“A palavra herói vem do grego, de uma raiz que significa ‘proteger e servir’. Um herói é alguém que está disposto a sacrificar suas próprias necessidades em benefício dos outros (Christopher Vogler).”
No “Conto Maravilhoso” a condição inicial dos heróis é a representação pormenorizada de um bem-estar particular, por vezes enfatizado de modo proposital, para servir, obviamente, de fundo contrastante para a desventura que chegará com a virada dá próxima página. Moisés desfrutava de total bem-estar no palácio do Faraó, e tinha um futuro promissor – como filho adotivo da filha do soberano do Egito, até o dia em que assassinara um egípcio que feria um hebreu.
Christopher Vogler em “A Jornada do Escritor”: “Comparado com o Mundo Especial, o Mundo Comum pode parecer chato e calmo, mas geralmente as sementes da emoção e do desafio já estão nele. Os problemas e conflitos do herói já estão presentes no Mundo Comum, só esperando ser ativados.”
As sementes da emoção e do desafio de libertar os hebreus, e conduzi-los a terra prometida já estavam latentes no âmago de Moisés, porém, o chamado ainda estava no porvir, e não no presente.
Uma ação precipitada. Um libertador do futuro agindo como se hoje fosse amanhã. Tudo tem o seu tempo determinado, assim como há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Leis fixas, inalteráveis, regidas pela mão do Criador, anulam completamente a possibilidade de antecipação de um chamado. Um princípio ignorado por um comportamento impulsivo. Um resultado desastroso, uma fuga de um “Mundo Comum” com toda a pompa faraônica para Midiã, um “Mundo Comum” improvisado.
Durante um período razoável de tempo Moisés ficara estagnado numa rotina que, significava uma fuga civilizatória aos olhos daqueles que tinham uma visão mais abrangente da sociedade da época.
Um itinerário reduzido aos limites de uma curta extensão de terra. Poderia o mesmo ir além do óbvio, sendo que, todas as possibilidades possíveis estavam restringidas a um minúsculo quadrado comparado ao mundo habitado daquela era?! Mas as coisas que são impossíveis aos homens são possíveis a Deus. Mesmo dentro de um universo pessoal extremamente limitado Moisés recebera o chamado.
A grande maioria dos roteiros hollywoodianos seguem os moldes do monomito, também chamado de “Jornada do Herói”. Um conceito de narratologia contido no livro Herói de Mil Faces, escrito pelo mitólogo Joseph Campbell. Geralmente as narrativas hollywoodianas começam com o mundo comum do herói. Em seguida vem o chamado à aventura, a recusa do chamado, e assim por diante.
Os arquétipos do monomito indicam que, inicialmente o “Mundo Comum” de Moisés era o palácio do Faraó. O mesmo somente sairia dali para tornar-se um herói tribal, mas o seu comportamento impulsivo resultara em assassinato, seguido de fuga, derivando, com isso, um “Mundo Comum” provisório em Midiã, onde passara a viver uma vida simples, dedicando-se, exclusivamente aos rebanhos do seu sogro.
O tempo de Deus chegara, e Moisés recebera o chamado à aventura: libertar da escravidão o povo hebreu. Mas, assim, como na “Jornada do Herói” o mesmo recusara o chamado. De certo modo o modelo fora quebrado, porque o mesmo recusara o chamado mais de uma vez.
O argumento para a primeira recusa fora o sentimento de inferioridade: – Quem sou eu, que vá a Faraó e tire do Egito os filhos de Israel?
A resposta de Deus foi: – Certamente eu serei contigo!...
Que povo aceitaria alguém que se apresentasse como um libertar enviado por um Deus, e não perguntaria o nome deste Deus?
– Quando os mesmos me perguntarem: Qual é o seu nome? O que lhes direi?
– Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós!
Um coração dominado pela dúvida e o medo. A indecisão está na cara de Moisés, e o êxito do chamado titubeia entre uma intenção e outra de recuar no propósito estabelecido pelo Altíssimo.
– Mas eis que não me crerão, nem ouvirão a minha voz, por que dirão: O Senhor não te apareceu!
Seria esse o maior dos seus medos? Não conseguir convencer o povo a quem estava sendo enviado de que o Senhor o livraria da escravidão por seu intermédio? Provavelmente a falta de confiança tenha tido origem – um dia após o mesmo ter assassinado um egípcio.
Uma briga entre dois hebreus. Uma repreensão ao que estava agindo de modo incompatível com a justiça:
– Por que feres a teu próximo?
– Quem te tem posto a ti por maioral e juiz sobre nós? – disse o hebreu injusto, vomitando ódio e fúria. – Pensas matar-me, como mataste o egípcio?
O bom senso fora repelido com dois questionamentos. O segundo havia contido em si uma informação direta: a morte do egípcio não tinha passado batida aos olhos do núcleo de escravos hebreus. O medo e a certeza passaram a dividir o mesmo espaço em seu coração. Duas forças antagônicas em comum acordo pela permanência numa extensão limitada de um ser, incapaz de enxergar uma saída que o isentasse de culpa diante do Faraó. E o boca a boca fizera chegar o seu feito até o maioral do Egito. Agora havia um futuro herói jurado de morte. Como enganar os sentidos que, de contínuo – emitem saraivadas de impulsos segmentados, vinculados ao medo e a incerteza? A fé! Um dom de Deus que opera pelo amor. Sim, no amor – não há temor. Por isso, Moisés ficara firme, como vendo o invisível, não temendo a ira do Faraó, e pela fé deixara o Egito estabelecendo-se, em Midiã. No entanto, agora, o medo e a incerteza retornavam ao seu coração, trazendo como consequência uma sequência de recusas ao chamado à aventura. Teria desfalecido sua fé? O indicativo responde sim! As palavras do hebreu injusto ainda ecoavam em seu inconsciente: “Quem te tem posto a ti por maioral e juiz sobre nós?”
O repúdio de um não significa o repúdio de todos. Contudo, o medo fizera com que Moisés generalizasse um fato isolado, ocorrido no pretérito. Agora, a lembrança desse acontecimento intimidava-o: “Mas eis que não me crerão, nem ouvirão a minha voz, por que dirão: O Senhor não te apareceu!”
– Que é isso na sua mão? – perguntou o Senhor.
– Uma vara – respondeu Moisés.
– Lança-a na terra!
Uma vez na terra a vara se transformou em cobra.
Uma dose de medo a mais fizera com que Moisés fugisse da serpente, ou de fato a serpente deu-lhe motivo para fuga? Só Deus sabe!
– Estende a tua mão e lhe pega pela cauda – ordenou o Senhor.
O futuro herói estendera a mão, e pegara a cobra pela cauda, e de imediato a cobra se transformara em vara em sua mão. Este mesmo procedimento deveria ser feito diante do Faraó como um sinal de que Deus o havia enviado. Depois a ordem fora colocar a mão no seio, e tirando-a, eis que estava leprosa. Uma mão, agora, apresentando a brancura da neve, mediante nova ordem do Senhor é colocada uma vez mais no seio. Ao retirá-la a surpresa: não havia mais hanseníase. Fora só uma breve existência – dissolvida num ato espontâneo de obediência. Mas, e quanto ao chamado à aventura? Os subterfúgios vão se sobrepondo uns sobre os outros. Um “se” justapõe-se, a outro “se”, e Moisés tenta mais uma escapatória.
– Ah, meu Senhor – começou ele – eu não sou homem eloquente, nem de ontem nem de anteontem, nem ainda desde que tens falado ao teu servo, porque sou pesado de boca e pesado de língua!
– Quem fez a boca do homem? Ou quem fez o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu, o Senhor?
Em seguida Deus da uma ordem e uma garantia a Moisés;
– Vai, pois, agora, e eu serei com a tua boca e te ensinarei o que hás de falar!
Joseph Campell diz o seguinte em Heróis de Mil Faces: “A pessoa comum está mais do que contente, tem até orgulho, em permanecer no interior dos limites indicados, e a crença popular lhe dá todas as razões para temer tanto o primeiro passo na direção do inexplorado.”
Moisés nunca fora uma pessoa comum, no entanto, estava se comportando como tal, fazendo de tudo para permanecer preso dentro dos limites de uma curta extensão de terra, como se estivesse encarcerado com a chave do cárcere na mão.
Uma função simplória sempre oferece comodidade, e a comodidade faz parar um chamado à bem-aventurança, por isso a súplica de Moisés não causa estranheza.
– Por favor, Senhor. Envia qualquer outra pessoa!
Tudo tem limite, e a súplica do futuro herói fora a gota d’água. Com a ira já acesa o Senhor disse:
– Por acaso Arão, o levita, não é seu irmão? Eu sei que ele tem facilidade para falar. Além disso, ele está vindo para se encontrar com você e vai ficar contente ao vê-lo. Você falará com Arão e lhe dirá o que ele deve dizer. Eu os ajudarei a falar e direi o que vocês devem fazer. Arão falará ao povo em seu lugar. Ele será o seu representante e falará ao povo por você. E você será como Deus para ele, explicando o que ele deve dizer. Leve este bastão porque é com ele que você vai fazer os milagres!
“Com frequência, na vida real, e com não menos frequência, nos mitos e contos populares, encontramos o triste caso do chamado que não obtém resposta; pois sempre é possível desviar a atenção para outros interesses. A recusa à convocação converte a aventura em sua contraparte negativa. Aprisionado pelo tédio, pelo trabalho duro ou pela "cultura", o sujeito perde o poder da ação afirmativa dotada de significado e se transforma numa vítima a ser salva (Josep campell, em Heróis de Mil Faces).”
Ainda bem que o Senhor é misericordioso, piedoso, longânimo e grande em benignidade, caso contrário Moisés teria sido abandonado no meio das tantas recusas, e o seu futuro seria tedioso, dominado pelo queixume, em decorrência do trabalho que não fora chamado para exercer, sendo que o mesmo seria uma vítima a ser salvo da mesmice do dia-a-dia. Mas com a garantia de que seu irmão Arão seria a sua boca o mesmo se lançara de cabeça em sua jornada, sem pensar em recuar.
BIBLIOGRAFIA LIVROS
Êxodo 2/11-12 – A Jornada do Escritor
Eclesiastes 3/1 – O Herói de Mil Faces
Lucas 18/27
Êxodo 3/1-10
Êxodo 3/11-14
Êxodo 2/ 13-14
Êxodo 2/15
Gálatas 5/6
1 João 4/18
Hebreus 11/27
Êxodo 4/2
Êxodo 4/3-4
Êxodo4/5-6
Êxodo 4/11-12
Salmo 103/8
|