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Além
Europa Sanzio

Olho-me no espelho e vejo a velhice. E seja quem for que me encare, também a vê.

Todos pensam o mesmo: ele precisa repor umas peças. E não os culpo.

Em alguns, as marcas da idade soam bem, pois combinam com seu largo sorriso e seu jeito otimista de levar a vida. Nesses casos, as rugas transformam-se em poesia, sapiência e exemplo a ser seguido.

Para mim, esse otimismo não passa de fantasia. Criam em suas mentes que a suas vidas são significantes e que tudo está confortável, e como nossa psique tem um poder imensurável, faz essas pessoas crerem na ilusão que elas próprias criaram.

Eu não tenho tempo para conto de fadas. Optei pelo caminho amargo de levar a vida, porém, realista.

Que esses velhos sejam felizes com suas vidinhas, mas, eu digo, com a certeza sapiente que esperam de um velhote, só é feliz quem tem o que amar.

Quando afirmo isto, perguntam-me se sou assim, tão ácido, como sou porque não tive quem ou o que amar. É a verdade. Porém, há algo mais. Eu não amei porque conheci o amor. Mas eu não o vivi. O amor que vi, pertencia a outras pessoas. E foi o sentimento delas que me fez idealizar o amor ideal, o exemplo, o que eu precisava ter em minha vida. Qualquer coisa diferente daquilo, seria uma mentira.

Eu, por si só, não posso ter vivido o tal do amor, mas o encontrei naquela jovem e naquele homem já maduro, e, desde então, não me conformei com nenhum outro amor que não fosse como aquele.

Depois de conhecê-los, até vivi uns romances, mas não me satisfazia, pois nada era igual a Eles.

Mas o que tinham de tão especial, afinal? Ora, para mim, eles eram um livro de romance. O best seller. O marco da passagem de uma escola literária para outra.

Veja bem, eu ainda era um mancebo quando me deparei com esses dois. Primeiro, com Ela. Tinha acabado de sair da escola, veio para a cidade em que eu morava cursar universidade, tinha uma enxurrada de problemas familiares, adorava fazer artesanatos e era dona da maior coleção de tranqueiras que já pude presenciar.

Depois, veio Ele. Um homem já feito, na casa dos seus cinquenta anos, nunca sabia o que dizer, era casado e odiava que as pessoas dissessem que sua vida estava pronta, quando na verdade ele sentia que ela nunca havia começado de fato.

Eu sei lá como a vida uniu os dois, mas Ele vinha todo fim de semana vê-la no quitinete apertado recém alugado por ela. Depois, começou a vir nos feriados. Chegava sábado de manhã e só saia domingo à noite. Não demorou muito para começar a chegar sexta à noite e sair segunda lá pelas quatro da manhã, como quem quisesse aproveitar cada dormida ao lado Dela.

Depois me disseram que ele morava em outra cidade, a que Ela havia deixado para trás, e muito provavelmente lá haviam se conhecido. Depois, sem ninguém me alertar, reparei no grosso da aliança de ouro na mão esquerda do homem, e tudo passou a fazer menos sentido para mim.

Aproximei-me da garota pela pura intenção de conhecer a sua história. Ela nunca deixou que eu soubesse muito, mas soltava comentários que fizeram o meu conceito de amor se formar.

Quando eu a visitava, às vezes reparava que Ela vestia as roupas dele. Semanas depois descobri que ela sempre pedia para que ele deixasse uma de suas camisetas com Ela, e, então, a garota dormia e às vezes passava o dia imersa no cheiro daquele homem, e, quando Ele retornava nos finais de semana, tomava a camiseta para si e a levava consigo, usando-a e, dessa vez, sentindo o cheiro Dela. Ah, e Ele às vezes se perdia enquanto trabalhava, ao pensar que o corpo nu Dela havia estado naquele mesmo tecido que agora o cobria. Não havia nada mais erótico e excitante para Ele.

Já para a Ela, a coisa mais extasiante que poderia haver era quando Ele chegava sexta à noite e ela estava deitada na cama, sonolenta, e ouvia a porta se abrir, o chuveiro começar a escorrer água para, minutos depois, Ele adentrar o quarto e dar um beijo em sua testa, afagar o seu ombro e subir o edredom até o seu pescoço, para depois deitar-se ao seu lado e dormirem juntos, sem Ele perceber que Ela vira tudo de olhos fechados, enquanto sentia seu fresco cheiro de sabonete.

Em dias de chuva, eu o via correr até o ponto de ônibus com uma sombrinha, esperando por Ela, que descia do automóvel abarrotada de sacolas de feira, e Ele apenas a seguia com o guarda chuva protegendo a cabeça Dela, deixando que Ele todo se banhasse de água.

Ele era louco pelo batom vermelho que Ela usava, e sempre carregava em algum dos seus bolsos um guardanapo que Ela havia carimbado de beijos por completo. Quando estava sozinho, antes de dormir sem Ela, beijava aquele pedaço de papel com todo o ardor possível e lembrava do gosto e da cor Dela.

Nas madrugadas de domingo para a segunda, eu ouvia o motor do carro Dele ligar, e eu sempre ia para a minha janela conferir a despedida Deles dois. Depois de um longo beijo de saliva e língua, Eles se desgrudavam com pesar e Ela corria para dentro da sua minúscula casa, pendurar-se no parapeito da varanda de seu quarto e espremer os olhos em direção ao horizonte, olhando com toda a atenção o trajeto que Ele fazia. Após o perder de vista, sempre via que Ela se desgrudava da janela, dava de ombros e enxugava uma lágrima no canto do olho, que insistia em cair, como se nunca mais fosse voltar a vê-lo. Depois Ela se recolhia para o quarto, mas eu tinha certeza que não conseguia mais pegar no sono.

Após meses, ficaram tão loucos um pelo outro que foram até uma praia, que ficava a horas da cidade, e se casaram não oficialmente. Soube disso quando a indaguei sobre uma foto colada em sua geladeira, quase imperceptível em meio aos vários imãs e recados que estavam grudados. Ela estava com uma coroa de flores, uma saia branca e longa, se curvando de rir enquanto ele apenas a segurava por trás.

Depois desse evento, notei que Ele e Ela passaram a usar um anel de arame, muito provavelmente feito por Ela própria, na mão esquerda. Apesar disso, eu sabia que Ele ainda era um homem comprometido com outra.

Ela me contava que Ele era difícil de se abrir, assim como Ela, mas ambos nunca deixaram os silêncios acontecerem. Isso porque, dizia Ela, o silêncio entre Eles era reconfortante, e não há nada mais prazeroso do que encontrar alguém para dividir somente o nada. Por isso, o amava.

Ele dizia para a garota que Ele era muito individualista, não conseguido dividir nem mesmo a mesma cama com outro alguém, mas Ela era a pessoa para se compartilhar a vida. Por isso, a amava.

Um dia qualquer, e que aparentava não ter nada de bom para vir, Ele resolveu que a amava demais para não ficar com Ela para sempre. Por isso partiu para a sua cidade decidido que daria um basta na sua antiga vida.

E Ele realmente deu. Ela me contara que Ele havia rompido com a mulher, discutido com os filhos, largado o emprego e feito inimizades com todos os seus velhos amigos, pois nenhum deles compactuava com o que consideravam uma loucura.

Onde já se viu, um homem feito deixar sua família para se aventurar com uma adolescente qualquer? Todos se perguntavam. Com todos, quero dizer a cidade inteira. Que já não era grande e vivia de viver a vida alheia.

Ele chegou a retornar para o quitinete da mulher que amava, e, naquele dia, fizeram amor. Já se sentiam casados e indestrutíveis, pois se amavam, e se queriam, e se tinham para sempre.

No dia seguinte, um dos filhos dele ligou chorando, e Ele, que ainda tinha algumas burocracias para resolver na cidade que vivera a sua antiga vida, retornou.

A garota acompanhou a sua partida com o mesmo ritual de sempre. Escorou-se no parapeito, estreitou os olhos até o perder de vista. Depois, desprendeu-se, deu de ombros e passou o dedo pela lágrima no canto do olho, que insistia em descer como se nunca mais fosse voltar a vê-lo retornar, e, de fato, nunca voltou.

Ele afagou o filho e resolveu o que tinha que resolver. Na noite da mesma madrugada que havia partido, voltou para beija-la e dizer que a amava. Mas algo atrapalhou o seu caminho quilômetros antes de cruzar a linha da cidade da sua nova vida, onde havia deixado Aquela menina, mulher, que fazia dele alguém feliz. Era como se algo quisesse que ele ficasse para sempre preso ao passado, quando só queria ter o seu futuro com Ela. Querendo-se. Tendo-se.

Ele entrou em estado vegetativo no leito de um hospital. Ele, que não tinha mais amigos nem família por conta da sua decisão julgada insana.

Mas o que havia restado para Ele era o seu tudo; ela.

A garota dormiu todas as sete noites ao lado dele, deitada na cama do hospital, mesmo sendo terrivelmente proibido. Ela segurava a sua mão e deixava escorrer o único fio de lágrima que Ela se permitia ter durante todo o dia. Ela aparava a sua barba e depois deixava uma marca do seu batom vermelho colada em sua testa.

Completada uma semana, em uma madrugada, solitária como a que Ele havia a deixado pela última vez, Ela acordou com as máquinas anunciando que Ele estava deixando-a.

Depois disso, um cosmo inteiro sem Ele se tornou demasiado demais para Ela.

Nem sei quantos dias depois, talvez não houvera de passar nem um mês, Ela também se foi.

Ela não levantou nenhuma lâmina contra seu pulso. Ela não se atirou de nenhum prédio alto. Ela não se jogou na frente de nenhum carro.

Ela, com seus dezoito e poucos anos, não aguentou. Seu amor era tanto que a matou fisicamente e biologicamente.

Morreu sentada em uma cadeira de balanço, com uma manta sobre suas pernas, o anel de arame que Ele usava em um dos dedos e o guardanapo de beijos enfiado em um dos seus bolsos.

Ele a matou? Ela se matou? Ela deixou que isso acontecesse? Estresse? Remorso? Nada disso. Ela apenas permitiu-se amar de mais, e o amor a consumiu. Apesar disso, tenho certeza que ambos morreram mais felizes do que nós humanos, que não alcançamos a linha que separa o sentimento da nossa própria vida.

Depois disso, meus caros, tornou-se impossível, para mim, viver uma história de amor com alguém. Essa história transformou-se em meu exemplo do que é amar, e, em toda a vida, nenhuma mulher me fez sentir que a sua ausência eterna faria meu corpo parar de funcionar, fisicamente e biologicamente.

Entendam, é um amor que vai muito além de um eu te amo. É o seu corpo clamando pelo outro. É o respirar que se afoga sem o outro.

Perante a isso, rejeitei todos os eu te amos que recebi em vida, certo de que talvez eu morresse só, mas, que assim fosse. Ao menos não morreria iludido ao pensar que amei sem ter amado.

E aos que se orgulham de ser imune ao amor, aqui estou eu, velho e resmungão, vivo, para dizer com dor que sobrevivi ao amor, pois nunca o tive.

Que seja.


Biografia:
Leio desde criança, quando comecei a achar o mundo enfadonho em demasia. Escrevo desde a adolescência, quando senti a necessidade de dissertar sobre aquele mundo tão tedioso. Prazer, sou Europa!
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