Quero fazer um agradecimento publicamente, aliás, já deveria ter feito há muito tempo. Entretanto, “sempre” é o tempo apropriado.
Na boa, quando ousei em te habitar, eu esperava algo melhorzinho, vi aquela cara de joelho, fiquei apreensivo, será que vai dar certo? Será que com o tempo a cara não melhora um pouco? Minha progenitora mentia descaradamente: Que coisa bonitinha! Com o passar dos anos fui descobrindo que mãe é igual coruja. Pois então, já que firmamos um pacto, eu e tu, fomos levando da maneira que dava. Não foi fácil te ver caminhando com as próprias pernas, algo que me deixou nervoso, mas aí, dando certo, esfolava aqui e ali, acabou o problema. E pra falar então? Falavas coisas incompreensíveis tentando imitar os mais velhos, que na época pareciam gigantes. Descobri com o tempo que tive muita paciência até te ver grande igual todo mundo. Já éramos íntimos, pois compartilhávamos até a mesma sombra. Veio a adolescência, coisas terríveis aconteceram no teu corpo. Eu já fiquei meio de butuca pra onde tanta estripulia iria dar. Fiquei numa confusão danada, pensando que tinha entrado numa furada. Coisa minha, quer dizer, coisa nossa. Mas passou. Ufa! Graças a Deus. Ficamos adultos, eu e tu, fiz um balanço do estrago e até que dava pra reparar uma coisa e outra e tocar o barco em frente. Afinal, nossa parceria era obrigatória e teríamos que ir pela estrada o mais longe possível. Era uma obrigação. Fizemos um acordo lá atrás quanto tu tinhas cara de joelho. Há algum tempo vi na tua mente, ah! Só pra fazer um parêntese nesta nossa conversa: mente vazia tu nunca tivesses, ainda bem, mas teve coisas que tu pensavas e ainda pensas, que me faça o favor! Preocupa-me muito! Hoje o teu corpo não aguenta certas peripécias. O que tu tens que fazer é agradecer. Tu não reparaste na nossa idade? Claro, nossa, estamos juntos nesta desde o início! Olha bem pras tuas pernas, ainda te carregam pra cá e pra lá. Tu reclamas de dor, pois é um bobalhão de carteirinha. Quantos gostariam de ter esta alegria de caminhar com as próprias pernas? E este teu coração que precisa de uns remedinhos bobos pra funcionar direitinho? Muitos estão na fila de um transplante, por que o coração tá dando os cocos. Nem diabetes tu tens? Tu não sofres de glaucoma. Tu enxergas longe até o que não deve! E esta barriga? Come menos e dá um tempo na cerveja, tá reclamando do quê? Tu, por acaso sabes o que é hepatite? Já ouviste falar daquela terrível doença, que não vou falar o nome, pois sei que tu és muito cagão? Pois então, qual é a reclamação agora? Estes dias eu olhei na tua mente, tu estavas achando que era jovem e cheio de energia. Esqueceu cara pálida, passamos dos sessenta, têm outras coisas importantes pra pensar também. Agora é hora de agradecer e retribuir. Não adianta! O tempo não volta! Agradece a Deus por este corpo mais ou menos que tu tens, quer dizer, nós temos e que funciona perfeitamente. (Só um pouquinho. Terei que dar uma pausa no texto, pois tenho uma conversinha rápida com “um carinha” aqui de baixo: Tu não te manifestas, teu passado não te dá o direito nem de dar palpite. Fique olhando pra baixo com esta falsa pose de humildade). Voltando. Não queira saber o que é ficar numa cama de hospital por longo período, ou não ter autonomia. Tu és um felizardo! Agradece a Deus pela saúde que tu tens. Um segredo que vou te revelar, já que somos extremamente íntimos: Têm pessoas que queriam ser como tu e ter a vida que tu tens. Então meu amigo, não me venha mais me encher a paciência com esta crise existencial. Agradece a tudo que tu tens e no que tu te transformaste. Gratidão é a palavra chave. Olha para o teu lado ao invés de olhar para o teu umbigo. E que seja a última vez que eu tenha que te falar estas coisas. Agora, levanta deste computador que temos muitas coisas a fazer. Chega de mordomia. E sem reclamar de dor nas juntas. Estou te habitando todo este tempo e não fui o culpado. Lá atrás eu te avisava. Agora aguenta. Eu tô tranquilo. Quando tu deres os doces, eu caio fora numa boa.
Ah, em tempo. Voltaste a ter cara de joelho, igual no início. Cheio de rugas. Tô rindo por dentro, quer dizer, nós estamos!
Sérgio Clos
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