Hoje de manhã, depois de deixar o livro sobre a mesinha de centro da sala e sentar-me para o almoço, veio-me à baila mais uma questão das muitas que me povoam a memória nestes meus dias de recesso invernal. Pensem comigo: se é realmente verdade que, no sentido orgânico, somos o que comemos, conforme querem nos fazer acreditar os nutrólogos e nutricionistas, não seria também verdade que, no sentido mental, somos o que lemos? Agora, qual das duas premissas melhor define a nossa essência humana e nos difere dos animais irracionais?
Ora, se os homens que são racionais comem e os animais que são irracionais também comem, ambos para continuarem existindo, que vantagem nós, humanos, levamos sobre esses pobres seres desprovidos de espírito e razão? A vantagem é que, ironicamente, apenas a nós, homens destruidores da natureza e por vezes da própria raça, foi facultado o dom do conhecimento por essa mesma natureza. Então, se naturalmente nós transcendemos os animais irracionais pelo ato de ler e não pelo ato de comer a resposta não está dada?
Assim, embora o aproveitamento eficaz da segunda premissa (ler, e ler bem) dependa da primeira premissa racionalmente levada a sério (comer, e comer bem), crível seria sermos o que lemos e absurdamente incrível seria sermos o camarão, o sarapatel, a rabada, a feijoada... que gostamos de comer, ou a caipirinha, a cerveja, o vinho... que gostamos de tomar.
Ruminante por natureza, a gazela saltitante come capim. É ela por isso um feixe de capim ambulante? Claro que não!
O leão – que é carnívoro por excelência - come a gazela saltitante. Depois de comê-la torna-se o leão a espevitada gazela comida, saltitante e de rabinho levantado? Claro que não, ora bolas!
Dom Pedro Fernandes Sardinha, o primeiro bispo do Brasil, foi capturado, assado na fogueira e comido pelos índios Caetés na Bahia. Depois da regabofe antropofágico tornaram-se os índios bispos de tanga, fundando bem no meio da mata a “CNBB – Confederação Nacional dos Bispos da Bahia”? Claro que não! Pelo menos a Igreja não registra isso.
Cito-me como exemplo. Depois de comer no almoço um suculento lombo de porco assado fui fazer a minha higiene bucal. Se por comer carne de porco, porco eu me tornasse como poderia eu limpar os meus dentes? Porco não zela pelos seus dentes, ainda mais com o uso de fio dental, escova e dentifrício.
Em resumo: somos o que aprendemos e acumulamos na memória e não a comida que comemos e que, por algum breve tempo, empanturra os nossos intestinos.
Parafraseando Victor Hugo eu diria: "O que temos 'e o que comemos' iremos deixar. O que somos irá conosco a qualquer lugar".
Heleno Reis – Minduri, MG, 20-07-2017
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