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NO GALOPE DA IMAGINAÇÃO DESEMBESTADA
MARCIANO VASQUES

Resumo:
O encontro de um menino com a sua felicidade maior: a imaginação, digna de uma riqueza insondável, um tesouro acumulado que torna-se a mais preciosa de todas as jóias.

     
NO GALOPE DA IMAGINAÇÃO DESEMBESTADA



     Eu era mais criança quando ela desembestou pela primeira vez. De lá pra frente tornou-se o meu corcel da alma, seu galope cortou ventanias e sempre transbordou de alegria o meu lindo coração.
     Lá ia a imaginação, meu bem, meu amor, minha eterna amizade, lá ia correndo entre eucaliptais, entre capinzais, entre lamúrias, fadas e risos enfeitados de ais. Lá ia, soberana, mostrando-me os caminhos mais afoitos, mais gratificantes, atrás de arbustos, ramos; lá íamos em carrosséis, em descascados caules de goiabeiras, em circos de lençóis e trens de tijolos e latas de óleo.
     Lá íamos de Andersen, meu Deus!, de Soldadinhos, de índios nas folhagens de verdes alisados no frescor de dias claros banhados de sol
     Incontáveis dias nos segundos do relógio antigo da parede, incontáveis horas em girassóis, em circunferências de fumaças, de nódoas de arco-íris nas bolinhas de sabão.
     Desembestada imaginação, e eu corria atrás e atravessávamos pontes de madeira, e apostávamos corridas, rompíamos trilhas e pelas mãos de mulheres róseas girávamos.
     Imaginação querida, viagens espaciais, viagens subterrâneas, seres alienígenas, de planetas esverdeados, e tudo servia de alimento para ela: o gibi, com suas páginas abertas, o cheiro da tinta da impressão, o arco, a lança, a capa, o anel.
     Tudo e íamos e um céu que nunca mais vi nem pude saber se continuou. Um céu azul de clarão de fogo de final de tarde, de lua vindo.
     Corcel, mais veloz que a Maria Fumaça, mais veloz que qualquer nave, e um porão, um sótão, e chumaço de algodão, e paineiras, e árvores altas e gritos amorcegados e noites de estrelas e uma palavra mágica que abre as portas de uma caverna, e um ser horripilante, um vagante, um pirilâmpico relâmpago que se foi numa tarde enfurecida de trovoadas e riscos luminosos num céu de azul cortante e olhos marejados de espantos diante da encantadora força da chuva do outro lado da vidraça e o as pedras de gelo no copo e a luz da luz.
     Quero que no aconchego da velhice ela retorne em forma de memória, memória aprendiz de odor de bolo no forno, de cheiro de carvão, de brilho de metal do peixe, de esmeralda nas águas dos fiapos de riachos dos girinos, do assustado e brilhante olhar da rã, da corda, da palha, da lã, do feltro, do tijolo molhado secando ao sol; o soldadinho de chumbo, de madeira, de plástico, tonificando na alma a idéia do herói, alicerçando o coração, despejando virtudes na infinita aventura do crescimento.
     Rica, bela, extraordinária, tive o meu maior tesouro, que mais vale que um tacho de moedas, um baú de jóias e um pote na ponta do arco-íris ou outras riquezas que se quiser. Vale como um feixe de fósforos de cor. Um valor sem medida.
     Imaginação que jamais me abandonou e sempre terei tanto que agradecer, que penso ter vindo só pra isso, só para agradecer.
     Desbloqueando mentes, rompendo cercas, varando farpas, novelos gigantes de feno, capins verdes de manhãs mais cristalinas que os olhos de um animal.
     Amores virtuosos e virtuais, poemas guardados, lábios adolescentes, róseos e úmidos de brilho intenso, e o primeiro chiclete e a primeira bicicleta, e uma corrida desenfreada em horas empoeiradas de rodamoinhos se formando na chegada da chuva, e correr aos gritos de alegria explosiva e os primeiros pingos fortes da chuva e a velha casa, e as teias das aranhas, e a janela de pintura antiga, e os passos temerosos no assoalho na calada emudecida da noite e sons nas telhas, e olhos de ninfa furando a lua, e o canteiro e a cantiga, e o cantil e a sede e a soda, borbulhando como um peixe que bailou veloz feito um risco prateado nas amareladas águas de um rio de se nadar.
     Lá íamos atrás dos vaga-lumes correndo sobre os troncos caídos quando a neblina aos poucos deixava o interior das folhagens e adentrava as trilhas, e íamos numa galopante aventura, e hoje, às vezes, quando me vejo atracado, um barco que sou, parado numa água de algas e arbustos e besouros cintilantes e moscas verdes de brilho varejeiro, uma água mansa, serena, eu, um barco, de madeira pintada de azul, repousando nas ondas circulares da água imóvel, ergo-me para a inesquecível aventura de viver e sigo o seu galope, o seu jamais cambaleante galope, e transformo-me naquele menino, minha doce, minha adorável companheira, a quem jamais esquecerei, por tanto que me deu, por tanta felicidade.

                                                                      MARCIANO VASQUES


Biografia:
Marciano Vasques é escritor, natural de Santos, e autor de Literatura Infantil. Publicou diversos livros, entre os quais "Uma Dúzia e Meia de Bichinhos", "Griselma", "Arco-Íris no Brejo", "Espantalhos", "Rufina", "Uma Aventura na Casa Azul" e "As Duas Borboletas". É também autor teatral.
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