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O embate teórico entre Smith e Mandeville
Isadora Welzel

Para introduzir a temática do confronto entre o pensamento de Adam Smith e o de Bernard de Mandeville, são necessárias as determinadas considerações que dizem respeito à influência da tradição escolástica na filosofia moral de Smith, com a qual Mandeville rompeu por meio de sua crítica metafórica aos moralismos burgueses na obra “Vícios privados, virtudes públicas”, anterior em relação a Smith. É compreensível uma relação de embate de princípios entre os dois autores, uma vez que ainda que ambos tenham descrito a realidade de seu tempo e permeados por contradições, Smith inclinou-se a uma persistência da moral, enquanto que Mandeville satirizou a benevolência humana enquanto justificativa para suprir os interesses pessoais dos homens, o que se revela no trecho da Fábula das abelhas em que o autor conclui que ninguém pratica uma ação que não seja para si, a melhor. Nesse ínterim, pode-se estabelecer uma correspondência com uma ideia que muito se aproxima da noção smithiana acerca de um bem coletivo que assim o é em razão de uma vantagem individual em primeira instância, contudo, sua análise busca se distanciar da ênfase no egoísmo humano que é para Mandeville, central. Até mesmo quando os sujeitos agem em prol de um bem comum, eles se encontram no exercício pleno de busca por aquisição de notoriedade e reconhecimento, como disposto por Smith em sua análise voltada à obra do outro autor em questão.
          
Disposto a aniquilar a moral, Mandeville examina que a eliminação das extravagâncias e da corrupção é improdutiva para o avanço econômico de uma sociedade, uma vez que os vícios privados alimentam a máquina pública e contribuem para a prosperidade financeira, em detrimento de Smith, que não consegue conceber a dura realidade do mundo que desponta diante de seus olhos, revelando em seu pensamento, uma breve sujeição às aparências. Entre a crítica de Mandeville, se situa a alegação de que a sociedade se autoafirma moral, mas assim não é na prática, o que explicita a hipocrisia dos indivíduos que insistem em retornar ao mundo das inocências humanas no qual Smith se orgulha em viver.
       
De forma a embasar a contextualização aqui trazida, é sumário o retorno à obra dos autores em debate. No capítulo em que Smith discorre sobre os sistemas licenciosos, situado em sua obra “Teoria dos sentimentos morais”, o autor não hesita em caracterizar o sistema de Mandeville como errôneo através daquilo que ele define como uma tendência perniciosa de distinguir os vícios e as virtudes. Ou seja, já introduz essa parte específica de sua obra, definindo o pensamento de Mandeville como subversivo, tal qual seu título indica: “licencioso”. Em suas palavras, “O dr. Mandeville considera que tudo o que se faz por senso de conveniência, por respeito ao que é recomendável e louvável, se faz por aprovação e vaidade”. Tal declaração evidencia a crítica de Smith em relação à falta de autenticidade nos sujeitos que Mandeville apresenta, e para além disso, salienta a radicalidade com a qual o autor holandês retrata as paixões como um ápice do sinônimo de vício. A isso, soma-se a seguinte passagem e presumivelmente, a mais confrontadora sob uma concepção pessoal: “É a grande falácia do livro do dr. Mandeville representar cada paixão como inteiramente viciosa, em qualquer grau e sentido.”
     
Adiante em suas divagações críticas, Smith não compactua com a autonegação dos homens que se institui enquanto postulado incansável para Mandeville entre os homens vaidosos. Valendo-se dessa palavra aqui transposta, “vaidade”, Smith aprofunda-se em seu sentido na contramão do autor ao alegar que esse busca assinalar a imperfeição da virtude humana em todos os aspectos possíveis, aludindo à ambiguidade da linguagem mandevilleana e designando a facilidade do leitor em percebê-la como desconfortável e drástica no sentido de indicar como vício as condutas que não o constituem. Consoante Smith, a repercussão que a obra de Mandeville ocasionou, manifestou uma ideia mais audaz sobre os vícios em comparação com aquilo que eles são de fato, bem como mostrou-se mais insolente e ludibriante a um considerável número de pessoas. Para tanto, é imprescindível que os homens verifiquem a realidade através de seus próprios sentidos. Nessa passagem da obra, Smith apesar de discordar de Mandeville com veemência, reconhece uma verdade em seu pensamento, uma vez que o autor não receberia tantos adeptos de seu incômodo pensamento caso estivesse plenamente enganado. Para isso, caracteriza Mandeville como rústico e vulgar, cuja fala detém um ar de probabilidade capaz de convencer os pouco instruídos.
       
Mandeville, no fervor dos versos que compõem sua fábula, já antevia as atribulações e os questionamentos que os novos tempos lançariam ao mundo. Quando trata sobre as ciências, sobre a indústria e até mesmo utiliza-se do termo democracia, já no início de sua exposição, verificam-se elementos que inauguram uma conjuntura desprendida do passado, visto que reiteradamente discute o progresso econômico ao longo de sua inflexível poética oposta aos serviços públicos e ao papel do Estado posterior ao feudal, tão prezados pelo autor escocês. Um trecho do texto que atrai a atenção e repudia o idealismo da burguesia enquanto classe focalizada por Mandeville e que também receberia seu devido destaque na época de Smith, em razão de sua ascensão, é a passagem em que se narra a súplica às entidades divinas por parte de um agrupamento de seres humanos moralistas, cuja ilusão de aperfeiçoamento se insere em uma das críticas de Mandeville, já que o bem público não pode ser atingido por meio de um bem moral, mas sim atrelado e tão afeito ao avanço econômico.
       
Por outro lado, Adam Smith é um pensador nitidamente preocupado com a moral em vigência, o que se observa no próprio uso de termos vinculados a uma percepção moral, como “insensatez” e “injustiça”, a partir dos quais designa a exploração imperialista nos países colonizados devido às ambições humanas no final do livro IV de “A riqueza das nações.” Sua postura, que não excede os individualismos recorrentes em Mandeville, denota uma sensibilidade coletiva principalmente no que tange ao comércio enquanto um sistema de trocas que deveria promover a união e a amizade ao invés da fonte de discórdias na qual ele se transformou. Diante dessas ponderações, pode-se dizer que embora apresente com objetividade a realidade que analisa, seu pensamento é dotado de uma deontologia, ou seja, de um dever-ser, enquanto uma definitiva obrigação moral. Enquanto que Mandeville descreve aquilo que é, de forma análoga a uma ontologia factual sem uma interpretação que abarque valores éticos. Outrossim, Smith assimila na significação de luxúria para Mandeville, tudo aquilo que minimamente excede as condições necessárias para a sobrevivência humana, o que estabelece uma discordância de ambos entre o que um entende por bem-estar e o outro, por conforto desmedido.
       
A natureza da crítica que Smith elaborou sobre Mandeville não é conceitual, posto que ambos os autores compactuam em princípios com dados eventos de seus respectivos tempos, como a identificação da ideia de divisão social do trabalho já intrincada à colmeia descrita por Mandeville, bem como posteriormente será aprofundada por Smith e comporá um elemento importante da teoria do valor. Outros pontos em que os autores convergem, por exemplo, dizem respeito à produtividade humana e à propriedade privada. Pode-se dizer que a índole da crítica lançada por Smith tem cunho valorativo, visto que trata os mesmos acontecimentos e ideias semelhantes imbuíndo-as de um valor moral e de uma finalidade que contrasta com o individualismo de Mandeville enquanto intuito último da massa dos homens. A partir desse último raciocínio apresentado, é propícia a recordação da célebre frase atribuída a Nicolau Maquiavel: “os fins justificam os meios”. Posto isso, conclui-se que na medida em que para Smith os interesses próprios são um meio, para Mandeville, eles configuram um fim.
       
A noção smithiana de virtude também desarmoniza daquilo que Mandeville compreende. Isso decorre da modelagem do que se considera virtude pelos diferentes tempos. Nota-se uma visão ampla de virtude por parte de Smith quando o autor afirma na Teoria dos sentimentos morais de modo a criticar a concepção de Mandeville, que o sistema que faz a virtude consistir apenas na prudência, parece degradar as virtudes, despindo-as de beleza e de grandeza que evocam. Já Mandeville apresenta como o ensinamento de sua fábula quase uma fusão entre virtude e vício, ao comentar que a primeira é fruto do segundo, que deve ser mantido, afirmando abertamente em um verso “a virtude sozinha, não pode fazer as nações viverem em esplendor.”
      
Encaminhando-me para o final deste ensaio crítico, persiste a seguinte indagação: Smith se debruça de fato sobre os casos concretos, quando comparado com o ríspido texto de Mandeville? Ao analisar a realidade em que cada autor escreve, posiciono-me favoravelmente às descrições de Mandeville no sentido de sua isenção dos valores para o entendimento do comportamento social diante do aspecto econômico, uma vez que ultrapassa as fronteiras morais para uma compreensão irrestrita do ser humano. Todavia, é fundamental conceber as contribuições smithianas, que muito se distanciam de um retrocesso. A pergunta pode ser racionalmente respondida a partir da leitura atenta do capítulo no que tange à índole de um sentimento moral, desenvolvido por Smith em sua obra, visto que o autor persevera no silêncio dos sentimentos ao invés das aclamações ruidosas que conduzem o homem à insatisfação. Tal condição de sujeitos descontentes é apreciada na Fábula das abelhas em um viés mordaz e realista, enquanto que na Teoria dos sentimentos morais, Smith se vale de um chamamento otimista para o retorno ao mérito dos bons costumes.
      
Em última análise, exponho uma perspectiva contemporânea sobre a compreensão de virtude na singularidade dos dois autores aqui dissertados. Segundo Mandeville, o homem jamais se desprenderá de uma virtude aparente, o que destoa da observação de Smith sobre a verdadeira glória. O bem comum ainda se realiza em nome de uma moral que orienta os indivíduos, tornando-os reféns dos valores de seu tempo, embora não constituam preceitos legitimamente pessoais, em uma clara demonstração da moldagem do homem desde sua mais tenra idade. Reconheço as percepções conflituosas entre os autores e a validade das críticas de Smith sobre Mandeville, devido às inquietações que a Fábula das abelhas provoca até nos dias de hoje, bem como em razão da subversão de valores vistos como absolutos na época em que seu conteúdo foi escrito e publicado. Por fim, não se pode atribuir a certeza somente a um autor, posto que ambos visualizaram com afinco o contexto de seu tempo e assumiram uma posição que lhes foi mais aprazível conforme os seus princípios.

Disciplina: Economia Política


Biografia:
Além de grande admiradora da escrita e da literatura, sou estudante de Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e meu propósito no Recanto das Letras é traduzir conteúdos do mundo jurídico para a comunidade leitora, de modo a propagar conhecimentos sobre o Direito e propor reflexões. 
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