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O evangelho da periferia
(Sobrevivendo ao inferno, Racionais MC's e a dura vida dos excluídos)
Roberto Queiroz

Podem sonhar com dias melhores as pessoas de cor? E por que elas precisam ser rotuladas como "de cor"? Finalmente, qual a cor das pessoas "de cor"? Não podem ser seres humanos, simplesmente, como todas as outras pessoas? Pois é... Parece que no Brasil, não! A eles não é dado o direito de ser nada. Menos que nada. Ainda bem que ainda tem gente que se levante contra isso, quem nade contra a maré, quem acredite que aceitar tudo calado (por conta de determinismos biológicos e sociais passados) não está com nada, não é uma opção.

- Há tempos procuro um caminho para escrever sobre rap, hip-hop, cultura negra e não o encontro. E eis que me deparei, alguns meses atrás, com a notícia de que o vestibular da Unicamp desse ano trouxe em sua bibliografia obrigatória Sobrevivendo ao inferno, da banda Racionais MC's, um álbum musical que virou livro. Certamente uma ousadia para aqueles que estão acostumados a ver autores como João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos ou Clarice Lispector na lista.

Resultado: vou atrás do livro em várias lojas e descubro que, infelizmente, à primeira vista, todos queriam comprá-lo e encontra-se esgotado. Não o encontro de cara, mesmo morando no RJ, com suas gigantescas megastores. Certamente os habitantes da cidade maravilhosa que fizeram a prova em SP compraram tudo com antecedência. E o jeito é esperar a prova passar e uma nova edição sair. Contudo, só consigo ter o livro em minhas mãos só depois do carnaval. E é uma grata revelação (mesmo).

No álbum, a banda começa "rezando" à São Jorge da Capadócia (mas uma versão musical, criação do mestre Jorge Benjor). Certamente pedindo a Deus que protejam suas almas aflitas sempre condenadas ao sofrimento e ao fracasso.

Vem o Gênesis, a regra do jogo. O jogo? Sim, imposto aos homens negros de bem, trabalhadores, como tantos outros nesse país de Meu Deus!, sem direito ao mínimo básico necessário. Quem manda sempre manda e obedece quem não perdeu o juízo ainda. E nesse contexto sórdido estatísticas terríveis sobre a realidade do homem negro no Brasil são apontadas. Digo mais: evisceradas.

"Minha palavra vale um tiro". canta, não, grita em alto e bom som Mano Brown, o líder do grupo e voz ativa entre os manifestantes mais radicais do país. Homens como ele são considerados, por grande parte da sociedade que se diz cristã e por isso acima de qualquer suspeita, terroristas da periferia (e eu faço questão de pôr a expressão em negrito para acentuar ainda mais o discurso de ódio dessa tal parte da sociedade).

Malandro é aquele que não se submete ao sistema, que não trai a causa, que não "enbranquece", deixam claro os integrantes da banda, num tom direto, ríspido, sem rodeios.

Ser negro no Brasil, tratar de exclusão, de famílias disfuncionais, de andar na berlinda, carente de tudo, e levantar a cabeça, continuar olhando em frente, procurando um caminho que produza significado, que não seja um mero clichê: esse é o objetivo primordial de todo o trabalho (escolha você a versão musical ou literária)

A violência acaba por se tornar o modus operandi dos que precisam sobreviver, na marra. E para completar o pacote da miséria humana vivido por esses homens e mulheres excluídos do montante geral da população, os ditames básicos: drogas, escolhas erradas, amizades escusas, prisão, etc etc etc.

Ao final do volume, como um epílogo esperançoso, quem sabe até mesmo uma quase elegia, a banda agradece às comunidades, á periferia, as únicas que entendem de fato a triste realidade desse povo jogado para segundo plano. Aliás, periferia é um palavra que classifica bem as razões por trás da existência de Sobrevivendo ao inferno. Os Racionais fazem, de forma precisa e cheia de provocações, um grande evangelho da periferia, onde nem sempre as orações, por mais bem intencionadas que sejam, surtem efeito e a expressão "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come" é elevada à máxima potência.

Parabéns à Unicamp pela decisão de trazer a poesia contemporânea do rap ao cânone acadêmico e espero que a decisão seja seguida por mais instituições universitárias, pois é preciso fugir do velho clichê imposto por certas organizações - como a Academia Brasileira de Letras, por exemplo - que adoram defender o clássicos em detrimento de outras vertentes literárias existentes no Brasil).

Enalteçam os excluídos! Antes que seja tarde demais!!!


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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