Sozinho eu sou
E sozinho eu estava
No exato momento
Em que todas as faces da realidade
Puseram-se a minha frente
Como faces das cartas de um baralho
Que eu não quis jogar
Com elas nas mãos
Corri até a beira do abismo
Mas não me atirei
Airei sim a elas
Uma a uma, com satisfação
O dois de paus da minha inércia
A dama de copas da minha paixão
O rei de espadas das minha aflição
O ás de ouros da minha utopia
Todas, bem devagar
E cada uma delas traçou seu vôo perfeito
Aerodinamicamente harmônico
E sumiram no fundo infinito daquele abismo
E aquele momento era suavemente poético
E a angústia perdeu lugar para o sonho
E eu sonhei
Sonhei com tudo o que há de bom
E com o que há de melhor
E com o que há de melhor ainda também
Com os carinhos dela eu sonhei
E dentro da minha casa empoeirada
Diante das pia de louça para lavar
O meu sonho esteve comigo
E era meu e de mais ninguém
Ou eu já era dele
Já que me pôs no seu colo e me acalentou
E então pensei em todos que estariam sós como eu, naquele momento
E em pensamento convidei a todos a atirar seus baralhos com alegria
E não me senti mais só
E senti felicidade sem fim
Passados os momentos de euforia
Resignado, os alertei
Muito cuidado, pois cartas de baralho da realidade jogadas ao vento
Podem de repente virar boomerangs
Batendo no peito, em cheio
Fazem doer.
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