No Anno Domini 868, na Península Ibérica, durante a fundação do condado Portucalense, a população vivia ainda da agricultura. Era um povoado simples, localizado no extremo oeste do continente europeu, banhado pelo grande Oceano Atlântico, suposto lar de monstros terríveis e fronteira do mundo conhecido.
A região havia sido palco de muitos conflitos onde os habitantes tiveram de lutar para recuperar seus territórios das mãos dos mouros, povos provenientes do norte da África.
Era o fim de uma época sombria na Europa conhecida como a “Idade das Trevas”. Grande parte do conhecimento do oculto estava sendo esquecido ou perdido, mas essa é outra história.
O pequeno condado estava sendo assolado por um frio intenso nunca antes presenciado. Animais e humanos estavam sendo levados ao limite devido à falta de comida, além de ter de sobreviver às bestas que ainda rondavam aqueles lugares, sobreviventes de um tempo sombrio.
Todo ano o povo da região deveria oferecer grande parte de sua comida a uma criatura antiga que residia nas florestas da região, sob pena de extinção, caso não o fizesse.
Ninguém sabia como ela era. Havia apenas rumores, desde o tempo em que o condado ainda era o Reino de Leão, e, talvez até antes disso, ela sempre esteve ali, sempre se esgueirando e observando seus habitantes. Mas, a oferta de alimentos, dada todas as pelos camponeses, garantiam sua segurança. Tinha hábitos noturnos. Muitos viajantes, apesar de não vê-la, podiam observar ao longe as chamas que ela tortuosamente carregava todas as noites.
Nesse ano a comida havia ficado escassa e a fera, antes domada, agora era um perigo iminente.
Porém, tudo mudaria com a chegada de um sujo e antigo andarilho.
Ninguém sabia de onde ele vinha, nem mesmo para onde ele ia. Sabiam apenas que a vida dele era peregrinar. Suas roupas eram velhas e estavam puídas, trajava um manto e um capuz, ambos de uma cor indefinida, devido à sujeira que acumulavam ao seu redor. Era difícil acreditar que alguém sobrevivesse àquele tempo com tão pouca proteção. Seu andar era lento e calmo, como se, seja lá para onde ele estivesse indo, não tivesse pressa de chegar. Viera da região leste do continente. Algumas pessoas disseram tê-lo visto na região do Condado da Prússia, mais precisamente em Koenigsberg. Chegou durante a noite, enquanto ocorria uma forte nevasca, fato nunca visto naquele lugar. Ele apenas se encostou ao lado do poço, cobriu sua cabeça e repousou.
No dia seguinte, os aldeões se reuniram para discutir o que fazer para aplacar a fúria da fera, já que, para eles, as mudanças no clima e as doenças que assolavam a região eram culpa do monstro.
Ao líder da vila, que havia sido escolhido por ser um dos mais velhos moradores da região, foi dada a responsabilidade de encontrar uma solução para aquele problema. Era conhecido como Cajó.
Cajó seguiu para o centro da vila para discursar. Subiu em um pequeno palanque montado com velhas tábuas e disse:
-Nossa vila tem sofrido esse flagelo há muitos anos e, há muitos anos, temos aplacado a fera com oferendas de nossa colheita. Mas, agora, com a seca, tudo mudou. Segundo as velhas lendas, a oferta final para que a criatura nos deixe em paz é a alma de uma criança pura de nosso vilarejo.
Os aldeões, ao ouvirem com temor a solução de seu líder, entraram em discussão sobre quem abriria mão de uma criança para aplacar a fúria da fera. Em meio à confusão, Cajó continuou:
-Amanhã será dada a última oferta de comida que a vila possui. Depois disso, nossas vidas estarão nas mãos deste último sacrifício!
Ouvindo todo esse discurso estava o andarilho, que observava tudo atentamente. Sobre a sujeira que cobria seu rosto, surgiu um ligeiro sorriso. Um sorriso de quem era sábio e escondia dentro de si uma solução muito mais eficiente do que a do velho líder da vila.
Durante a tarde daquele dia, uma senhora triste viu o mendigo sentado à beira do poço. Compadecida, levou a ele o almoço que fizera com o que tinha lhe restado de comida. O homem olhou para a mulher de forma altiva. Sem pronunciar uma palavra, pegou a vasilha com grãos e começou a comer, enquanto observava a feição triste de sua benfeitora. Então perguntou:
-Mulher, porque está compadecida?
Ela respondeu num tom baixo e temeroso:
-Minha pequena foi escolhida para aplacar a fúria da fera definitivamente.
O homem então se levantou, limpou os grãos que caíram em suas roupas esfarrapadas e perguntou:
-Esse sacrifício não a incomoda?
A mulher olhando para a neve entre seus próprios pés, respondeu:
-Como poderia? A necessidade de muitos supera a de poucos. Sem esse sacrifício, a vila toda estará em perigo. A menos que se pudesse substituí-la por outra oferta de comida, mas não temos o suficiente para acalmar a besta. Ainda assim, a minha filha estaria em perigo...
O andarilho começou a andar lentamente em volta do poço, com a mão direita limpando a neve que ali repousava. Então se sentou novamente em frete àquela senhora, abaixou a cabeça e disse:
-É louvável o ideal que carrega em seu intimo, senhora. Mas, creio que o sacrifício que esta disposta a fazer não terá utilidade alguma.
Então, puxou do meio dos trapos que cobriam seu corpo, um livro de capa de couro, cujas páginas eram amarelas, mas pareciam não ser um papel comum. Ao menos, não parecia nenhum tipo de papel já visto pela senhora.
Ele abriu o livro e folheou um pouco. A senhora percebeu alguns mapas de relance e depois de algum tempo o homem levantou os olhos e disse:
-Erchitu, não é?
Ao ouvir esse nome as pernas da mulher estremeceram-se. O mendigo sorriu apenas de lado. Ele sabia que as pessoas daquela região tinham medo até mesmo de pronunciar o nome da criatura. Então continuou:
-A besta que vaga nas noites dessa região, tem a aparência de um bovino, porém é bípede. Deve ter por volta de 3 metros de altura. Possui dois longos chifres, que seguem de sua cabeça até seu peitoral. Na extremidade de cada um deles, existe uma vela acesa. Dizem que Imps, pequenos deamons, ou também espíritos da floresta, as acendem. A duração da vela determina o tempo da transformação.
A mulher assustada ouvia atentamente a explicação daquele estranho. Então lhe perguntou:
-Como o senhor sabe de tudo isso?
O homem fechou o livro e levantou se novamente.
-Sou apenas um homem sem bens, que vaga de um canto para outro. Já estive aqui muitos anos atrás. Conheço bem essa região. Estranha-me ver uma dessas coisas ainda vagando. Mas tranquilize-se, mulher, ainda há tempo para sua filha.
A mulher retornou para sua casa, com muitas dúvidas sobre o destino que aguardaria sua filha e principalmente sobre quem era aquele estranho homem.
Naquela noite, os aldeões levaram o resto de seus suprimentos ao pequeno altar situado em cima de um pequeno cume próximo à aldeia. Todos trancaram bem as portas de suas casas, menos o viajante, que sentou ao pé de um eucalipto e observou ao longe, a fera se alimentar, sem nenhuma pressa, do que restou de alimentos daquela pobre vila. E sussurrou:
-Ás vezes, tornamo-nos escravos de nossos próprios monstros.
Ele já sabia as opções que tinha. Porém, havia uma coisa que o deixara curioso. Na manhã seguinte, iria procurar algumas respostas para, finalmente, saber o que fazer.
Assim que o dia amanheceu, pôs-se a observar os aldeões. A grande maioria dos homens ia para floresta caçar e as mulheres ficavam responsáveis pela limpeza de suas residências. Nada incomum para aquela época. Porém algo o intrigou: um menino pálido com uma aparência adoentada, que observava a brincadeira das crianças na neve. Concluiu que ele era o filho do líder do povoado.
O andarilho foi até a pequena choupana feita de madeira onde residia a nobre senhora da noite anterior e a encontrou em prantos. Sentou-se ao seu lado e disse:
-Ainda é cedo para as lágrimas, senhora! Sei que é um momento crítico para você, mas preciso que responda algumas perguntas.
A mulher apenas balançou a cabeça, sinalizando que responderia. Então o homem continuou:
-Desde quando o menino do senhor Cajó está doente?
A mulher olhou para a janela fitando o nada e disse:
-Desde o fim da guerra contra os mouros, onde recuperamos essas terras. Na época, o menino havia sido raptado por eles, pois Cajó era um dos combatentes mais destemidos do nosso povo, juntamente com meu marido. Porém, dias depois, o menino foi encontrado em um estado catatônico no principal acampamento mouro. Todos os outros haviam morrido e o menino está nesse estado desde então. Provavelmente algum tipo de doença.
O viajante ficou pensativo por algum tempo e voltou a questionar:
-Quem o encontrou?
A mulher respondeu:
-Meu falecido marido e Cajó. Infelizmente, meu marido morreu em uma emboscada, antes de chegar ao vilarejo. Apenas Cajó e seu filho retornaram para cá.
O homem levantou-se e seguiu para a porta sem dizer mais nada, pois já ouvira o que precisava e já havia tirado algumas conclusões a respeito.
A noite do sacrifício havia chegado. Os aldeões levaram a menina ao cume e a amarraram em uma espécie de altar iluminado com duas pequenas tochas. Jogaram a sua velha mãe dentro do poço para que não pudesse impedir a atrocidade que iria ocorrer.
O andarilho apenas observava tudo, com os olhos atentos e a calma que apenas um homem sábio possui. Somente esperava o desenrolar dos acontecimentos.
Todos entraram em suas casas e trancaram suas portas. Ninguém queria ver o resultado da escolha bizarra que tinham feito para resolver seus problemas.
De muito longe, podia-se ouvir o urro da besta, enquanto se aproximava do fatídico lugar, onde estava a pequena menina. Porém, quando a fera saiu do meio dos arbustos, teve uma surpresa: não havia nada sobre o altar; apenas um velho mendigo sentado ao lado dele.
Nesse instante, a mãe dentro do poço, em prantos, ouviu a voz de sua filha do lado de fora, dizendo que tudo iria ficar bem.
O andarilho olhou para a monstruosidade. Era muito mais alta que um homem adulto, toda coberta por pelos brancos. Tinha longos chifres da cor do marfim, com velas acesas em suas pontas, como o livro havia descrito. Era uma figura familiar ao andarilho, pois ele já havia visto muitas coisas que homens seriam incapazes de fitar com seus olhos ou imaginar em seus sonhos. Nos ombros da fera, dois Imps, um de cada lado, daemons da floresta, criaturas que se assemelhavam a pequenos diabinhos avermelhados, eram responsáveis por acender as velas que repousavam nos chifres da fera.
O mendigo levantou-se e pegou um galho de arvore que estava caído no chão. A fera, nesse momento, disparou rapidamente, com muita violência, em direção ao pequeno homem.
O homenzinho, por sua vez, apenas girou rapidamente, segurando o pequeno galho de arvore de maneira suave, mas forte o suficiente para jogar um pouco de areia sobre as velas que o monstro carregava, apagando-as.
As pessoas da aldeia saíram de suas casas devido aos guinchos e grunhidos extremamente altos que começaram a ouvir. Ao verem a garota junto da mãe temeram o pior.
Cajó, ao ver a menina segura, entrou em êxtase e tentou atacar as duas inocentes que estavam abraçadas no chão. Mas, de repente, um grito estremeceu a pequena vila:
-Pare! Já chega você já fez bobagens demais!
Ao olharem em direção ao pequeno cume, viram o mendigo com algo nos braços, descendo vagarosamente. Ele parou, olhou para o chefe da vila e disse:
-Como você foi capaz de fazer isso com seu próprio filho?
Cajó, com os olhos ardendo em fúria, respondeu:
-O que você fez com ele?!
O andarilho destampou o embrulho que carregava. Era o menino, todo sujo de um sangue negro e musgoso.
O pai ao ver o filho que o filho respirava, caiu de joelhos, o abraçou e começou a pedir desculpas. O andarilho, com um olhar repreensão, perguntou:
-Por que você fez isso com seu próprio filho?
Cajó, ainda soluçando, respondeu:
-Durante a expulsão dos mouros, nossos exércitos não eram fortes o suficiente para proteger o povoado. A vida de muitos estava em jogo. Eu não sabia o que fazer. Minha falecida avó, por muitos anos, me contou lendas da região, dizendo que a natureza poderia lutar contra o homem e que havia um modo de usá-la. Mas, eu nunca acreditei em suas palavras até que vi seus livros. Era nossa ultima opção.
O mendigo olhou no fundo dos olhos do pai arrependido e exclamou de forma imperativa:
-Você amaldiçoou seu próprio filho! Transferiu seus pecados e os do marido dessa pobre senhora para uma criança! Deixou que seus inimigos a levassem! Essa era a sua opção?! Por isso, você matou o pai dessa pobre menina! Para que ele não contasse a aberração em que vocês transformaram o menino!
Cajó abaixou a cabeça e olhou com remorso aquela pobre senhora e sua filha abraçadas e um arrependimento apertou seu coração. O sentimento de culpa era insuportável. Numa ultima tentativa de explicar sua escolha, disse:
-A necessidade de muitos sobrepõe a de poucos. Foi a única alternativa... Não tive forças para olhar nos olhos de meu filho enquanto transformado em besta. Não tive forças para apagar as velas e livra-lo da maldição...
O andarilho fitou todos os aldeões presentes, que olhavam com horror aquela confissão tenebrosa, e, dando as costas a todos, concluiu seu sermão:
-Você com sua soberba em utilizar forças que não compreende, quase condenou as pessoas de que se gabava de salvar. Seu filho está salvo. A maldição poderia ter sido quebrada, como foi, mas eu também poderia tê-lo matado. Só não o fiz antes de ter certeza de que era você. Ainda bem, porque era apenas uma criança inocente... Eu pude vê-la por detrás dos olhos do monstro. No fundo, era apenas uma criança traída pelo próprio pai.
-Um filho não deve pagar pelos erros do pai. Pela criança não levarei sua vida. Apenas deixarei como maldição, a culpa por ter tornado seu próprio filho, um monstro.
Então o andarilho saiu caminhando e sumiu no meio da floresta. Ninguém daquela geração o viu de novo. O clima voltou ao normal. Os camponeses expulsaram Cajó de sua vila por ter praticado magia negra. A senhora e sua filha adotaram o pequeno menino, filho do antigo dirigente da vila. O menino por sua vez nunca falou; nem mesmo após atingir a idade adulta. Talvez, pelo trauma das coisas que foi acusado de fazer, ou, talvez, pelas coisas que viu por detrás dos olhos da besta.
Alguns meses depois, alguns caçadores da vila encontraram Cajó enforcado numa árvore próxima ao lugar onde a menina deveria ter sido morta pelo monstro que ele criou. O que o levou a fazer isso? Talvez a culpa ou talvez, o preço da maldição que jogara no próprio filho. Quem sabe...
A verdade é que nunca mais um Erchitu foi avistado em lugar algum daquela região e com a morte daqueles presentes, sua existência passou a ser um mito. Uma história que habitava o imaginário das gerações seguintes.
O andarilho continuou sua peregrinação, porque ele não possui um lar, porque ele está aqui e ali, porque ele sempre esteve aqui.
Isso é o fim.
Ou, talvez não...
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