No Anno Domini 1207, subcontinente indiano, o norte da região foi invadido por muçulmanos nômades provindos do centro do continente asiático levando a criação do sultanato de Déli, este sultanato composto por povos de origem turca e pachtun.
Após firmar seu poder no norte do subcontinente o sultão Aibak promoveu uma incursão às regiões ainda não dominadas pelo seu povo, impondo sua religião que futuramente culminaria na criação da Irmandade da lua crescente.
Grandes tropas foram levadas ao interior do país invadindo e estabelecendo a vontade do sultão em novas regiões e povos que ali habitavam o que eles não esperavam era que acabariam por encontrar alguns meses após o início da invasão umas das seitas mais perigosas que já habitaram aquele local os Thugs.
Ao adentrar o território desta seita com trezentos soldados bem treinados nas artes da guerra, o exército da lua crescente simplesmente desapareceu sem deixar quaisquer pistas de seu paradeiro.
Aibak indignado com a situação enviou ao local mais um exército com dobro de combatentes, ainda melhor equipados e com força total para que o inimigo não tivesse tempo de se recuperar do primeiro ataque, porém em uma única noite todo exército foi dizimado e as cabeças dos soldados foram empaladas e expostas em estacas na entrada na região habitada pelos thugs.
O Sultanato, então admitiu a derrota e não atacou novamente os acampamentos daquela região.
Entretanto um dos soldados enviados a essa batalha era Lodi um guerreiro nobre e principal general de Aibak, cuja cabeça não foi empalada e exposta como as dos seus companheiros.
O que deu a sua esposa Ajala esperanças de que seu marido ainda estivesse vivo ela então pediu ajuda ao sultão, mas este a negou afirmando que nenhum exército seria capaz de sair daquele local com vida.
Desconsolada ela procurou ajuda em outras tribos, porém sempre diziam-lhe o mesmo. Suas esperanças estavam quase acabando quando soube que um estranho teria vindo do ocidente e cujas façanhas precediam-lhe.
Ele estava residindo em uma pequena cabana no topo do Himalaia, por algum motivo ele buscava paz, já tinha enfrentado batalhas demais e decidira descansar o mais longe possível da civilização, não queria mais tomar partido de suas ações, não lutaria por mais ninguém, isso era o que ele pensava.
O amor da mulher por Lodi levou-a a escalar mais de sete mil metros de um declive que intimidaria qualquer homem destemido, neve e mais neve. Um branco aterrador que parecia ser provindo de outro mundo.
A fatiga sempre a acometia durante a escalada, todavia a coragem e a força de vontade dela eram ainda maiores. O cansaço ainda não era o maior de seus inimigos, já que estava longe de casa a mundo tempo seu dinheiro era pouco. O que impossibilitou que comprasse mantimentos o suficiente para tal jornada.
A subida já levava dias sem o equipamento adequado, as nevascas constantes impediam que o calor e a luz do sol atingissem a montanha e no final de três dias Ajala sem forças e faminta entregou-se, cambaleou e caiu, perdendo a consciência.
Após alguns minutos ela abriu os olhos e ao longe ela viu um homem maltrapilho caminhando lentamente, seus pés não afundavam na neve o que garantia-lhe passadas constantes quando este chegou bem perto, ela desmaiou novamente.
Ela acordou então dentro de uma pequena caverna mal iluminada por uma pequena fogueira e viu o cansado andarilho cozinhando. Ele então disse.
-O que uma mulher indiana faz aqui tão longe de sua terra?
A mulher descobriu-se e sentou ao lado do homem e falou.
-Meu nome é Ajala venho de Déli sou esposa de Lodi capitão das tropas do sultão e venho até aqui por ajuda.
O andarilho balançou a cabeça sorrindo.
-Tenho que parar de salvar pessoas de nevascas, pois elas vêm sempre com um pedido de socorro e nunca com um agradecimento.
A mulher olhou de relance o rosto do homem escondido por de trás do capuz e viu uma cicatriz.
-Sei que esta aqui para meditar na montanha. Sinto ter atrapalhado, mas você é minha ultima esperança já recorri a outros, mas eles me negaram ajuda.
-Meu marido foi pego pela tribo Thug durante a invasão ao seu território.
O andarilho falou com um tom sério.
-Seu marido já está morto mulher. Sinto muito...
A mulher com a voz esperançosa.
-Não ele não esta morto, dentre todos os aliados que foram mortos e expostos ele foi o único cujo corpo não foi encontrado.
-Temo que ele esteja perdido nas Florestas do sul ou pior que seja prisioneiros daqueles monstros.
O mendigo olhou para neve em seus pés e continuou.
-Eu estou cansado, tenho lutado a tempo demais. Tanto tempo que muitas vezes me esqueço do porque ainda estou aqui.
-Preciso de um período para descansar rearranjar minhas idéias, não tomarei partido de batalha nenhuma, principalmente sobre questões que infligem o código dos atemporais, de não intervir em conflitos humanos.
Ajala coloca a mão no ombro do homem e insiste.
-Não há nada de humano neles como poderia tão poucos ladrões derrotar um exército bem armado.
O andarilho volta sua cabeça em direção a mulher como se a olhasse nos olhos, no entanto o capuz sombreava metade de seu rosto tornando difícil a visibilidade de sua feição.
-Em todo o tempo que vaguei por este mundo já vi muitas vezes poucos derrotarem muitos em guerras, com o simples uso correto de conhecimentos de território e habilidades de guerrilha, além da inteligência e criatividade no campo de batalha.
-Não há nada de especial nos eventos que você me apresenta, fazendo necessária a minha presença naquele lugar.
A mulher resolve revelar algo sobre os cadáveres dos soldados mortos.
-Você pode estar certo. Porém existe mais um detalhe, que prometemos não revelar a ninguém a mando do sultão.
-Todas as cabeças encontradas empaladas estavam com os olhos negros, como se algo tivesse sugado a vida daquelas pessoas antes de suas cabeças serem arrancadas.
Rapidamente o andarilho sacou um livro de dentro de uma sacola de couro que carregava e folheou por alguns instantes, sem dar resposta alguma a mulher e então ele revelou.
-A tribo dos Thugs conhecidos como veneradores da deusa da destruição Kali, assassinos e canibais. Há muito tempo não se tem noticia deles. Desde a morte de Kali tempos atrás.
A mulher assustada pergunta.
-Como assim morte de Kali? Deuses não morrem.
O andarilho sorri e continua dizendo.
-Ela não é uma deusa, na verdade é algo muito menos nobre do que isso.
-Sabe qual é o problema de vocês? Simplesmente tornam coisas como ela deuses, pelo simples fato de desconhecer sua natureza, sua origem.
A mulher pergunta.
-Irá me ajudar?
Ele responde.
-Já disse não posso me envolver nesses assuntos, desculpe-me.
A mulher indignada insiste.
-Como você pode ignorar ajuda a uma pessoa em perigo? Ao menos vá e verifique a questão dos olhos negros.
-Não faça isso apenas por mim faça pelo meu filho que aguarda o retorno do pai! Faça pelo pai que deve estar sentindo a dor de nunca mais ver sua família!Faça pelo filho que ainda esta no meu ventre! Eu imploro!
As palavras daquela mulher atravessaram o coração do andarilho, a sua coragem de enfrentar todos os obstáculos para encontrá-lo e amor a sua família realmente atingiram com força uma ferida que ainda estava aberta no coração daquele homem que não tinha uma pátria ou um lugar para retornar.
-Eu irei até os thugs, todavia não garanto que seu marido estará vivo.
A mulher sorrindo disse.
-Vá e o encontre, e talvez assim você também encontre as respostas que procura.
O andarilho recolheu suas coisas, colocou Ajala em suas costas e desceu a montanha correndo, sem ao menos parar para descansar em menos de um dia e meio eles já estavam aos pés da montanha.
Voltaram para o norte da Índia onde o mendigo deixou a mulher em suas terras e ao longe ele viu mãe e filho se reencontrarem em um abraço indescritível e o olhar do menino surpreendeu o homem, parecia que ele depositava todas as esperanças nele, mesmo sem o conhecer.
Após alguns dias de caminhada o andarilho entrou no território Thug, era uma floresta densa e sombria, algo que a muito tempo o andarilho não via naquela região.
Ao caminhar alguns minutos ele sentiu um cheiro fétido vindo de um pequeno vilarejo. Lá o homem não encontrou ninguém, apenas uma única cabeça, provavelmente do líder do lugar e nela estava estampada uma feição de terror inimaginável e seus olhos estavam negros como a descrição feita por Ajala.
Realmente Kali, a destruidora ainda residia nesse mundo, isso explicava o fato de terem matado apenas o ancião da aldeia, ela estava recrutando novos adeptos para seu culto.
Isso já havia acontecido antes há muito tempo atrás, muito antes dos pais dos pais dessa geração nascerem, o culto da destruição ganhou força naquela região da Ásia recebendo muitos adeptos que serviam a aquele monstro por devoção ou por medo.
Porém um jovem cuja mãe foi assassinada em honra a Kali, levantou-se contra “a destruidora” e em uma batalha que durou dois dias sob o sol escaldante do deserto de Thar, a criatura foi derrotada e seus quatro braços foram decepados e sua cabeça recolhida como espólio de guerra.
O guerreiro banhou-se com seu sangue e se tornou imortal.
-Imortal... Foi assim que nasceu mais um atemporal, eles realmente gostam de aumentar bem os acontecimentos dessas histórias.
Indagou com ar de sarcasmo o andarilho que era mais velho do que essa fábula. Ela chegou aos seus ouvidos em uma pequena espelunca enquanto fazia certos trabalhos na região leste da Ásia há alguns séculos atrás.
De qualquer forma ele descobriria a verdade, anoiteceu a viajante acendeu uma fogueira e por algum tempo ficou observando o movimento das chamas.
O silencio da floresta era estranho, não se ouvia o barulho de animal algum, somente o vento zunindo por entre as árvores. Qualquer um tremeria de medo com tal situação, menos o andarilho. Ele era firme como uma rocha e frio como as nevascas do Himalaia.
O sono não o atingia como acontecia com as pessoas comuns ao sofrer os desgastes diários, ele apenas observava a natureza ao seu redor, a percepção do vento que batia-lhe no rosto, o som do silêncio para ele era o suficiente para descansar.
Ele ouviu algo esgueirar-se por entre as folhagens e mesmo assim o andarilho ficou inerte esperando que atacassem, e foi isso mesmo que aconteceu, três homens atacaram ao mesmo tempo. Um pelas costas, outro pela direita e o ultimo pela esquerda.
Todos eles portavam Talwars, uma espada de lâmina curva e mais larga na extremidade oposta ao seu cabo. Essa arma era extremamente afiada e poderosa se golpeada diretamente em um alvo.
O andarilho calmamente ergueu seu braço esquerdo, com o punho fechado e apenas o dedo indicador apontando para a lua, revelando assim parte da gauntlet que ele portava. Ela era de um tom prateado escuro com algumas inscrições de um idioma antigo.
Com esse movimento ele parou simultaneamente o ataque de seus três adversários, em resultado do impacto eles foram jogados contra arvores que estavam atrás de suas respectivas posições.
Ele então levantou-se e foi até um de seus adversários caídos. Eram hindus portando Sherwanis, vestimenta comum aos homens daquela região, negros com um Rumaal, lenço amarelo amarrado em sua cintura. Vestimenta essa símbolo do culto dos Thugs.
O andarilho então perguntou a um deles.
-Gostaria de conversar com o atual Jamaadar de seu culto.
O hindu ainda em choque com o que havia acontecido apenas gesticulou positivamente com a cabeça.
Alguns minutos de caminhada o guia levou o viajante ao coração do culto da destruição.
Era um vilarejo pobre cujos habitantes se mesclavam entre os naturais daquela região os hindus, os muslim povo que naturalmente era seguidor dos votos da lua crescente e Sikhs provindos da região vizinha que no futuro chamariam de Paquistão.
Logo o visitante foi levado ao Jamaadar do culto ou simplesmente o líder daquela macabra seita. Todavia antes de encontrar com ele o andarilho viu ao longe amarrado a um pilar feito de madeira um homem.
-Seria ele o marido de Ajala?
Perguntou-se.
O líder dos Thugs era Behram, conhecido por sua brutalidade e hostilidade a visitantes.
O andarilho sabia que pelas regras impostas aos atemporais ele não poderia matar humanos comuns, mesmo eles sendo considerados hostis, por esse motivo ele já havia preparado um plano simples, porém perigoso. Ele sabia que havia regras mesmo para as criaturas que auto denominavam-se deuses e ele usaria isso a seu favor.
Behram então perguntou.
-O que um estranho como você está fazendo aqui?
Nesse momento todos os Thugs dentro da cabana sacaram suas espadas. Calmamente o andarilho respondeu.
-Nex Sacramentum.
Assustados todos recuaram e Behram continuou.
-Sob que direito você desafia a mim, o grande líder desse povo a um duelo de vida ou morte?
O viajante então sorriu apontando o dedo a uma estatua de Kali que enfeitava o fundo da cabana.
-Não estou desafiando você seu tolo, estou desafiando ela!
Behram empalideceu-se, e gaguejando disse.
-Levem ele até nossa deusa e que eles se entendam.
Antes de ser levado ao lugar do confronto ele fez uma ultima pergunta.
-Você encontrou o crânio, não é? Seu tolo...
Assim levaram o homem até uma porta cheia de símbolos localizada em frente ao homem amarrado. Antes de entrar na porta o mendigo disse ao prisioneiro.
-Não perca as esperanças homem, fui enviado por sua amada esposa Ajala para levá-lo para casa.
O prisioneiro estava magro e fraco. Mantinham-no despido e seu corpo apresentado diversos hematomas, entretanto ao ouvir o nome de sua amada Ajala escorreram-lhe lagrimas dos olhos.
O andarilho sabia que mesmo Kali que desfrutava do título de deusa não poderia ignorar um pedido de Nex Sacramentum, essa era uma regra antiga demais para ser contrariada, não se tratava apenas de um combate, também tratava-se de honra.
Ao atravessar a porta o herói foi levado ao centro de um vasto deserto, já era noite e o céu estava totalmente estrelado, ele viu caminhando tortuosamente pelas dunas uma jovem de cabelos negros e pele escura provavelmente pela ação do sol escaldante do deserto ela trajava roupas totalmente rasgadas, porém claramente vestígios de um sári negro.
Fixado em sua cabeça estava um crânio distorcido de algo que não era humano, ela o ostentava como um elmo terrível, ele injetava em sua cabeça um sangue negro que escorria por sua testa.
Agora aquele ser era apenas uma sombra do que foi um dia.
Então uma voz que provinha não da boca da pobre moça, mas de dentro daquele horrível crânio disse.
-Como ousa me propor Nex Sacramentum!
O andarilho esticando seus braços e os forçando para trás num gesto de preparação respondeu.
-Estou aqui para terminar o que o garoto não conseguiu.
-Não se deve guardar espólios de guerra, muito menos o crânio de seres como vocês.
-Eu não cometerei o mesmo erro!
Nesse momento um grito ecoou no deserto e das costelas frágeis da pobre mulher nasceram mais dois braços. Ela então pegou as quatro Talwars que estavam presas em suas costas e partiu frenéticamente atacando sem piedade o pobre andarilho que estava desarmado.
O andarilho voltou seus braços nas costas e segurando um no outro em forma de deboche aos ataques de seu inimigo, começou a desviar dos ataques poderosos como uma velocidade e sutileza que irritava cada vez mais Kali.
Ela então esbravejou:
-Você apenas foge das minhas investidas, seu covarde!
Sorrindo de forma sarcástica respondeu.
-Estou tentando compreender como alguém demorou dois dias para derrotar um ser tão deprimente e fraco como você.
-Dignou de piedade.
-Infelizmente, para seres como você, a piedade acabou há muitos milênios atrás.
Em um movimento rápido ele desviou do ataque das quatro lâminas terminando com a mão esquerda sob o elmo que a desafortunada usava. E com uma simples flexão de dedos ele o estilhaçou.
A mulher caiu desmaiada nos braços do andarilho, enquanto as almas consumidas pelo crânio eram libertas e sumiam pelo deserto.
O portal abriu novamente e o herói e o avatar da deusa da destruição voltaram para a vila dos Thugs.
Todos os thugs curvaram-se perante o andarilho, menos Behram que disse.
-Sua vitória não significa nada, nosso culto continuará!
O andarilho desamarrou o pobre Lodi e o colocou nas costas e disse.
-Vocês podem até continuar, mas não terão mais um auxilio sobrenatural em suas investidas, lamento.
Ele então voltou à mulher que havia sido possessa e falou.
-Se quiser pode nos seguir.
A mulher então balançou a cabeça de forma negativa e abraçou Behram, ela era sua esposa.
Andarinho e Lodi seguiram de volta as terras do sultão, mas não antes de o pobre ex-preso alimentar-se e beber água. No caminho nenhum dos dois ousaram falar nada.
Perto de casa o pobre homem ao ver seu filho e mulher correndo a seu encontro recobrou suas forças o suficiente para correr ao encontro deles.
O andarilho parou e observou o abraço dos três e sentiu um sentimento que há muito tempo ele havia esquecido, a alegria. Naquele momento ele entrou o motivo pelo qual ainda peregrinava pelo mundo.
Garantir que exista um futuro para pessoas como eles, sem a influência de monstros como Kali, foi por isso que ele iniciou sua jornada a muito tempo, para que ninguém mais carregasse a dor que ele suportava todos os dias a dor de ter sido impotente perante a ameaça de seres como ela.
O mendigo aproximou-se da família abraçada, Lodi ergueu a cabeça e disse:
-Que sua linhagem seja abençoada nobre viajante, por tudo que fizera por mim, por minha família e por meu povo!
O forasteiro passou pela família e foi seguindo até uma estrada que levava para o Himalaia, mas antes de deixar os três ele respondeu.
-Fico honrado com sua benção, porém sou como uma figueira estéril, nunca produzirei frutos.
-Este é o preço por garantir o equilíbrio deste mundo.
O andarilho, então seguiu para o Himalaia e aquela família nunca mais viu o seu bem feitor.
O andarilho continuou sua peregrinação, porque ele não possui um lar, porque ele está aqui e ali, porque ele sempre esteve aqui.
Isso é o fim... ou talvez não...
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