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Tempos, relógios e relojoeiros
Cláudio Thomás Bornstein

Quase todos os meus relógios são de corda. Eu sei que os relógios de quartzo são mais precisos e não tenho nada contra a precisão. Mas é que eu não suporto a cultura do descartável e cansei de comprar relógio elétrico que dura dois anos, pára, leva-se no conserto para ouvir: “Não tem jeito! Só trocando a máquina.”
     Claro que relógio de corda também dá defeito. Qualquer máquina dá defeito. Mas a gente consegue consertar, troca uma engrenagem, faz novo embuchamento, bota mola nova, quando não tem a gente arruma na sucata ou faz a peça, de dois relógios faz um, limpa, coloca óleo, regula, ajusta, tira folga e aperta. Tenho aqui em casa relógios de 40, 50 e até mesmo 100 anos. Valorizo a sua companhia e no meio de tantas caras conhecidas, décadas me contemplam e me acompanham.
     Para o conserto dos relógios uso os serviços do Adelino, nordestino arretado, que tem a sua oficina no centro da cidade. Se o Adelino me ajuda na minha cruzada contra o tempo, quem ajuda o Avelino são as filhas dele, cada uma mais bonita que a outra. Fica lá o velho, arrodeado de menina bonita, mais parece o "pavão misterioso", batendo as asas e enchendo o peito, uma vista apertando a lupa do relojoeiro, enquanto com a outra toma conta das garotas.
     Usei um despertador quebrado como pretexto para fazer uma visita ao Avelino e o seu harém. Chegando lá, ele examinou o relógio, fez o orçamento e eu acabei deixando a máquina. Passaram-se semanas. Um dia resolvi telefonar. Perguntei pelo despertador e ele de pronto respondeu: “Ih, rapaz, me lembro sim. Só não lembro onde eu coloquei. Só minha filha é que sabe, mas ela saiu. Liga outra hora.”
     Esperei um dia inteiro para ligar. Falei com a filha, ela encontrou o relógio, mas não estava pronto. Mandou eu ligar na outra semana. Esperei duas. Liguei, falei de novo com a filha e ela se lembrava de mim. Agora o relógio estava pronto. No mesmo dia fui apanhá-lo.
     Desta vez quem me atendeu foi Adelino. Pegou o relógio que estava em cima da prateleira, olhou bem nos meus olhos e perguntou: “Você é o Marcos?” Neguei, ao que ele, decepcionado, insistiu: “Então vê se este é o seu.” E me entregou o relógio. Peguei, examinei-o com cuidado e, sorrindo, disse: “Olha Adelino, jurar que este é o meu, eu não juro não, mas que é muito parecido, isto é. Só se você tiver outro igual.”
     Eu tinha falado por falar, me julgando muito engraçado, mas não é que o diabo do homem tinha mesmo outro igual? Qual um mágico que tira o coelho da cartola, ele tirou da manga da camisa um outro relógio igualzinho e me apresentou. Eu cocei a cabeça com ar preocupado: “E agora? Os dois são idênticos.”
        Para minha salvação me lembrei que eu tinha feito uma marca na parte de trás e graças a ela foi possível a identificação. Coloquei o relógio na mochila e fui para casa crente que o problema tinha sido resolvido.
     Qual o que! Na pressa e na confusão da identificação, eu tinha esquecido de escutar o tique-taque e foi só em casa que eu verifiquei, para minha decepção, que o relógio estava imerso em total mutismo. Liguei para Adelino e já providenciei a explicação: “Você consertou o outro, o do Marcos. O meu você deixou do jeito que eu lhe entreguei.” Ele foi lacônico e respondeu só com um “Pode ser.”
     Eu valorizo a honestidade e a sinceridade. Além disso, sei por experiência própria, que a vida é difícil, ainda por cima assim, cercado de filha bonita. Foi por isto que eu resolvi levar o relógio na oficina dele outra vez.
     Cheguei, e lá estava ele, com uma vista presa nas entranhas de um relógio, a outra me bisbilhotando. Nem me cumprimentou. Foi logo dizendo: “Porque você não leva o outro?”
     “O do Marcos?” perguntei desconcertado.
     “Ora, é tudo igual. E o outro está funcionando.”
     Levei o outro, o do Marcos, que está aqui na minha frente fazendo um tique-taque calmo de quem está muito feliz com o seu novo dono. A minha consciência está tranquila pois eu bem que avisei. Depois, é mesmo tudo igual. Para reforço das minhas boas intenções eu sempre posso alegar que é tudo invenção. Fui eu que inventei esta história. O Marcos nem existe, e se existe, abandonou o relógio na oficina do Avelino e nunca mais apareceu.


Biografia:
Para mais informações visite o blog CAUSOS em www.ctbornst.blogspot.com.br. Querendo fazer comentários, mande e-mail para ctbornst@cos.ufrj.br
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