fosse capaz de compreendê-lo:
     - Você é um boneco com alma, sabia Pepo? Alma de viajante. Talvez seja o único.
     Se tivesse mesmo uma alma, Pepo ficaria contente.
     Jorge desembarcou do avião no Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, pegou um táxi para casa, carregando Pepo no colo, como se fosse uma criança.
     Abriu a porta de casa com cuidado para não fazer barulho. Queria fazer uma surpresa a sua esposa e sua filha. As duas pareciam saber que estava abrindo a porta, pois quando esta se abriu, pularam em seu pescoço. Beijou as duas com as mãos atrás das costas, segurando Pepo.
     - Olha só o que eu comprei para vocês duas!
     Mariana pegou o ursinho de pelúcia ainda embalado dentro do saco plástico que protegia todas as suas etiquetas e fotografias e achou que conhecia aquele urso de algum lugar.
     Jorge, que sequer sabia que Pepo estava voltando para casa, complementou:
     - Ele será o mascote da nossa família. Nunca mais sairá daqui.
     Camila, a filha de Jorge e Mariana, abraçou Pepo bem apertado e correu com ele para seu quarto, enquanto Mariana ficou olhando as fotografias das viagens de Pepo, já não tendo a menor dúvida de que aquele era o seu ursinho Pepo da infância.
- Ele esteve na Estação Espacial! – exclamou Mariana.
- Quem será que teve essa idéia louca de fazer um urso de pelúcia viajar pelo mundo e até pelo espaço? – indagou Jorge.
- Posso ser sincera? – indagou Mariana – não acredito que tenha sido idéia de ninguém mais, a não ser dele mesmo. Veja como em cada fotografia as pessoas são diferentes.
Jorge sorriu com a imaginação da esposa, que prosseguiu:
- Veja a etiqueta de fabricação: saiu daqui do Brasil. Eu tinha um ursinho chamado Pepo na minha infância. Não acha coincidência?
Jorge deu de ombros.
- Quer dizer que ele viajou o mundo todo, passeou pelo espaço e agora voltou para você?
- Quem sabe?
Não fazia sentido se martirizar com tal dúvida. Só precisava confirmar com sua mãe, que fôra quem bordara o nome no babador.





J. Miguel – 03set2008
(Para Raquel e Aline, minhas eternas menininhas).


Biografia:
"Fazer chorar é fácil; desafio mesmo é fazer rir."
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