Prólogo.
A pequena escolta,formada por sete homens,se aproximou da floresta,sombria e silenciosa. Vestiam-se de negro e cinza,vultos apagados sob a luz da manhã. Sobre suas cabeças tremeluziam dois grandes estandartes,onde podia se ver os mesmos símbolos estampados em suas vestes: dois cetros de prata sobre uma coroa negra.
Um deles deu um passo à frente,mas não sem antes ter de controlar uma breve recusa da sua montaria,um animal forte e tão negro quanto as roupas do seu cavaleiro,e tirando do cinto uma bonita corneta não menos negra e adornada por finos círculos de prata,fez ribombar uma aguda nota. Logo depois disse numa voz segura,apesar do desconforto que sentia diante das árvores à sua frente.
- Em nome dos reis Illion e Hellion,governantes sobre os Cetros de Prata e a Coroa Negra,Senhores das Terras Cinzentas e das suas costas ocidentais,é o senhor desta terra convocado a se apresentar em conselho daqui a quatro dias,quando se terá uma nova lua,para que se discuta o destino deste reino.
O silêncio ainda era o único a reinar sobre a floresta. Os homens ficaram a observá-la por alguns instantes,atônitos,como se a qualquer momento fossem receber alguma resposta,mas tudo era um absoluto silêncio,constante e ameaçador. Antes,porém que dessem meia volta e se afastassem a rápido galope,deixando visível um resquício de medo e assombro nos olhos,notaram uma breve inquietação nas árvores,como se um vento razoavelmente forte tivesse se abatido sobre elas,apesar de o ar está parado,e pareceu-les por um instante que essa inquietação cresceu,como se uma conversa tivesse sido iniciada e rapidamente compartilhada,espalhando-se por toda aquela vasta extensão verde,tingida aqui e ali por tons de vermelho e azul,rosa e marrom,se perdendo num mar de folhas flutuantes.
O vento que há pouco se recusara a soprar sobre a floresta agora lhes alcançara,surrando furiosamente suas capas ao jogá-las no ar. No céu o sol já subia alto,brilhando além do azul claro e sem nuvens. Sob os cascos dos cavalos se estendia um vasto verde sem ondulações,serrado muito lá para o leste pelas bordas da floresta,que corriam a diminuir numa tênue linha de encontro às montanhas,escuras manchas assomando num trageto apressado para o sul,onde a floresta continuava a lamber-les os pés por mais algumas léguas.
Já haviam se afastado muito da floresta quando um dos homens ousou quebrar o silêncio que insitia em os acompanhar. Sua voz era jovem e apressada,nao bastasse seu rosto fino e branco,entregava a pouca idade que possuía.
- Começo a pensar que talvez os rumores que vêem crescendo no acampamento acerca desta folresta tenham um fundo de verdade,no final das contas.
- Que rumores?-disse o que caminhava na lateral direita do grupo,um homem alto e tal como o que ainda falara de cabelos negros,mas sem nenhum resquício de barba no rosto sem expressão. Seu olhar era vago naquela direção,onde não muito longe o Esfariti,o maior rio de Peranty,fazia seu trageto tortuoso rumo ao mar.
- Ora! Não se faça de idiota -disse novamente o primeiro.- Todo mundo aqui sabe que um medo crescente vem se instalando no acampamento depois que o assunto do último conselho vasou para ouvidos que não deveriam escutá-lo.
- E quem deveria? -disse outro,dessa vez um dos que cavalgavam no centro do grupo,que diferente dos companheiros tinha uma cara larga incrustada de finos fiapos de uma barba amarelada e sem vida,tal qual seus cabelos,violados pelo vento,que ora ou outra pousavam emaranhados sobre seus ombros.- Os reis e seu conselho? Não deveríamos ser nós,seus instrumentos de batalha, informados sobre o que estamos para enfrentar?
- Segure sua língua na boca,Efrot. -disse o que tocara a corneta. Era tão parecido com o que falara primeiro que poderia facilmente se fazer confusão,nao fosse a voz mais grave e uma tímida barba acastanhada que cobria seu queixo. - Nem todos aqui deixam de partilhar tais pensamentos,mas se todos resolverem soltar as línguas e falar o que pensam,correrão o risco de terem-nas arrancadas. Portanto,é melhor que guarde seus pensamentos e opiniões para si mesmo,pelo menos por enquanto,pois algo me diz que logo esses assuntos deixarão de ser sussurros particulares.
- Quando eu era criança,- disse outro do centro,após uma breve pausa. Era talvez o mais alto e corpulento do grupo,com os cabelos a lhe chicotearem o rosto igualmente liso e esbranquiçado. Falava pausadamente,com o olhar para os confins do azul além,onde ele se ditava sobre o verde.- costumava ouvir histórias sobre árvores vivas,que perambulavam pela terra quando bem desejavam,como gigantes encobertos de folhas; os rumores no acampamento se assemelham a tais coisas,mas se são verdadeiros não sei dizer.
- Histórias contadas ao pé da lareira,- disse novamente o da barba amarelada,com um sorriso de chacota a se desenhar entre os lábios sem carne - para fazer crianças dormirem- se é que alguma criança consegue dormir com árvores monstruosas lhes agarrando durante o sono,com galhos que mais parecem mãos repletas de dedos.- aqui deu uma sinistra gargalhada,espantando pássaros à volta,para depois completar.- Talvez seja por isso,Gortun,que você tem miolos moles,pois toda essa besteirada de árvores vivas lhe tirou o único juízo que um dia já teve.
- Pense o quiser,Efrot Mente Esperta.Mas seja como for,aquelas árvores reagiram as palavras ali ditas,ou então devo está ficando louco.
- Então somos dois,pois tive a mesma impressão,- disse o da corneta.- Mas agora deixemos esses assuntos de lado,já nos demoramos demais. Vamos,apressem-se.
O acampamento fora montado do outro lado do rio,e para atravessá-lo e assim ter acesso à floresta,fora construída uma grande ponte de madeira,com vinte metros de extensão,onde quinze homens à cavalo poderiam passar lado a lado.
Apesar do sucesso da sua construção,tiveram que adiá-la por alguns longos e enfadonhos dias,nos quais uma chuva forte e constante insistira em cair,parecendo derramar metade da água do mar naquelas terras e no rio,que por sua vez exaltou-se,crescendo em força e velocidade.
Mas por motivos de segurança,ela fora construída a uns trezentos metros da floresta,no ponto onde está se debruçava sobre o rio,deixando um intervalo de apenas cinqüenta metros entre suas margens e as árvores mais próximas.
Até então apenas aqueles sete homens a tinham atravessado,e agora retornavam,sentindo o frescor das águas do Esfariti tamborilando numa calmaria razoável lá embaixo,enquanto os estandartes tremiam no ar,precedendo sua chegada,não menos esperada do que a esperança alimentadada pelo medo e o receio de que voltassem em menor numero,se tivessem sorte,pois podia muito bem ser que nem seus cavalos retornassem,como muitos insistiam em dizer.
Mas ali estavam eles,agora a observar as inúmeras tendas espalhando-se à sua volta e mais que tudo à sua frente,se perdendo numa legião de negro e cinza,de onde saíam mastros a sustentar inúmeros estandartes,símbolos de casas importantes e renomadas,assim como dos seus seguidores e juramentados.
Com os estandartes fincados no chão,a escolta se desfez,apenas o jovem arauto e mais um dos outros homens, aquele que lhe era uma cópia quase perfeita,seguiram por entre as tendas,incubidos de levar as notícias aos reis, mas antes mesmo que chegassem a sua,a maior e bem estruturada,foram dispensados da tarefa.
- Eu mesmo lhes levarei as notícias.- disse o comandante Huont,senhor da guarda real,um homem alto e de membros fortes,em cujos cabelos e barba bem apardos já se infiltravam resquícios de um cinza que ameaçava logo se espalhar num branco permanente.- Ou a falta delas.- disse ao se ver livre dos homens,num suspiro que revelava sua pouca disposição para tudo aquilo.- Além de tudo mais,agora negociamos com árvores.
- Falando sozinho,comandante?- surpreendeu-o alguém por traz.- Não sabia que apreciava tais coisas.
- Ora,Mestre Louisef. De fato não,mas já o vi tantas vezes fazendo-o que acho que vou aderir,pois pode ser que isso traga um pouco de sabedoria,no final das contas.
- Não faz ideia do quanto. Mas o que tanto o aflinge a ponto de tomar para si manias consideradas de loucos e velhos?
- A escolta enviada a floresta acaba de retornar,sem resposta.
- E isso o surpreende? Comandante,não estamos lidando com homens,ademais,não estamos nas Terras Cinzentas.
- Ah,agora chegamos ao ponto: não estamos lidando com homens,e sim com árvores. Isso é loucura,uma completa tolice.
- Loucura e tolice,você diz? Encontre-me qualquer outra raça além da dos homens que tem tais coisas em nível excessivo e eu serei obrigado a parabenizá-lo.
- Mas antes disso, se a sensatez que parece nos escapar das mãos realmente vir assim o fazer,digo-lhe que verá nos dias que estão por vir coisas das quais nunca viu em toda a sua vida,e poderá então constatar que sim,os homens são loucos,e acima de tudo tolos.
- Realmente,meu velho,apesar de oucupar hoje o mesmo cargo que lhe pesou sobre ombros durante muito tempo,acho que nunca vi metade do que esses seus olhos cançados já viram.
- Creio que o que verá aqui não seja menos novo para você do que para mim,apesar do fato de que meus olhos cançados têem uma vantagem sobre os seus atentos,pois enxergam longe,e já não se fecham com tanta facilidade à sombra do inesperado.
- M-Mestre Louisef,senhor...- o velho virou num relance a cabeça sobre os ombros,o que fez uma brisa fria chocar-se com seu rosto comprido,esvoaçando sua barba e cabelos. O sol agora reluzia em seus olhos,de um azul celeste,abrigados sob as grossas sombrancelhas cinzentas e sem volume.
- Parcyus,meu rapaz,já estava me perguntando por onde andava.- disse ao encarar o garoto,ofegando após o que parecia ter sido uma corrida exaustiva. Não devia ter mais do que doze anos,com um rosto bonito e físico saudável. Seus cabelos castanhos brilhavam volumosos à luz do sol.- Conseguiu o que pedi? Ótimo. Aguarde-me um instante,- ou melhor,vá andando,temos um longo trabalho.
- Ah,comandante,-disse antes de aprontar-se para seguir o garoto,-se pretendia ir ter na presença dos nossos reis,sugiro que deixe para outra hora. Agora não os encontrará disponíveis,pelo menos não os dois.
- Mas a volta da escolta sem resposta deve ser discutida.
- Logo será. Mas deixe isso pra ser conversado em conselho,o que acredito não demorar muito. E se me permite um conselho comandante:dispa-se da sua armadura,não irá precisar dela por enquanto. E acredite quando digo que sei como uma dessas pesa. Encontrei a felicidade nestes mantos.- completou ao agarrar a roupa,com um jesto abobalhado no rosto,enquanto o comandante obesrava-o se distanciar,sem reação no rosto,ou em qualquer parte do corpo; uma figura esculpida em pedra. Mas seu olhar ainda brilhava,assim como sua armadura,prata sobre ébano,a árvore que era o símbolo da sua casa,que juntamente com os cetros de prata e a coroa negra,estavam esculpidos entre duas grandes asas que nasciam do centro do seu peito e se espalhavam por seus ombros,de onde pendia uma longa capa negra,dançando na brisa fria.
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