Ônibus lotado em São Paulo é ruim, mas ninguém precisa esfregar isso na cara.
Um sujeito, com visual hippie, embarcou no veículo e começou a arranhar um violão. A trilha sonora merecia uma fogueira e um garrafão de cinco litros de vinho. O aspecto meio bicho-grilo, meio rastafari era evidente: cabelos dreadlocks, roupa indiana, violão surrado, e um repertório um tanto quanto bucólico.
O cara teve a pachorra de postar-se apoiado na catraca do coletivo e entoar canções que remetiam a um ambiente idílico. A provocação aconteceu porque o sujeito interrompeu o terrível trajeto trabalho/casa (ou vice-versa) para exibir como é muito melhor seu estilo de vida: livre e saudável. A vida dos usuários do transporte público urbano é diferente: ficar o dia inteiro enfurnado numa tarefa análoga à escravidão voluntária e voltar para casa numa lata de sardinha entupido de monóxido de carbono.
As inconvenientes musiquinhas do hippie fora de época falavam de casinhas nas montanhas, cachoeiras, trinados de pássaros, ar puro e verde, muito verde. Tudo o que ele cantava estava muito distante da nossa realidade pavimentada com concreto e cinza. Eu encarei aquilo como provocação. Mas só eu estava reprovando o andarilho e seu maldito violão. Olhei para trás e todos estavam com expressão meio boba, alguns inclusive se curvaram para assistir melhor ao show. Desisti de qualquer reação e aderi à apresentação.
Depois de algumas enfadonhas e utópicas letras, o, suposto, anticapitalista passou implorando algumas moedas. Foi aí que me toquei: todos os seus versos nos transportavam a um modo de vida almejado por ele. No entanto, o cara estava o dia inteiro pulando de ônibus em ônibus — no estilo “eu poderia estar roubando, poderia estar matando...” e caçando alguns trocados.
Logo vi, era tudo uma farsa. O falso hippie — que se vestia mal, menos por ideologia e mais por falta de recursos financeiros — queria estar dentro de suas músicas. O jogo havia virado, minha situação era bem melhor que a dele. Eu até, uma vez por ano, ia para algum lugar como São Tomé das Letras. E pensar que eu acabaria o dia me sentindo um “porco capitalista”.
Saí do “busão” um pouco mais animado, feliz por não depender da minha falta de talento no violão para ganhar a vida.
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