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O medievo que nos habita
Flora Fernweh

Qualquer vestígio de iluminismo sucumbe quando o assunto é a natureza humana. O Homem, em seu claustro individual teme a luz da razão. Em seu egoísmo gutural é acometido dos mais solitários pensamentos. O homem crê em um Deus cuja afeição não é recíproca ante às imperfeições que os indivíduos zelam em preservar. E para observar a disposição para o mal, sequer é necessário voltar séculos na história, ainda que o medievo incorpore o espírito das máculas que nos preenchem e que não foram de todo apagadas.

Não é à toa que na Renascença os contratualistas tentaram valorar a bondade do Homem aproveitando o ensejo da luz que reencontrou o mundo decadente. A carnificina que restou daqueles tempos poderia alimentar a humanidade pelos próximos séculos. A verdade se confundia com as escrituras. Os sons tinham dificuldade em transpor as barreiras do canto gregoriano. E as cores dos afrescos nos entretinham embora vivêssemos debaixo de um manto negro.

A verdade é que o Renascimento propôs-se a iluminar a vida humana em um retorno ao classicismo esquecido e aos bons modos de outrora. O Renascimento se afeiçoou à missão de nos restituir a memória e recuperar todo o tempo perdido. Mas não se poderia dizer que o mundo se tornou mais brilhante e transparente nesta época de reconstrução da arte, da poesia e da redefinição das virtudes do Homem, porque qualquer faísca na direção do progresso iluminaria uma era completamente encoberta pelas sombras, por mais breve e fraca que fosse.

Se mirarmos a Idade Média sob uma perspectiva contemporânea, não demoraremos a concluir que o caos reinava, a fome era imperante e às pestes eram lançados os maiores temores. Não havia a menor segurança nem a menor garantia de sobrevivência, os saques eram frequentes, as mortes e doenças eram rotineiras, a punição das feiticeiras divertia o povo, sonhava-se com lugares inexplorados e com ruínas abandonadas, as crianças tornavam-se adultas antes de seu tempo e poucos eram os homens que conheciam a velhice antes de conhecerem a morte. Esse, ao menos, era o cenário na Europa Ocidental, enquanto que conquistas e batalhas aconteciam no restante do Globo conhecido pelos enérgicos dominantes, e havia ainda os lugares em que a História sequer havia iniciado.

Carregamos diversas características que este período tenebroso da história humana nos legou, características essas que nos são essenciais e que se consolidaram ainda mais aparentes nos tempos do medievo. É voltando no tempo que podemos compreender com mais detalhes os motivos de nossa alma, ainda que não exista hoje nenhuma testemunha que viveu a realidade hostil daquele período. Permanecemos tão egocêntricos quanto já éramos, continuamos cultuando cegamente as nossas divindades que não destoam da fé cristã na mente medieval. Média era a idade, medíocre eram as circunstâncias, mas talvez o hodierno não seja um lugar tão mais acolhedor.

Vulneráveis eram os tempos, assim como somos hoje dotados de certas insuficiências. Nos fechamos em nossas torres e vivemos os nossos próprios rituais satânicos, mantemos o espírito da desconfiança que nos afasta uns dos outros e é comum ainda brigarmos por um pedaço de pão, com toda a indiferença que essa metáfora comporta. Evoluímos em muitos aspectos desde lá, conhecemos e exploramos o mundo, mas em essência, continuamos os mesmos em nossas mesquinharias, de modo que os vícios medievais não se livrarão de nós tão cedo.

No entanto, demos um passo adiante quando na queda do Império Bizantino, adentramos a descolada modernidade, desprendida e esperançosa. Não galgamos este degrau na História de um dia para a noite, tímidos avanços já vinham sendo ensaiados durante a Baixa Idade Média, as metamorfoses e as grandes inspirações vinham de dentro, aos poucos e sem pressa. Logo mais, iria resplandecer o momento em que a civilização despertaria de seu pesadelo, de suas fantasias e dissimulações. A Idade Média, porém, período demasiado marcante para cair em oblívio, manteve-se impressa na humanidade pelos tempos que se seguiram, de modo que já nos foi possível concluir que não é tarefa simples aniquilar o medievo que nos povoa, e talvez não seja o esquecimento mais recomendado, porque dele podemos extrair uma fonte de respostas para muitas indagações que nos atravessaram ao longo dos séculos.


Biografia:
Sobre minha pessoa, pouco sei, mas posso dizer que sou aquela que na vida anda só, que faz da escrita sua amante, que desvenda as veredas mais profundas do deserto que nela existe, que transborda suas paixões do modo mais feroz, que nunca está em lugar algum, mas que jamais deixará de ser um mistério a ser desvendado pelas ventanias. 
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