- Pai; quero te apresentar um amigo - disse meu filho, que acabava de chegar de uma praia do litoral paulista, adentrando ao quarto onde eu rascunhava um texto. Voltou-se para o corredor e reportou-se à visita:
- Entra, General; meu pai tem o costume de ler e escrever deitado e não se importa com formalidades.
Quem escreve sabe muito bem como é doloroso desprender-se de um texto na hora em que o está criando, pois não é qualquer hora que bate a inspiração. De qualquer forma, não se pode desprezar a solicitação de um filho, e tenho como regra admitir que os amigos dos meus filhos são meus amigos também. Em poucos segundos, ali estava o “general” diante de minha cama: um “cinquentão” de cabeleira esvoaçada, barba por fazer, camiseta e bermuda surradas, chinelos de dedo, tremendo de frio... é, pensei, até que enfim meu filho está recuperando seu senso de humor, pois andava deprimido, devido as seqüelas de um grave acidente com moto e, nessas circunstâncias, um novo amigo sempre é bem-vindo, mesmo que seja desses tipos mal-ajeitados com apelido de General.
Dei as boas vindas ao visitante e saímos do quarto. Mostrei-lhe os detalhes da minha residência espaçosa e arejada que “há mais de dez anos a estou construindo com minhas próprias mãos” com o intuito, é claro, de provocar-lhe um tico de inveja, enquanto tomávamos cerveja em lata.
A visita durou pouco, já que o homem precisava avistar-se com alguns parentes antes de voltar para sua casa. Despedimo-nos sem que eu sequer o acompanhasse até o portão.
- Nem parece um general, não é mesmo, pai? - disse meu filho, cheio de entusiasmo, dizendo tratar-se de um tio de sua namorada, e que tinham se hospedado em sua casa há dois quarteirões da praia e que foram tratados com mimos, tendo comido, bebido e dormido sem gastar um centavo. Para completar o privilégio, o general usou o tempo de sua folga para trazê-los à Campinas e aproveitou para visitar alguns parentes. Um frio correu-me por toda a espinha, indo bater no cóccix. E não é que se tratava mesmo de um general?!
Taí um militar diferente, filho - considerei, tentando esconder o fiasco, e discorri sobre o período da ditadura, do AI 5, do fechamento do Congresso Nacional, da censura, da bomba do Rio-Centro, do sumiço de muitos brasileiros idealistas, de um sargento reformado que fora meu chefe em uma estatal, dos vizinhos militares que tive, tais como o Roberto, que só quando pediu baixa revelou-me que era um agente do SNI, do Toledo, um tenente que queria mandar no bairro e prometeu “levantar minha ficha”, por eu ser à época um ferrenho militante da Teologia da Libertação e até mesmo daquele policial que volta e meia mandava seus colegas vasculharem os quintais aqui na vizinhança, e aproveitei para sugerir-lhe a leitura do famoso livro Brasil Nunca Mais. Não sou muito fã dessa gente - continuei, mas esse general, que humildemente entra no quarto de um simples casebre em um bairro de periferia aqui nesse fim de mundo...
Eu precisava encerrar logo o assunto da visita, antes de enrolar-me por completo na teia de meus confusos argumentos, mas não sem antes dizer algo que pudesse, enfim, confirmar a satisfação pela honra de receber em minha casa um tão ilustre visitante, o maior quilate dentre as patentes do glorioso Exército Brasileiro. Olhei bem para o meu filho e finalizei com lisonjeio: sabe de uma coisa, filhão? Da próxima vez que você e sua namorada forem a Santos eu irei com vocês! E voltei para a cama, tentando retomar o fio da meada do texto com minha sofrível inspiração.
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