Ensaio - tomada 1
Disseram-na pra sair da cama. Era o que sempre diziam. Sentia seu corpo derretendo imerso no colchão. Como tinham a audácia de mandá-la sair assim? Como sugar todo o líquido, recompor a matéria e montar o corpo de novo para levantar-se? O teto parecia triste. A janela mostrava um dia triste. Aquele pequeno aparelho preto e fino parecia o maior contato com seres humanos que conseguiria ter naquele dia. Se ao menos conseguisse tomar um banho e sentir-se escorrendo pelo ralo…
Ele estava de coração partido. Ela havia partido sem olhar pra trás. Como alguém que está se decompondo pode manter alguém inteiro? Sem condições de sustentar o insustentável. Ele não entendia o peso do mundo. Um peso que apenas ela sentia. O peso que essas relações entre pessoas tão opostas representam. Vivia num mundo mágico. Ela já havia sentido o mundo real muitas vezes. Capricorniana. Alma velha. Aquariano. Ar.
De repente conseguisse tomar um banho. Tocar violão. Tocar sua alma. Escrever. Fazer algo que fizesse-a sentir viva novamente. E o que seria sentir-se viva? Por que apenas respirar não era suficiente?
Mandaram-na esconder-se sob roupas. Roupas feitas pra uma medida que ela não tinha. Opressoras. E que tinha que andar num cenário cinza. Todos os dias, Correndo não se sabia para onde. Contando os dias para que tudo aquilo acabasse. E o que era tudo aquilo? Por que tinha que se manter naquele roteiro? E quando acabasse? Por que esse desejo imenso do fim? O que era o fim? Onde tudo aquilo ia dar?
Caminhava como se o meio fio fosse a corda bamba de um equilibrista no circo. Ah, o circo! Que alegria naquelas cores! E onde estão as cores desses prédios? Onde está o equilíbrio nessa desigualdade?
Resolveu sair. E por um momento saiu sem pensar… O que tinha deixado por fazer. Aonde queria chegar. Porque o caminho parecia tão árduo e o fim soava como algo tão doce. Não, não esse fim. Não o fim precoce. Mas aquele fim que não tem fim, sabe? Aquele horizonte que você sabe que abre para algum lugar, mas que por enquanto é como se fosse perdido na visão limitada.
Nua. Sem sinal. Era assim que queria estar. Por um instante que fosse… Fitou o espelho. Sorriu mecanicamente. Ensaiou alguns sorrisos. Saiu.
tomada 2
Sem tomada. Sem bateria. Sem sinal. Não conseguia… Conectou o aparelho à tomada. Que mundo enorme se escondia atrás daquela tela. Quantas pessoas vivendo tantas coisas cada uma em seu mundo. E cada uma com sua tela... Esperando sob a mesa do bar. No bolso. Sob a sua vista. Largada esquecida num chão de roupas arremessadas num transe… Mas estavam todos vivendo. De alguma forma. E o mundo não era só virtual.
Ela olhava incansavelmente pra’quela tela a fim de receber alguma notícia do mundo exterior. De uma pessoa específica, na verdade. E não era notícia do tipo “estou bem”. Mas do tipo “confie em mim”. Como confiar em alguém que não olha as mensagens há uma hora? Já se iam duas, quase três... Muitas roupas são arremessadas em transe num período de uma hora. Calou um choro. Ficou quieta. Cansada de tentar não mais racionalizar aqueles sentimentos. Mas com indisposição de sentí-los.
Lembra daquela mulher que havia partido? Ela mesma. Já tinha retornado ao mesmo caminho em que encontrara aquele homem. Em pouquíssimo tempo, aliás. Um tempo que serviu apenas para sentir saudades. Dele. Do caminho não. E quantas roupas eles arremessaram desde então….
Teve um outro cara. Faz tempo. Vamos chamá-lo de Jerry. Mas ela é daquelas pessoas que nunca superam. Que uma lição é suficiente pra nunca mais. Tiveram um lance rápido e muito profundo. Pra ela. Pra ele foi só mais um lance. Embora demonstrasse o contrário. Aquele cara foi realmente avassalador… Deixou essas marcas estranhas. Essa desconfiança constante. Insegurança. E qual capricorniana vive sem segurança?
Jerry queria provas de amor. Mas ele não sabia que palavras não provam nada. Na verdade ele sabia, as usava dessa forma. Pra ela não era assim. Só conseguia dizer do que sentia transbordar até encher sua boca e precisar expelir. Ele cobrou tantas palavras como se ela trabalhasse para o seu jornal. E ela se sentiu mal por precisar ter que sentir alguma coisa. Achou que nunca seria capaz de sentir. Até que esse mal estar transformou-se num sentimento diferente. Aquele que Jerry queria ouvir...
...
Muitos questões pairavam em sua cabeça enquanto olhava para o aparelho. Questões já até discutidas com ele anteriormente. O que seria esse amor? Era amor? Era pra doer? Por que ela não conseguia confiar nunca? Por que era tão difícil se entregar? Esse amor não era um tanto egoísta uma vez que voltava pra si um sentimento bom? Mas se não for pra doer nem pra trazer um sentimento bom é pra quê?
Esse aparelho maluco que esconde um mundo de pessoas vivendo suas vidas provoca reações estranhas. Quantos sorrisos ao olhá-lo. Ao ouvir algo que vem dele. E qual vida enviou aquele sorriso? O sorriso que ele escondeu no bolso ao vê-la dias atrás.
Jerry não gostava quando o aparelho sinalizava. Olhava com um sorrisinho do tipo que sabe alguma coisa. Quando ele desapareceu ela desativou todos os sinais sonoros. Sons que remetiam a esse tempo dos grilhões. Não gostava que ela saísse, mas também não saíam muito juntos. A todo momento achava que ela estaria com alguém. Não poderia estar. Nem com seus amigos. “Você deveria ser a única presença da minha solidão Jerry?” Com certeza não. E ela sabia disso. Mas sempre teve aquele sentimento de tentar entender as pessoas. O comportamento delas. Destrinchar ao fundo e trabalhar na desconstrução. Mas não precisava daquilo. Não mesmo. Demorou a perceber…
Pensava inúmeras vezes que não devia se relacionar com ninguém. Livraria-se de vez de qualquer sentimento inseguro. Não teria mais que lidar com questões. Ela, que sempre lidou com afirmativas.
Ao recuperar sua autonomia viu-se sozinha e feliz. Mas ele se apoiava nela. Ela ia andando e ele estava na mochila. Com toda sua bagagem. E ela vestiu essa mochila e...
…
“a capricorniana se decepciona facilmente e se queixa muito do fato que os homens não lhe oferecem a necessária ‘segurança’.”¹
“não lida bem com sentimentos, que considera pouco seguros.”¹
“[o homem de aquário] não sabe lidar com seus próprios sentimentos e pode parecer bastante frio nos relacionamentos.”²
“nunca irá lhe dizer quando você o verá de novo (...) e não quer ‘compromissos’.”²
¹http://somostodosum.ig.com.br/conteudo/c.asp?id=00874 (11/09/2015 22:40)
²http://somostodosum.ig.com.br/conteudo/c.asp?id=873 (11/09/2015 22:40)
...
Na verdade ele era um romântico incurável. Sonhava em trocar votos na praia. E a fez sonhar. Ela de terra firme, pisando na areia. É de se pensar. Terra e ar. Ele tartaruga. Ela árvore. Ambos de longevidade duradoura. Entretanto ele vivia a desbravar o mar. Enquanto ela estendia suas raízes cada vez mais profundas, a fim de estabelecer uma copa alta e frondosa. Ela de alturas. Ele de profundezas.
Parecia tão mais fácil negar tudo isso… Afinal ela já havia passado a vida a negar que pudesse nutrir sentimentos dessa natureza. E por que nutria agora? E o que era essa ‘necessidade’ louca de se conectar?
…
Recebeu o primeiro sinal depois de um tempo. Lembrou do começo daquela história, De quando não conseguia se conter em saber o que ele estava fazendo. Quando queria saber imediatamente no que aquele lance ia dar. Ansiosa. Ansiedade deve ser a palavra. Essa mente que não para nunca. Essa mania de querer controlar tudo. De ser onisciente. E não é um desejo de controlar a vida da outra pessoa. Mas uma necessidade de entender e firmar isso que estava tentando tirar sua firmeza. Essa pessoa que de repente chega e a todo momento parece que os trilhos estão próximos demais e vão bater.
…
Sabe quando você não sabe o que dizer e manda um ‘emoji’? Parece vontade de estabelecer uma conversa que não existe. Algo que você quer dizer e nem sabe. Ou realmente nem tem nada a dizer. Apenas quer ter aquele contato estabelecido. Contato estranho esse. Que deveria se dar pelos olhos. Olhares que permanecem distantes. Embora existam vidas acontecendo atrás dessas telas que os conecta. E essas vidas com seus olhares. Mas que não vão se cruzar. Não agora. Não a tempo de dizer o que só esse cruzamento seria capaz.
Sim. Ansiedade deve ser a palavra…
Que sensação estranha esperar por um olhar. Por uma visualizada. Que sentimentos estranhos todos esses.
Sentia-se frágil e indefesa. Havia cansado de se defender de seus próprios sentimentos tentando convertê-los com a razão. Só restava sentir… E aquilo lhe apertava o peito. Contraía vasos. Doía. Doía em lugares que não são descritos na anatomia.
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ansiedade (do google)
substantivo feminino
1. grande mal-estar físico e psíquico; aflição, agonia.
2. desejo veemente e impaciente.
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Algumas coisas resolveram doer mais que o normal aquele dia. Tentou ela mesma se consultar e descobrir a causa e um possível diagnóstico.
Desde sempre desacreditara do amor. Esse amor romântico e idealizado que tanto era pregado nas produções culturais em geral. Conseguia enxergar apenas o lado dolorido daquilo tudo. O sofrimento que eles impunham a elas ao denominarem-nas românticas. A mentira que muitas delas tomavam como verdade para continuar numa relação fracassada. Desculpa, Cazuza, mas mentiras sinceras não me interessam!
Se viu com catorze anos. De frente pra uma câmera de vídeo. Atrás dela um professor tentando explorar suas angústias daquela percepção tão amarga do mundo doce. Ao lado duas amigas. Á sua esquerda uma disposta a provar. À direita uma disposta a se jogar. E no centro ela. Já cuspindo. Sem ao menos querer provar. Jamais.
Sabe aquele prato que todos insistem em dizer que é uma delícia? E ele até tem uma apresentação bonita com confeitos, temperinhos ou qualquer coisa que possa fazer com que seja comido pelos olhos. Mas ela avaliava não pelo que via. Conseguia enxergar que alguma coisa ali não estava tão boa quanto parecia ser. A textura era estranha. Tudo desmoronando coberto com uma linda calda de chocolate crocante para tentar parecer estruturado. E o gosto com certeza era ruim. Algo a dizia que era péssimo! E queria vomitar todas as vezes que pensava nisso. Como se em algum momento da vida já tivesse comido e ainda lembrasse com enjoo. Mas não. Nunca provara e nem pretendia. Um instinto talvez. Como um rato. Que parece selecionar muito mais o que não comer do que o que comer propriamente.
Aquele enjoo foi subindo de tal forma que tomou conta da sala. Uma ânsia de colocar tudo pra fora. Simplesmente vomitou. Ali. Voltada praquela câmera. Ainda hoje não sabe onde foi parar o vídeo e pra que ele serviu. Um experimento com adolescentes talvez.
Era um professor jovem e cordial. Pastor e dando aulas de religião em um colégio cristão. Engraçado ela ter passado a vida escolar naquele ambiente tão fechado. Deve ser por isso que vomitava tanto. Não dava para resistir tanta coisa indigesta descendo goela abaixo. Acho que foi bem por aí. Mais ou menos nessa época que ela começou a desenvolver esse hábito. Até que, em determinado momento, sentiu que podia se controlar. Vomitar em tudo não era assim tão agradável. Mas sempre manteve um refluxo.
Mas o refluxo carrega consigo o que foi empurrado goela abaixo e ácido. Era muito dolorido conviver com aquela acidez. Uma sensação de corrosão interna. Como se a qualquer momento pudesse implodir.
Anos de refluxo. Tentou terapia.
divã
Já tinham se passado pelo menos dois anos depois do incidente com a câmera. Os refluxos não paravam de a corroer. Toda aquela dor internalizada que não conseguia sair. Uma sala não muito receptiva. Dois sofás. Um voltado de frente pro outro. Uma mesinha com um relógio. Um tique-taque de dar nos nervos! Um momento de uma vida. Aquela mulher magra e nariguda à sua frente. Pensava em quanto tempo ainda conseguiria aguentar sem ser totalmente corroída por dentro. Há anos não conseguia mais vomitar. E aquela presença não lhe fazia sentir confortável. Aquela obrigatoriedade de ter de fitá-la nos olhos. Por incontáveis minutos. Aquele tique-taque. Aquele olhar insistente a lhe implorar alguma coisa.
Posso morrer?
Não.
Mas se a vida é minha como não decidir por ela?
Doce ilusão achar que a vida é sua querida. Não foi você quem a concebeu. E agora você está no jogo. Adapte-se a ele. E para isso você precisa viver. Não há outra escolha.
Estou sofrendo.
Ninguém disse que seria fácil.
Mas eu não escolhi.
Oh… pobre criança! Viva! É tudo o que você tem que fazer!
“Viva!” “Viva!” - essas palavras ecoavam em sua mente perturbando-a cada vez mais. Teria mesmo que se adaptar àquele mundo doentio? Teria mesmo que viver todas as experiências que a propuseram viver?
Não existia liberdade. Era uma falsa sensação de poder controlar, de ter doma sobre sua vida. Mas sua vida sequer era sua. Era um jogo. E não queria jogar.
…
Não me sinto livre ao seu lado querida. Mas não quero deixar de estar.
Ooh meu querido…! Deveria sentir pena da sua indecisão?
…
Cerveja amarga. Alguns tragos de cigarro. Uma tela em branco e muitas letras a correr. O show já tinha acabado. Ou talvez não. Aquele aparelho perturbador mais uma vez. “Não atenda! Eu sei melhor que você que não é isso o que você quer!” - mais alguns goles da bebida amarga. Após devorar um vinho levemente suave.
…
Eu te amo. - era o que a voz do outro lado conseguia sussurrar. - de alguma forma sabia que aquilo era real. Mas não podia admitir. Um amor de mentiras. Um amor que fugia das suas definições metódicas. Não precisava de um amor! De nada para abalar a sua segurança. Já havia conseguido se livrar não?
…
Aquele dia em que guardou o objeto no bolso talvez houvesse algo de errado mesmo. Porque depois ela veio a saber. Não da melhor forma. Mas da forma de uma mulher angustiada que se sente traída. Da forma de uma pessoa que sempre age com sinceridade e sente seus cúmplices a entregando à forca.
Desde sempre soube que aquilo não daria certo. Mas de alguma forma quis insistir. Parecia dizer a si mesma que precisava viver aquilo. Precisava conhecer seus limites e viver o “amor”. Não aquele que já tinha muito bem definido. Mas esse de tirar a razão. Esse que a fazia sentir-se completamente sem sentido de nada. Tomada por algo que a fazia querer morrer todas as vezes que se imaginava presa a uma pessoa que não lhe apresentava algemas.
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Aqueles goles já não pareciam tão amargos assim. Insônia. Uma gaita desafinada. Uma lágrima que não ousava sair na madrugada fria. Garotas não choram, sabiam? E olha que a sociedade ensinou os homens a não declararem seus sentimentos. Oh, pobres homens! Que pena tenho eu de vocês! Presos em seus casulos da não aceitação. Triste saírem do seu trono e perceberem que de repente o mundo não está mais querendo girar em torno de suas genitálias, né?
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Lá estava ela vendo um escroto sendo aberto com um bisturi. Rapidamente os testículos foram expostos e as fáscias e túnicas foram descobertas ao corte do mesmo bisturi. A exposição dos testículos nus e indefesos. Rasgar um cremáster em fúria. Seguir o epidídimo. Sentir o canal deferente até o fim possível e fazê-lo colabar arrancando-o com o testículo. Repetir do outro lado. Fim da castração. Próximo.
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O mundo parecia cruel demais pra ela. E cada vez que tentava se relacionar com pessoas, das mais diversas formas possíveis, sentia que não era seguro. Nunca havia sido. E nunca seria. Mais um gole longo.
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Um outro testículo arrancado.
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Uma dose de auto estima. Um gole de álcool. Um andar apressado. Um olhar de consumir o mundo. Nuvens e projéteis. Erros de ortografia. Ninguém vai ler essa merda.
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O quarto tinha duas paredes roxas e uma branca. Uma frase de auto ajuda em uma das paredes roxas. Um cajón. Dois violões. Uma viola e uma televisão velha. O casal ma\is perfeito do universo dormindo ao quarto ao lado. Uma cerveja sobre a mesa de digitar. Um crânio que era telefone e piscava. A coisa mais interessante da noite. Um ônibus da terra da rainha. Uma risada abafando um choro interminável! Desligue o computador e estabilizador.
Você não deve usar se tiver alergia. Um caderno com imagem de Brasilia. Inútil. Também não deve usar se tiver perda da função dos rins. Queria saber alguma coisa sobre afetar os testículos. Gravidez ou amamentação. Evite o uso simultâneo de outras drogas. 550 ml de cerveja. 4,7% de álcool.
…
Você está bêbado?
Aah…! Você me conhece. Sabe que sim.
E ela conhecia. Talvez mais do que ele mesmo. Tiveram passado tantas coisas juntes. Sabia tanto de suas limitações. E ousava dizer que sabia tanto de tantas outras pessoas que a procuravam. Sim. As pessoas a viam como uma espécie de refúgio.
Miga aqui. Miga ali. Miga. Sempre miga. Um rosto lhe perseguia. E um espelho. Acho que o espelho não mais. E aquele dia havia descoberto que servira de inspiração pra outra mulher vítima desse espelho. Sorriso pela libertação de todas!
Talvez exista uma graduação alcoólica para escrever? Parecia não saber fazer mais nada que não passasse pelo crivo de sua malha de amigues. Perdição! Ao mesmo tempo em que era espelhada era espelho. Era sentimento e razão. Nem era nada. Pra si mesma havia se definido como não sendo.
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