BEATRIZ BALZI, PIANISTA
Com Eliana Monteiro da Silva (colaboradora)
Na primeira vez que vi Beatriz, duas coisas me impressionaram: seus olhos negros e vivos e sua fantástica leitura ao piano. Ela deve ter entrado alguma vez na sala do Instituto de Artes da UNESP onde era professora, ainda no Ipiranga em São Paulo, enquanto eu e o Fernando Carvalhaes, por volta de 1985, líamos meu ciclo de canções O Rei Menos o Reino sobre poemas de Augusto de Campos, na medida em que ia sendo composto; cada semana eu trazendo uma parte nova para ensaiarmos.
Escrevi e dediquei a ela o meu Movimento Eterno para piano solo, de três páginas, e marcamos um encontro. Ela colocou a partitura sobre a estante do piano; passou o olho com atenção, sentou e tocou-a inteira como se já conhecesse, explicando-me que adquiriu essa habilidade quando Ginastera chamava-a para ler seus rascunhos, ainda na sua Argentina.
Quando fui curador de música do Centro Cultural São Paulo, ela esteve comigo para marcarmos um recital com seus amados compositores latino-americanos e, já com 60 e tantos anos de idade, falava de seu namorado como uma adolescente.
Depois de examinar minhas partituras para piano solo, escolheu E pur si muove ‒ e não a que eu lhe tinha dedicado ‒ para integrar seu CD número VI, e ela se apropriou de tal maneira da partitura que entendia o final diferentemente de mim, passando a tocá-lo de seu jeito ‒ o que muito me lisonjeou. Quando viu o Caio Pagano tocá-la do meu jeito, veio-me pedir desculpas num gesto de tamanha humildade que me comoveu.
Eu respondi dizendo que o seu final já estava incorporado na partitura e que ficaria à escolha do intérprete. Afinal, nunca acreditei na autonomia da obra musical (este “parêntese na história da humanidade”, como diz Roger Caillois) e apenas forneci material para a sua magnífica performance.
Quando ela gravava no estúdio da Companhia do Gato, saudava-o dizendo: ‒ “Por quais telhados você tem andado?”, e sempre disponibilizou, generosa, suas partituras raras aos colegas e dizia que o ser humano tinha evoluído muito pouco.
Graças a Beatriz, a Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) resolveu me dar um prêmio, em 1986, quando ela acompanhou o Fernando em O Rei Menos o Reino, no auditório do Conservatório do Brooklin, do saudoso Sígrido Levental, e chamou a Letícia Pagano para assistir e indicar-me para o prêmio de “Melhor Obra Experimental”.
Certa vez, ela convidou-me para ir em sua casa, próxima à estação Santa Cruz do metrô de São Paulo, para levar-lhe um caderno com todas as minhas músicas para piano, e chamaram-me a atenção suas estantes repletas de manuscritos cuidadosamente classificados em pastas rotuladas. Ela sempre me mandou os programas em que tocava minhas músicas, no Brasil e no exterior.
Em 2000, foi ela que ganhou o prêmio APCA de “Melhor Instrumentista” e no dia da entrega, no Teatro Municipal de São Paulo, fez questão de ficar até o final só para ver o galã Tarcisio Meira.
Em 2001, eu e meu orientador Mario Ficarelli começamos a escolher a banca da minha dissertação de mestrado e fomos unânimes em escolher seu nome para titular. Telefonei, ela relutou; Ficarelli insistiu e ela aceitou, depois de uma longa conversa numa manhã de domingo. Semanas depois, às vésperas da defesa, sua irmã nos ligou dizendo que ela estava internada e não poderia mais fazer parte da banca. Em poucos dias, um câncer de pulmão recém-detectado matou-a impiedosamente e ela nem fumava.
Beatriz não teve filhos, mas sua morte foi chorada por muitos e deixou órfã uma legião de alunos que hoje figuram na cena musical profissional ‒ entre as quais Eliana Monteiro da Silva, autora da tese Beatriz Balzi e o piano latino-americano e colaboradora desta crônica.
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Biografia: Marcos Câmara de Castro é poeta, cronista, ensaísta e músico. Professor do Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, é compositor, musicólogo e professor de educação musical, regência e canto coral e etnomusicologia.
É autor dos livros "Fructuoso Vianna - orquestrador do piano" (Rio de Janeiro: ABM Editorial, 2003) e "Os lugares e as cores do tempo": música, sociedade e educação" (São Paulo: Editora Pharos, 2015) e "Poesia da Terra" (São Paulo: Ed. Patuá, 2018), além de capítulos de livros, prefácios, artigos acadêmicos e artigos de divulgação em jornais como Folha de São Paulo, Correio Popular, Revista Concerto, Jornal da USP, entre outros.
I Lugar na categoria no Concurso de Poesia Falada-1998 promovido pelo Departamento de Bibliotecas Públicas da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Seu livro sobre Fructuoso Vianna recebeu o I Prêmio da Academia Brasileira de Música de Monografia, em 2001.
Seu livro inédito de poemas "Poesia da Terra" foi classificado entre os quatro finalistas da 2a Maratona Literária/2018, da Editora 8 e meio. |