Demônios e Úlceras
Um dos grandes males do nosso tempo é o demônio que nos assola – e que também assolamos! – chamado Conhecimento. Um dos momentos mais decepcionantes da minha vida foi ouvir de um superior hierárquico: “Conhecimento é poder!”. Quanta coisa horrível estava implícita nessa curta afirmativa. Logo de cara dava para compreender que, dentro do ambiente de trabalho, eu jamais poderia confiar em uma única palavra do que ele dissesse. Com toda certeza foi naquele momento que angariei minha primeira úlcera. Segui seu conselho: nunca confiei. Todo o conhecimento que adquiri naquela empresa foi de maneira autodidata.
O Tempo – ah, esse terrível demônio! – se passou e adquiri minha segunda úlcera ao entender que, houvesse sonegado informações, do mesmo modo que fizeram comigo, não teria amargado tantos dissabores.
O Tempo é realmente um grande cramunhão, a nos estocar as ilhargas, como se fôramos suas meras montarias. Lembro de um dia chuvoso, voltando da casa de uma colega de escola, caminhando encolhido sob as marquises. Engraçado não recordar se realmente estivera em sua casa, ou apenas a acompanhara até a frente do prédio. A Memória – esse outro tormento – seleciona o que lhe é memorável, independente da vontade. Nesse caso, importante mesmo, com toda certeza, foram as caminhadas a seu lado.
A chuva escorria pelo rosto, mas que seriam umas poucas gotas dágua comparadas à indizível felicidade de estar a seu lado? Aquela pequena caminhada era um pedaço de paraíso, um momento solene, uma fotografia no tempo. Quantas vezes a repetimos? Não seria capaz de precisar... com certeza, menos que gostaria. Quantas vezes paramos no caminho e conversamos a divina conversa dos jovens, que só os jovens entendem e lembram? Não lembro. O que fizemos para que todos aqueles momentos se tornassem um único momento para ser lembrado como todos, por mim? Juro que não sei.
Em um estalar de dedos, o Tempo – esse demônio que nos cavalga – se passou. Protegido da chuva pelo pára-brisas do carro, parei defronte ao prédio dela. Quantos anos haviam passado? Dez, quinze? Tanto fazia. Em que andar ela morava? Quarto, quinto? Será que me reconheceria? Por que eu nunca mais a procurara? Por que diabos lembrar justamente agora, quando retornava do médico com a descoberta da terceira úlcera, que ela, tão jovem, já tinha problemas estomacais?
Saí lentamente com o carro, pela Domingos Lopes, lamentando descobrir que nossos piores demônios são criados pelos arroubos juvenis. Ou pela falta deles.
(J. Miguel – ago/2001)
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