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A PIOR VIAGEM DE TODAS
Jeferson Biela

Resumo:
A minha primeira experiência com a Ayahuasca (Santo Daime)

Encontrei o Daime (ou ele me encontrou) nos tempos de faculdade, cursando Publicidade e Propaganda, enquanto era sócio de uma imobiliária onde trabalhava freneticamente quase todo o tempo. Um período de muito stress e sem qualquer interesse ou tempo para práticas espirituais. Era tudo uma bagunça, já tinha largado o Yoga fazia tempo e confesso que estava numa época de excessos, muita comida, muita carne e muitas cervejinhas nos finais de semana, práticas muito bem aceitas pela sociedade mas incompatíveis com uma vida equilibrada.

Não me recordo muito bem como foi, só sei que tinha a ver com uma leitura que fizemos em uma das nossas maravilhosas aulas de português com o grande professor Schwartz. Não por acaso, isso desencadeou uma série de acontecimentos que nos levaram a alguns frequentadores do Santo Daime que estavam apenas a alguns corredores de distância da nossa classe. Ninguém da sala demonstrou muito interesse – todos muito ricos e snobes para esse tipo de coisa –, apenas o João e eu aceitamos o desafio.

Estávamos decididos a ir no próximo encontro daimista, o que seria no final do mês. Ficamos sabendo que as reuniões do Daime, em qualquer lugar, aconteciam todos os dias quinze e trinta de cada mês. Uma prática com períodos bem definidos pelo Mestre Irineu, o fundador da religião. Também descobrimos que a igreja era muito, muito longe da cidade, em um lugar no meio da floresta e com pessoas esquisitas, o que nos deixava ainda mais apreensivos e com algumas paranóias do tipo: será que irão nos drogar e roubar os nossos rins? Com alguma preocupação, não apenas com os nossos rins mas com tudo o que poderia acontecer, combinamos o dia e fomos os dois de moto, para aquele que seria o nosso primeiro contato com a Ayahuasca.
Custou a encontrar a igreja, já estava noite quando chegamos. Nos apresentamos e aguardamos o início do Ritual. O templo era muito bonito e enfeitado com muitas bandeirinhas multicoloridas no teto, figuras de santos por todos os lados e a imagem do Mestre Irineu próxima ao local onde ficavam os instrumentos musicais. No centro da sala havia uma mesa branca, velas, alguns hinários e um crucifixo com um formato um pouco diferente do normal, com duas tábuas na horizontal, ao invés de uma.
Começaram os cânticos. O padrinho fez a abertura dos trabalhos, algumas orações e logo em seguida os responsáveis pela organização do Ritual, os chamados fardados, serviram o Chá. Cada qual voltou ao seu lugar e todos, ainda em pé, começaram a cantar alto.

A música, para quem não está acostumado, pode tornar-se bastante irritante à medida que vai se entrando na Força e chegar mesmo a atrapalhar. Entrar na Força quer dizer que os componentes ativos do Chá estão fazendo o efeito desejado no organismo.

Foi muito complicado acompanhar a letra pelo hinário, tudo ficou muito embaralhado e acabei passando mal. Convém mencionar que no princípio essas canções são bastante difíceis de seguir, mas com o tempo e a prática elas acabam por se tornar algo muito belo e que ajuda muito na meditação. São mantras que intrinsecamente são também ótimas orientações de conduta para a vida. Mas isso só entendi muito tempo depois.

Cada um dos fardados tinha uma função específica na logística desse trabalho espiritual. Muitos deles tocavam algum instrumento musical, alguns prestavam atendimento aos que precisavam e outros serviam o Chá ou auxiliavam o padrinho. Enfim, todos ajudavam no bom andamento das coisas.

No começo, antes da Força chegar, estava indo tudo bem, cantei as músicas do hinário, rezei, participei de tudo o que estava acontecendo. Até o momento que comecei a sentir um formigamento. Uma sensação gostosa no início, mas que gradativamente foi se tornando estranha. Algo começou a tomar conta dos meus sentidos e foi ficando cada vez mais intenso. Muito intenso. Os meus olhos já não conseguiam acompanhar as letras das músicas do hinário e a vontade que eu tinha era de sentar, ou melhor ainda, deitar. Mas não podia, os fardados não permitiam.

Comecei a ficar nervoso. Tentei ao máximo me acalmar. Instintivamente senti que deveria controlar melhor a minha respiração. Estava ofegante. A minha mente começava a ficar confusa, já estava meio tonto quando felizmente a música parou. Silêncio absoluto até o padrinho começar com a Consagração do Aposento, uma oração bem profunda que pude absorver melhor em outras ocasiões já que aquele momento não era dos mais propícios. Terminada a Consagração, todos se sentaram e eu dei graças a Deus porque não aguentava mais ficar em pé. Com os olhos fechados comecei a ver muitas cores, formas de todos os tipos, movimentos, algo muito louco e bonito, algo muito longe da razão. Tentava encontrar explicações para tudo o que via e quanto mais tentava, mais as coisas se embaralhavam. Não tinha jeito. Era tentar aceitar e deixar fluir.

Já estava sendo a maior experiência da minha vida quando tudo aquilo bruscamente mudou de configuração. De repente, eu era uma libélula, linda, colorida e brilhante, que apenas voava, batia as asas suavemente em um voo tranquilo. Era algo muito diferente de tudo, difícil de explicar em palavras.

Assumi que estava indo bem na minha experiência e tentei relaxar cada vez mais, mas algo começou a dar errado, a sair do controle. Naquela altura – e não tinha a menor noção de tempo – muitos participantes começaram a passar mal e a ir para fora da igreja vomitar. Aquele barulho de gente sofrendo e vomitando começou a me afetar estranhamente, me levando cada vez mais para o lado obscuro das visões, ou talvez de mim mesmo, não sabia ao certo. Todas aquelas imagens maravilhosas que estavam tão nítidas e coloridas começaram a se transformar em algo sombrio e assustador.

Não aguentei e fui participar daquela vomitação coletiva fora do templo enquanto alguma coisa dentro de mim me alertava que a situação ainda iria piorar. E piorou. Vomitei muito até o momento em que não saía mais nada, então era só ânsia de vômito.

A floresta ao redor se tornava cada vez mais mal-assombrada, a escuridão da noite trazia com ela todo o tipo de alucinações, monstros e criaturas horríveis. Um terror começou a se instalar em mim. Já estava sem forças quando percebi que tinha que ir urgentemente ao banheiro. Fui me arrastando até lá e, por algum motivo, lembrei daqueles primeiros conselhos sobre alimentação leve e sem carne. Mas era tarde demais, já estava um farrapo humano prestes a desmoronar.

Aproveitava alguns poucos minutos de paz e descanso sentado no vaso sanitário quando bateram na porta do banheiro exigindo que eu saísse o mais rápido possível. Era um dos fardados impondo que eu voltasse para o Ritual porque estava quebrando a corrente. Queria eu lá saber da tal da corrente. Gostaria de tê-lo xingado ou gritado qualquer coisa para me deixar em paz, mas estava sem forças e não tinha para onde fugir daquilo tudo. Sentado no vaso sanitário com a cabeça tombada, só via monstros que se formavam nas ranhuras das paredes e imperfeições do piso e que vinham, sem parar, na minha direção. Comecei a tentar afastá-los. Em vão. Sentia-me cada vez mais fraco. Desisti.

Deixe que venham, pensei.

Aquelas criaturas medonhas começaram a subir pelas minhas pernas. Situação deprimente.
As batidas na porta eram insistentes e não teve jeito, tive que me levantar e sair. O João estava junto com o fardado e, aparentemente, estava tudo bem com ele. O problema era comigo. O fardado deu mais alguns minutos para me recompor, lavar o rosto, tomar uma água, enfim, tentar me refazer um pouco e criar forças para voltar ao Ritual. Estava péssimo. Olhei no espelho, parecia um zumbi, pálido, com olheiras fundas e a língua branca. O João se assustou quando viu a minha língua, estava totalmente descorada. Eu tinha me tornado um morto vivo.
Acho que estou com a pressão um pouco baixa, tentei justificar.

Voltamos para o Ritual na esperança de que tudo aquilo já estivesse acabando quando um dos fardados anunciou que a segunda dose estava sendo servida.

O quê??? Eu não vou tomar mais porra nenhuma! Quero que todo o mundo se dane! quero ir embora!

Mas não era uma opção, fui obrigado a entrar na fila para a segunda dose. Percebi que os fardados eram bastante rígidos nessa questão em especial. Todos são obrigados a tomar duas doses. Chegada a minha vez de ser servido, com os olhos meio fechados devido à fraqueza e mostrando, com os dedos indicador e polegar quase juntos, a pequena quantidade pretendida, supliquei: “…só um pouquinho, ok?”, mas o fardado responsável fingiu que não ouviu e encheu o meu copo.

     Você não entende, eu vou morrer desse jeito!

Só pude ouvir ele responder:

     Acertou, você vai mesmo morrer hoje!

Aquilo só piorou a situação. Tomei o Chá e voltei cambaleando para o meu lugar, rezando para que tudo acabasse de uma vez. Estava mesmo muito mal, mas consegui me sentar. Foi então que uma figura me chamou a atenção. Um rapaz muito novo, por volta de uns dezesseis anos, não mais que isso, estava em uma invejável postura meditativa, olhos fechados, mãos sobre os joelhos e com a fisionomia mais calma deste planeta. Era um verdadeiro yogi. Essa visão, confesso, chegou a me dar raiva. Ele lá tranquilo, todo iluminado e risonho enquanto eu estava acabado, fraco e tendo a certeza que iria piorar.

A música voltou a tocar, de forma ainda mais intensa e com todos cantando e bailando. Não aguentei, fui vomitar e visitar o banheiro novamente, sempre com o fiel fardado vindo atrás para me levar de volta. Um pesadelo. Chega um momento em que você já nem se importa mais com as criaturas medonhas que estão ao seu redor quando se está vomitando intensamente ou no banheiro evacuando igual um louco. Você simplesmente aceita. Aceita a dor, aceita as visões – sejam elas quais forem –, aceita o sofrimento, aceita tudo. Se entrega. Se rende. Depois de algumas horas de terror e das intermináveis e sofridas visitas ao banheiro, comecei a melhorar, comecei a voltar. O sofrimento aos poucos foi passando e, estranhamente, fiquei realmente bem. Muito estranho, definitivamente. Eram 4 horas da manhã e o Ritual tinha começado às 8 da noite.

No final, quase todos estavam recuperados e prontos para a bênção de encerramento, fechamento dos trabalhos e para um lanchinho. Antes de irmos embora, suco, sopa e pipoca foi o cardápio da noite. Um luxo, pensei. Dei graças a Deus por estar vivo.

Voltei com o João na garupa da motocicleta, me contando tudo o que tinha visto no Ritual e feliz da vida. Logo ele, que morria de medo de andar de moto. Eu ainda sentia, enquanto pilotava, fortes mudanças na minha percepção. A minha visão e audição estavam muito mais apuradas. Também não me saía da mente aquele rapaz sereno e risonho meditando tranquilamente sob o efeito do Chá. Como era capaz?

Mesmo jurando que esta seria a primeira e última vez que iria ao Santo Daime, ainda voltei lá mais três vezes para sofrer de novo. Se dependesse dessas minhas primeiras experiências, eu jamais teria procurado novamente o Chá. Mas acredito que tudo teve um propósito, uma hora certa para acontecer e talvez elas tenham sido a preparação para o que viria depois.

Um encontro muito mais tranquilo e profundo com a Ayahuasca já estava esperando por mim, mas desta vez seria em um retiro de três dias, muito diferente do Daime.

Por Jeferson Biela (www.ayahuasca.pt)


Biografia:
❈ O autor ❈ Seja a sua essência. Busque isso em tudo o que for fazer - a sua essência - a parte boa que rege direito a sua existência quando você a segue. Goste da sua essência e de tudo o que faz parte dela. Ame os seus Super Heróis, os seus joguinhos, brinquedos e lembranças da infância. Ame as suas viagens e aventuras. Brincar mais é o segredo de tudo. Jeferson Varnier Biela nasceu no Brasil mas encontrou seu lar em Portugal. Paranaense formado em Publicidade e Propaganda, morou muitos anos em Curitiba e desde cedo dedicou-se à exploração de tudo o que é novo. Novos lugares, novas ideias, novas emoções - ou experiências científicas como costuma dizer. Cresceu escalando montanhas e já na adolescência costumava viajar de carona e sem dinheiro. O primeiro salário gastou com um curso de pára-quedismo. Estudou, abriu e fechou empresa, vendeu a casa, viajou pelo mundo. Morou na Austrália. Fez tantas outras coisas até perceber que ainda faltava algo que plenamente preenchesse a sua Alma irrequieta. Alguma coisa precisava mudar. Habituado a uma vida cheia de recomeços, encontrou o seu verdadeiro reset na Ayahuasca. Experiências intensas com o Chá Sagrado o levaram a conhecer outros Universos para poder transformar o seu mundo interior. Percebeu que a maior aventura de todas estava em conhecer o seu eu mais profundo. Dar um novo rumo à vida passou a ser o seu maior propósito. Foram esses anos de experiências com o Vinho das Almas que o instigaram a escrever esse livro. Um relato verdadeiro, sem qualquer preconceito ou medo de se expor em demasia. Uma forma que encontrou de mostrar os imensos benefícios e transformações alcançados através dessa substância enteógena que significa, literalmente, manifestação do divino. Citando as palavras do seu grande mentor, o monge Paulo diPaula: "três dias tomando Ayahuasca fazem mais efeito do que três anos no consultório do psicólogo".
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Releases Lançamento do livro “A Gente Vai Morrer Mesmo" Jeferson Biela
Biografias A PIOR VIAGEM DE TODAS Jeferson Biela


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