Sempre gostei das madrugadas... Desde guri, os mistérios da noite me fascinam, como hoje ainda acontece em algumas ocasiões em que o sono demora um pouco mais. Acordado na escuridão do quarto, atento aos sons que a vida noturna produz, espero pacientemente o adormecer chegar aos poucos... Quando criança, lembro que o sono as vezes demorava... Os ruídos da noite entravam sem pedir licença através pelas janelas do casarão da Carlos Gomes, a rua onde me criei, lá na distante Rio Grande de São Pedro, cidade cercada de mar, perdida nos confins do Rio Grande. Lembro das longas noites de inverno, dos silêncios plenos de mistérios que elas pareciam conter, dos segredos que a madrugada parecia criar e esconder.... O apito do guarda noturno na ronda contínua e incessante pelos arredores do bairro pacato.... dos pequenos fragmentos perdidos de uma conversa de notívagos em suas andanças sem rumo pela noite... do palavrório incompreensível dos ébrios, talvez de retorno as suas casas ou as suas desgraças... os passos, o salto alto de alguma mulher perdida ecoando nas calçadas .... gritos na madrugada, que me assustavam e movimentavam o meu imaginário de criança, provocando pesadelos... Os sons da casa, acomodando-se para o descanso noturno, que a tudo impregnava... estalos, movimentos furtivos, palavras soltas do pai e da mãe... Um rádio ao longe... O latido de um cão perdido, e as vezes, o distante canto de um galo anunciando prematuramente o fim da noite... gatos malandros, brigando e namorando barulhentamente pelos muros e telhados da vizinhança... O vento gelado das noites invernais, os pesados nevoeiros, o inevitável cheiro de maresia da minha terra, contrastando com o intenso perfume das damas-da-noite, perdidas em algum terreno baldio das proximidades... Difícil a convivência da criança que um dia fui, com aqueles mistérios que pareciam me chamar para fora da segurança dos cobertores da minha cama de gurí, onde os monstros que assombravam o meu universo de infância estavam a espreita com as suas malvadezas.... A escuridão parecia estar povoada de acontecimentos, coisas e pessoas, que na minha imaginação, pertenciam a um mundo desconhecido, assustador e ao mesmo tempo, fascinante... O que acontecia lá fora, na escuridão? Onde iriam e o que buscavam aquelas pessoas que vagavam insones pelas madrugadas? Que vidas teriam? O que faziam estes fantasmáticos seres em suas andanças noturnas, envolvidos em seus grossos capotes, usados pelos naturais da terra para enfrentarem os rigorosos invernos do sul do Brasil? Quem eram aqueles seres que eu as vezes visualizava pelas minhas janelas? Porque cantava sempre a mesma música aquele bêbado, sentado noite após noite na mesma esquina, agarrado tenazmente a uma sacola suja, com uma garrafa de cachaça ao lado, só cessando a lamentável e desafinada cantoria quando era resgatado por uma triste mulher e levado por ela rua afora, talvez para casa ... Em que fábrica iria labutar aquele operário de ar cansado e derrotado, pedalando lentamente uma velha bicicleta desconjuntada, marmita ao ombro, olhos no chão... O que esperava aquele vizinho, debruçado eternamente em sua modesta janela, em sua modesta casa, cuidando a noite com seus olhos vazios, insone como eu....Que dores ou amores buscava na madrugada aquela mulher solitária que vi caminhando lentamente, cabeça baixa, olhos e pensamentos perdidos, pelas velhas calçadas da minha rua? O que ou a quem buscavam aqueles policiais que passavam em silêncio, tangidos pelo frio, encolhidos em seus velhos automóveis? Que sortilégios sobrenaturais obravam aquelas pessoas de branco nas encruzilhadas do meu bairro, acendendo velas e fazendo soar os seus atabaques, deixando misteriosas oferendas para os meus olhos de guri curioso na manhã seguinte? Que significavam aqueles fogos de artifício que ecoavam ao longe em algumas noites? Que tragédias anunciavam as sirenes das ambulâncias? Qual o significado do som cristalino de um clarim soando na noite, tocado tristemente em surdina em um quartel das proximidades? O que se escondia nos nevoeiros e nas madrugadas da minha terra? Que mundo se movimentava, ecoava, vivia e sofria lá fora das janelas do casarão? A noite parecia plena de vida, pulsante... O encantamento com a noite e seus personagens continua ainda hoje povoando o meu imaginário de adulto sonhador, embora um pouco menos impregnado daquela intensa e perturbadora magia das madrugadas de guri sem sono que um dia fui... Alguns destes pequenos mistérios costumam aparecer de quando em quando nas noites de vigília... E ainda me tocam...Que a vida me permita o aproveitar destes ecos da meninice... São necessários, são mágicos... Imprescindíveis....
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