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ESTRADA DE POEIRA
Caliel Alves dos Santos


Pela manhã Seu Zé acordou bem cedinho com D. Maria. A mulher se pôs a fazer o café enquanto o homem dava de comer aos porcos. A lavagem foi lançada por cima da cerca de pau a pique. Depois foi até o galinheiro e pegou a galinha mais gorda. A mulher ao ver a dita, deu um esbregue em Seu Zé, Logo a poedeira? Questionou ela mal humorada, o velho pôs a galinha de volta no lugar. Pegou um franguinho magricela.
    D. Maria colocou o pé nas asas do frango e sangrou o pescoço do penoso encima de uma cabaça. O homem tomou o café quente e o vapor do café se misturou com o sereno. Os meninos saíram de dentro da casa e pediram benção ao pai e a mãe. Ajudaram o pai a arrumar as cangaias com o carvão que com muito sacrifício, tiraram dez sacas. A cada saca pousada nas costas do animal, ele flexionava as pernas.
    O café da manhã foi rápido, broa de milho, pão e um pedaço de rapadura para dar sustância. Seu Zé fez um cigarro com fumo de corda, o papel veio da embalagem do pão. Aquele cheiro de fumo e mel incensou a sala. Encima de uma esteira de palha, para aquele caboclo fumar de manhã era um ritual. D. Maria catava os piolhos do filho mais velho. O mais novo brincava com o cachorro, de tão magro se contava as costelas.
    Depois Seu Zé se levantou igual um coronel e chamou os meninos, estava na hora de ir. Eles correram pela porta, aquele que chegasse primeiro ia guiando o jegue. D. Maria ficou no chão da sala espantando as moscas. Antes de sair porta afora, o carvoeiro ficou pensando no que dizer a mulher, ela esperou alguma palavra sair, como ela não veio D. Maria disse que Deus acompanhasse por essas estradas, ele respondeu com um sorriso.
    O caboclo checou tudo que precisava como o seu bornal, o fósforo, o resto do papel e claro, o fumo de rolo. O facão foi colocado na bainha com desenhos em alto relevo, e a bainha na cintura. A galinha foi salgada, temperada, armazenada numa panela de barro e vedada com um pano de prato feito com uma velha saia de D. Maria, a viagem era longa. Seu Zé apertou a canga e saiu a puxar o cabresto do jegue.
    Os meninos vieram atrás vaquejando os três jegues que traziam os carvões. O pai ajeitou o chapéu na cabeça e pediu proteção por ele, os filhos e os colegas de profissão que encontraria logo mais. Os carvoeiros atravessaram uma mata densa, a roçagem nunca terminava por falta de tempo e os tocos formavam um chão cheio de lanças, uma armadilha para desavisados, mas para o homem da lida, passar ali era fácil.
    Nos morrotes os jegues empacavam, Seu Zé puxava o cabresto com mais força, os meninos desciam do jegue e ajudavam o pai e cutucavam os flancos do jegue com um pedaço de pau. Com alguns metros vencidos, se chegava a Rua da Palha. A Igreja do Senhor Deus Menino ficava num descampado e os carvoeiros se reuniam lá. Seu Zé encontrava um amigo ou outro e proseava sobre a plantação.
    Os meninos se divertiam no sobrado. Depois de mais uns goles de café ou de uma pinga, os carvoeiros singravam pela estrada tortuosa de Araçás-Alagoinhas. Saindo do Povoado de Araçás, o que mais se via pela estrada era corana e pé de candeia, boa para fazer fogo quando seca. Para cada distância vencida, o calor aumentava cada vez mais. Seu Zé puxava uma cantoria besta de vez em quando.
    Como não decorava as letras que ouvia na sua vitrolinha, completavam a música sempre com uns Nã-nã-nã-ni ou Tiu-ti-riu-ri. O irmão mais velho se acabava de rir, o mais novo, entretanto ficava emburrado, tudo lhe engasturava. Quando os pés vento açoitavam as folhas e levantavam a areia barrenta, os meninos saiam gritando Aqui tem Maria, Aqui tem Maria, Aqui tem Maria... Até o redemoinho acabar.
    Um velho rezador puxava ia à frente puxando a oração do o Crem Deus Pade a pedido de Seu Zé, ali nem bandido, nem cobra, nem caipora ou capiroto encostava-se àqueles homens. O dia ia encurtando e os passarinheiros que traziam seus pintassilgos, caboclinhos, sabiás, cardeais e outros pássaros, encobriam as gaiolas com um tecido para o Sol não castigar os animais.
    O filho mais velho achava tudo àquilo inútil, afinal de contas, com ou sem pano eles continuavam presos. Ouvira o sermão do padre uma vez dizendo que São Francisco de Assis adorava os pássaros, eles não semeavam e nem colhiam, e mesmo assim Deus lhes dava sustento. Os pássaros assim como os homens gostavam da liberdade. E como aquele garoto adorava ver os pássaros pousados nas árvores cantando sua liberdade.
    O pai criava alguns e os vendia depois caso achasse bom negócio neles, como um relógio de pulso, um rádio de corda ou um saco de farinha. O comércio entre os pobres envolvia troca, pobre trocava com pobre, que depois vendia para o rico, o rico por sua vez não vendia para ninguém. Acumulava em sua casa o que julgasse de valor. Depois se o ascendente quisesse, virava herança de família.
    A noite foi chegando igual um ladrão, embora desde as três horas da tarde o pai já dissesse que já estava de noite. O filho mais novo revirava os olhos e batia o punho na testa. Ora os meninos seguiam a pé, ora montados no pobre jegue que tinha as orelhas puxadas, tomava mangualada do filho mais novo. O mais velho repreendia.
    Quando eles resolveram parar na noite de sexta para sábado, uma fogueira foi feita com pedaços de toco velho, que era fácil de achar no meio daquela picada mal feita. A carne de sertão com todo sal que tivesse era enfiada num espeto de candeia e posta para assar. Quem tinha sua sanfona tocava, quem tinha seu violão também e outro logo puxava um triângulo ou batucava num bule de café.
    Os jegues deitavam se espojando pelo chão, depois como para descansar da viagem, deitavam e adormeciam. O filho mais novo usou o lombo de um jegue como travesseiro, colocou uma camisa nas pernas para não sofrer com os muruins e os mosquitos. O filho mais velho colocou uma manta por cima do irmão, pois a noite sempre trazia frieza. Ele foi até o velho rezador e esperou ele terminar um caso.
    De todas as faltas de educação cometida por um jovem, intrometer-se ou responder os mais velhos era coisa que terminava em surra. O velho rezador tinha fama de bonzinho, mas também de homem arretado. Das vezes que o filho mais velho o tinha visto, sempre foi em boa hora. Certa vez um incêndio criminoso estava destruindo o milharal de Seu Zé. O velho rezador sem jogar um copo d’água apagou o incêndio.
    Como gostava do filho mais velho do compadre, o velho rezador teve uma conversa amistosa. Quando perguntado se podia ensinar, ele disse que dependia de quem queria aprender. Depois de muita insistência o filho mais velho conseguiu uma fezinha, mas diferente do que imaginava, ele não poderia anotar as rezas, teria que memorizar verso por verso. O pai dava apoio, D. Maria resmungava do resguardo do oficio.
    Depois que ganhar mais confiança ele perguntou como é que o velho rezador descobria qual o mau que a pessoas sofria, ele respondeu que se rezasse com água numa garrafinha de vidro, dependia do comportamento da água na garrafa. A água podia ficar quente, fria, formando bolhas ou evaporando. Isso indicava um estado de fraqueza da pessoa rezada. Muito das doenças era causada por mal olhado e resta de Lua ou sereno.
    O filho mais velho foi dormir remoendo como faria para memorizar tanta reza, tinha reza para pecado, para afastar mal espírito, e até para casar! Mas como não tinha idade para isso, essa última não lhe serviria. Mais se conseguisse aprender, já tinha candidatas a essa reza. Ele se recostou no lombo do jegue e ele ficou admirando as estrelas. Amanhã seria o seu dia preferido, o dia da feira.
    Imaginou quando estivesse com vinte anos o que iria fazer da vida, não queria ser um carvoeiro a vida toda como o pai. Queria estudar em Alagoinhas, ser doutor, ou trabalhar na estação ferroviária. Mas como gostava de ver aquele corpanzil de metal cortando a cidade transportando pessoas, viveres, sonhos. Fechou os olhos e ouviu o silêncio.
    Seu Zé se benzeu e rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria. Deu mais umas baforadas com o seu cigarro e por fim dormiu. Dormiu recostado num pé de cajueiro. A noite foi longa e com uma sonhadeira que deu uma agonia da moléstia. Se revirava de um canto, se revirava para outro e nada. Sonhou que tinham roubado o seu carvão e voltava para D. Maria com uma mão na frente e outra atrás.
    Quando acordou agradeceu a Deus e repreendeu o bicho de ponta. Se aprumou e recomeçou a marcha dos carvoeiros. A viagem era de cansar, vinte quilômetros debaixo do Sol comendo toda a poeira que vinha na cara. Mas Seu Zé continuava, e tinha outro jeito. Os jegues resfolegavam a cada trompaço que davam um nos outros. O trânsito seguia assim desarrumado até um bicho arriar no chão morrendo de sede.
    Os meninos já não se mostravam mais animados, tinha chão pela frente. Alagoinhas e sua água milagrosa ficavam a alguns metros de onde estavam, e não tinha canto nem reza até os carvoeiros beberem de suas fontes revigorantes. O filho mais novo abanava as moscas que teimavam em abusar. O filho mais velho esperava logo chegar à cidade e ver aquelas casas bonitas e vistosas que dava gosto de olhar.
    O pai fazia as contas de quanto venderia, e também do que compraria com o pouco que ganhasse. No caso de vender mais carvão, compraria um requeijão para os meninos, umas linhas para D. Maria costurar seus fuxicos, compraria para si um disco para tocar em sua vitrola. Mas como seu freguês não falhava e Deus estava no céu, teria dinheiro para fazer tudo isso.
    Antes de entrar na cidade já se via lá longe as laranjeiras tão famosas de Alagoinhas. O homem que colocou o apelido de Alagoinhas de “Terra da laranja” não tinha errado não, pomares e mais pomares lançavam um cheiro doce pelo ar. Os homens davam uma parada de beber aos animais na Fonte dos Padres, perto da mística Igreja Velha, construída pelo fundador de Alagoinhas, um ex-padre jesuíta.
    A água era tão límpido que parecia que alguém tinha aberto um coco e despejado o líquido em suas mãos. Depois os homens seguiam pela cidade, que assim como o Éden, é cortada por quatro rios, são eles o Sauípe, Catu, Subaúma e Quiricó, esse último bastante conhecido do araçaenses por que recorta em zig zag as suas terras e também pelas suas cheias intempestivas que ilhava a cidade em dois pontos diferentes.
    Na feira, apeavam-se os jegues, desciam as mercadorias e começava o marketing da roça, aquela cantoria desembestada, algumas provocavam riso, mas nem sempre terminava bem, mulher casada se sentia ofendida e chamava o marido. O carvoeiro murchava e para não ter briga, pagava-se uma lata de carvão, o cara virava até freguês.
    As sacas ficaram lá de amostra sem ter ninguém que quisesse comprar. Seu Zé fumava um pacaia para acalmar os nervos. Lá longe um rapaz gritava Agueiro! Agueiro! Seu Zé chamou o filho mais novo e cuspiu no chão, Traga uma cumbuca de água antes de esse cuspe secar, nem precisou pedir duas vezes o moleque saiu espanando poeira em meio o povo e cortou as barracas com vigor de sua juventude.
    O filho mais velho ajudava o pai em tudo, a cada coisa errado levava bronca, num tom sisudo e autoritário. Mas ele não respondia e só perguntava ao pai se estava bom assim e assado. A cumbuca foi trazida pelo menino que estava todo suado. O pai deu de beber aos dois e depois bebeu o resto da água e nada de carvão sair. Seu Zé se aperreou, homem pobre, mas de trato, gostava de palavra.
    O velho rezador dizia que o povo dos Cravos não tinha conversa errada não. E esperou até Seu Cravo chegar. Mais um cigarro, uma pinga e de repente, um carrão encosta-se a Seu Zé. Lá está seu fiel freguês. Prosa vai prosa vem, um é Bahia, o outro é Vitória, meninos pulando pra lá e pra cá, como vai à família? D. Maria? E os negócios? Entregue na paz de Deus. Seu Cravo fica satisfeito com a resposta.
    O filho mais novo e Seu Zé põem o carvão ma carroceria do Chevrolet. D. Cravo pergunta a Seu Zé se não quer dar um menino daquele para ela criar, mas os meninos não demonstram interesse. Ela se decepciona, o marido brinca dizendo que de menino a casa esta cheio, partem logo depois. Seu Zé divide as moedas com os meninos e conta o dinheiro graúdo, já sabe qual o disco que vai comprar, mas primeiro a feira semana.


Biografia:
Caliel Alves nasceu em Araçás/BA. Desde jovem se aventurou no mundo dos quadrinhos e mangás. Adora animes e coleciona quadrinhos nacionais de autores independentes. Começou escrevendo poemas e crônicas no Ensino Médio. Já escreveu contos, noveletas, resenhas e artigos publicados em plataformas na internet e em algumas revistas literárias. Desde 2019 vem participando de várias antologias como Leyendas mexicanas (Dark Books) e Insólito (Cavalo Café). Publicou o livro de poemas Poesias crocantes em e-book na Amazon.
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