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O VELÓRIO
ANTONIO LUIZ MACÊDO E SILVA

Não se passava um dia sequer, sem que o mais discutido jargão fosse ouvido nos quatro cantos da cidade. “Quando eu morrer não morri; mas levo um comigo”.

Era o velho Demócrito. Brincalhão e prosista com todos. Atencioso e solidário, era conhecido dos habitantes pelo seu jeito de ser. Não perdia um enterro. Do mendigo ao coronel, lá estava ele, contrito, segurando em uma das alças do caixão. Dizia que foi a maneira encontrada de prestar a sua solidariedade a quem não mais poderia prestar. E arrematava: “Quem me ver, verá”.

Nome esquisito naquelas paragens, rebatizaram-no com o nome carinhoso de Dem; para as crianças e os mais jovens, “seu Dem”. Esse tratamento o deixava bastante feliz e gratificado, pois traduzia a expressão de amor e ternura de um povo que o acolhera de braços abertos e não o largara mais.

Nos eventos sociais se fazia presente, demonstrando sua atenção e reconhecimento pelo tratamento que recebia. E nesses momentos importantes, aproveitava para lançar o jargão: “Quando eu morrer não morri; mas levo um comigo”. As pessoas escutavam espantadas e sorridentes ao mesmo tempo, como se não dessem crédito às suas paçavras.

Num desses eventos comemorativos do aniversário da cidade, estava presente Bernardino, repórter de uma das emissoras locais, que realizava a cobertura do acontecimento. Durante o cock-tail, Dem cumprimentava cada um dos grupinhos formados. O cumprimento era o de sempre: “Quando eu morrer...” Bernardino ziguezagueava, gravador ligado. O grupinho elítico (não etílico), encontrava-se em um dos cantos. Constituído pelo Vigário, Juiz, Delegado e pelo Prefeito, acompanhados dos seus respectivos assessores e familiares (o sacristão como adjunto do vigário, é claro), papeava descontraidamente. Dem brincava com todos, particularmente com o vigário, de quem era muito próximo. Bernardino por ali.”Pois é padre, eu digo, repito e ninguém acredita: “Quando eu morrer, não morri; mas levo um comigo”. Alguém pra fazer graça gritou do outro lado: “Uma barata!” As mulheres gritavam, corriam... Um alvoroço. Dem apenas comentou: “Povo mole, hein padre?” A poeira sentou e ele retirou-se.

Eram decorridos seis meses quando Dem caiu doente. A cidade chorou quando do seu falecimento. A capela do cemitério QUEM ME VER, VERÁ, nunca, em toda a sua história (três dias), havia recebido tanta gente. Para prestar sua solidariedade, Bernardino. Cantos, orações, benditos, homenagens, e o velho Dem ali. Quatro velas iluminando a noite de dentro e de fora. Lágrimas, soluços...

Com a chegada do padre de uma cidade vizinha para fazer a encomendação do corpo, o silêncio estabeleceu-se. Em minutos ele deu por encerrada a celebração. As pessoas aproximavam-se. De repente: “Quando eu morrer, não morri; mas levo um comigo”. Trinta segundos foi o tempo necessário para o esvaziamento da capela entre chiliques, gritos de “valha-me Deus”, “valei-me minha Nossa Senhora”, “ai meu padim, padim Ciço”, e correria desenfreada onde nem as janelas foram poupadas. Restou apenas o padre e o repórter. De olhas fixos no corpo de seu Dem, era como se estivesse vendo aquele corpo sentar-se no caixão, de tão concentrado que estava. “Povo mole, hein padre?”

No dia seguinte, ao meio-dia, foram sepultados dois corpos: Dem e padre Klin. Dois dias depois Bernardino foi detido. A fita continuava no gravador. Afirmou ao delegado que tudo não passou de uma brincadeira; queria apenas provar que o jargão de seu Dem era falso.

Agora eu pergunto: o que é que o padre Klin tinha a ver com isso?

ALMacêdo



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