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As Algemas
Maria White


Naquela madrugada a rua se estendia longa e sinuosa à sua frente. O carro seguia sem pressa à caminho de casa e tão silencioso quanto a condutora. O cenário pouco iluminado pelas luzes fracas às margens da pista, servia como pano de fundo no qual cenas repetitivas se projetavam de sua memória enquanto fios de lágrimas contínuas minavam de seus olhos como sangue mina em ferida aberta.

A debilidade gradativa a consumia desde muito tempo se acentuando e anunciando um colapso iminente. A prisão parecia infindável. Esmorecia, se achava em seu limite. Seu algoz a mantinha presa nas garras da loucura e nas algemas da chantagem. Ela se movia sem forças dentro da cela da maldade, mendigando liberdade, borboleteando a saída longínqua, inalcançável, daquele ambiente doentio, envolto na fortaleza da manipulação.

Seu íntimo estava vazio de vontades, de desejos, de sonhos, de vaidades … de esperança … entretanto os pensamentos circulavam alcançando as fendas estreitas nas quais repousavam uma camada fina de pó, semelhante à ... veneno mortífero! Podia ver as partículas alojadas na superfície interna e cinzenta de seus pensamentos comumente agitados feito os ventos fortes de inesperada tormenta.

Os ventos rugiam abafando-lhe a voz sumida que se esforçava para se fazer ouvida num pedido de clemência. Queria apartar-se de seu algoz, queria vê-lo distante, além das fronteiras de seu alcance, queria se refazer longe dele, queria sentir outra vez o prazer da convivência familiar, queria o aconchego do lar, do abraço amoroso de quem sabe se dar, queria recuperar o entusiasmo da vida latente, queria dar asas à sua criatividade, voar alto em seus objetivos e desfrutar do bem estar da vida em toda a sua plenitude, porém os dias passavam iguais, as semanas se alastravam pelos meses sem nenhuma novidade e estes somavam-se aos anos infindáveis. O hoje e o amanhã eram sempre os mesmos, não havia o antes e nem o depois, tudo permanecia no interminável agora.

Perdeu o interesse em buscar ajuda, tentou em vão tantas vezes, porém seus relatos aos ouvidos alheios eram corriqueiros, insignificantes, bobagens. Passou a dialogar com aquela voz desconhecida que de vez em quando penetrava-lhe a mente para dizer que tudo tem começo, meio e fim. 'E quando virá o fim?' Perguntava-lhe. A voz respondia: 'Em breve.' Como detestou aquele termo que há muito deixou de corresponder ao seu verdadeiro significado. Detestou tudo que era incerto, indefinido, imprevisível.

Achava-se estagnada na espera. A espera do fim. A espera sem fim. Seus dias se resumiam na espera. Enquanto esperava foi deixando tudo para depois. Deixou para depois a visita aos amigos, aos entes queridos. Deixou para mais tarde as caminhadas diárias. Adiou por tempo indeterminado a manicure, o cabeleireiro. Deixou para outra hora o jantar especial. Deixou o pó cobrir seus livros na estante. Deixou a maquiagem envelhecer no estojo, os cremes nos frascos. Os vestidos ficaram esquecidos pendurados no guarda roupa sem ocasião para vesti-los. Tudo foi entregue ao depois … depois …

Deixou a rua para trás e ainda sem ânimo parou o carro na frente de casa. Desceu sem pressa e caminhou em direção a porta. A luz da varanda estava apagada. Estranhou, ele sempre a acendia quando a noite chegava. Adentrou, tirou o calçado, pendurou no gancho a chave e a bolsa e notou a quietude que envolvia o ambiente. Ao chegar, costumeiramente ouvia a tosse antiga ou a respiração sonora de seu opressor que ao perceber sua presença apontava no corredor a cara amarrotada emoldurada pelos cabelos desgrenhados. Porém, naquela madrugada a casa silenciosa parecia desabitada.

Ficou um tempo parada no meio da sala, esperando dele um movimento qualquer, mas nada aconteceu. Chamou-lhe. Esperou. Não houve resposta. Caminhou devagar até a porta do quarto, abriu-na e tateou a parede em busca do interruptor para acender a luz. Seu coração se descompassou dentro do peito ao ver sua figura pálida e desfalecida, caído na velha poltrona do canto. A cabeça pendia para trás, os olhos esbugalhados fincavam o teto, os braços tesos e esticados apontados para o chão sustentavam as mãos curvadas penduradas no ar. Fios dum vermelho escurecido desenhavam o caminho percorrido pelo sangue seco visivelmente escorrido pela boca e pelo nariz.

Aquela imagem provocou-lhe um riso brando, trêmulo, que gradativamente foi crescendo e se alastrando por suas veias, despertando os sentimentos há muito adormecidos, moldurando sons melodiosos, embalando o ritmo de uma velha canção composta de rimas poéticas, impregnando-lhe a alma. Em rodopios tímidos foi se entregando por inteira numa dança antiga, já em desuso, permitindo-se envolver em suaves movimentos há muito ensaiados secretamente e guardados por tanto tempo. E sem que ela pudesse perceber, abriam-se-lhe definitivamente as suas algemas.
………………………………………………………

LIBERDADE

O acaso é a escusa de uma escolha esquecida
é o escudo escondido entre algoz
e vítima presa em algemas
largada em cenas
demarcadas
aturdidas
aquecidas
consentidas
e ajustadas
à serem cobradas e cumpridas.
Quando estas são escoadas
e em tempo determinado, acudidas,
opressor e oprimido
se veem livres de todo trato e maltrato
confirmado
retratado
e findado
abre-se definitivamente
ao opressor, o voo
ao oprimido, as algemas


Biografia:
Escrevo desde a meninêz. Gosto de me definir como amiga íntima da linguagem. Meus escritos são frutos de minhas observações e experiências, todas vividas com intensidade. Muitos de meus escritos se perderam por aí em páginas de velhas revistas e jornais. Outros continuam inacabados na gaveta. A verdade é que eles estão sempre saltando de mim para o papel.
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