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As lágrimas da cobra...
Luiz carlos Rivera

Resumo:
Uma "historinha" gauchesca, acontecida nos pampas do Rio grande do Sul em um passado não muito recente...

Escondido em um canto escuro do bolicho da Vila da Quinta, acomodado por cima de um saco de ração meio vazio, pitando um palheiro apagado e mal enrolado, enxergo o Negro Amandio, peão aposentado, um sujeito de muitas histórias e de poucas palavras... Bombachas velhas, alpargatas, uma camisa rasgada em uma das mangas e o inevitável lenço maragato ao pescoço...Sei que o Negro Amândio é de pouca conversa e que só rompe com o seu teimoso mutismo depois de se turbinar com umas boas talagadas de canha pura,daquela de vasilhame de plástico, sempre acompanhando cada trago com nacos de rapadura de palha. A saudação do tropeiro é solene: um pequeno aceno com a mão e mais nada. A garrafa de canha já está quase vazia e o peão se balança de um lado para o outro, com o palheiro apagado e esquecido   atrás da orelha. Encostados no balcão, alguns "borrachos", embalados pela canha que corre solta desde cedo, começam a implicar com o Negro velho, que saindo repentinamente do seu mutismo, manda a turma fechar o bico, pois lhe atrapalham as lembranças.... ao mesmo tempo risca o ar ameaçadoramente com a faca de carnear usada para picar fumo e se levanta com cara de poucos amigos.... – Tá Certo Seu Amândio! Se acalma,vivente... Conta aí um "causo" prá gente... Depois de uma pausa prolongada e mais alguns goles de canha, o homem volta a se sentar e começa a falar: - Já contei pra vocês aquela da cobra?Entonces... Pois eu estava campereando lá pras bandas do Alegrete, e quando me apeio do pingo, na porteira, pertinho do galpão, me ataca uma jararaca, cobra “mui mala”, "por supuesto". Não sou índio de me apavorar com coisa "poca" e passei a mão no relho e tasquei no lombo do bicho! Fiquei olhando o animal se retorcendo de dor e daí a pouco começou a me dar uma pena, um aperto no peito ... Ia ficar entrevada pra sempre a bichinha se eu não resolvesse cuidar dela, mas todo mundo sabe que sou um gaudério de coração bueno, grande "demás", não sou "hombre" dado a malfeitorias. Peguei uma lasca de taquara que tava ali pelo chão, fiz uma tala, enrolei o bicho nos pelegos pra não se molestar com a geada que tava caindo e levei o animal pro rancho. E a jararaca foi morar comigo e com os meus cuscos, pois a vida de peão é muito solitária. Pois não é que o bicho foi ficando por ali? Animal muito manso, dormia enrolada perto do fogão nas noites de frio, me acompanhava na hora do mate, coisa e tal... Acabou se recuperando, engordou e ficou com a espinha cem por cento, mui linda! Ficamos amigos, eu e a Odete, este foi o nome que dei pra ela, pois me "alembrei" duma prenda que conheci nos "antigamentes" lá por Dom Pedrito. Mui safada a gaudéria! Pois a Odete foi ficando pelo rancho,se "acaseriou" no meu rancho e a gente foi se acostumando com aquela vida.... até dormia comigo em dia de muita friagem, se ajeitava lá nos pelegos e ficava quietinha... Pois um dia se enfureceu e atacou com um bote certeiro um dos meus cuscos que tava acochambrado por perto das lenhas...Acho que foi ciúme... Pois o tal cusco adoeceu feio da picada da jararaca e se finou, o coitado... E foi aí que resolvi dar um fim naquilo tudo e mandei a Odete embora... Era uma ingrata, mal agradecida e não reconheceu que dei casa, cama e mesa e até comida na boca quando ela tava entrevada! Que se botasse campo a fora e nunca mais voltasse! Que não me aparecesse nem por perto do meu rancho.... Fiquei com o peito apertado quando ví a bichinha sair "devagarito" e se sumir lá longe num capão... Mas indiada, o que mais me entristeceu foi quando ela olhou para trás para me dar um último adeus com a ponta da cauda: os olhos da Odete "tavam" cheios de lágrimas.... Chorava muito a bichinha..... Fiquei "mui malo" e quase que me desando a chorar também...mas sou um guasca sério e não me fresqueio com estas coisas de "maricon"... Nunca mais me apareceu a Odete....Até hoje tenho saudades....Com o fim da história, os olhos de todos os borrachos se arregalaram de espanto e foram saindo devagarito, em silencio, um a um, sem nada comentar, pois o Amandio tinha fama de complicar quando duvidavam dele e ainda por cima, não largava a carneadeira, que passou a afiar ameaçadoramente no balcão do bolicho.... Se foram todos rua afora e eu também me fui, depois de pegar a erva para o mate... Pois é.... Aquela turma dos CTGs que promove a "bosteação" da Marechal Floriano de ponta a ponta nos desfiles do Vinte de setembro, afirma que foi o Nego Amândio que laçou um teco-teco lá pelas bandas de Tupanciretã, mas ele não diz nem que sim e nem que não... Pelo que falam do homem, é um guasca de muitas histórias e andanças pelo Rio Grande afora e parece que não é sujeito de contar mentiras, logo... Pensando bem, acho que vou provocar o Amândio para me contar essa coisa do teco-teco! Pra quem faz uma jararaca chorar, pegar um avião no laço não é nada demais... "Sirvam nossas façanhas de modelo á toda terra"...(estrofe do Hino Riograndense)



      * Crônica publicada na VII Antologia da Academia Riograndina de Letras - Rio Grande/RS (2014).


Biografia:
Sou Psicólogo e Psicoterapeuta. Separado, 62 anos, pai de um casal de filhos, escritor amador recente. Leitor voraz, fumante inveterado e abstêmio convicto. Me interesso por fotografia digital e analógica e por antiguidades. Torcedor fanático do S.C. Internacional. Músico profissional (já aposentado). Me interessam também pessoas e suas histórias de vida, verdadeiras ou não...
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Outros títulos do mesmo autor

Crônicas Madrugadas de um guri insone... Luiz carlos Rivera
Crônicas As lágrimas da cobra... Luiz carlos Rivera
Crônicas O fantasma da Moron... Luiz carlos Rivera

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Publicações de número 11 até 13 de um total de 13.


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