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Novas Lembranças - Parte 1
Miscelâneas; Merda; Dia chuvoso; Vida; A Velhice de Cada Um
Helena Mafra

Resumo:
Primeira parte do livro de crônicas "Novas Lembranças", a ser publicado na íntegra


Novas Lembranças        


                                        
MISCELÂNEAS

      Após ter completado meus setenta e três anos de vida, no dia seguinte desse aniversário e, após também ter terminado meu primeiro livro, estou deixando aqui um novo registro. Quase nada parecido com o anterior, somente preservando a minha marca – do meu estilo, se é que o tenho... Da minha personalidade, se é que a tenho... Não mais contarei uma história de vida, cheia de amargura, de canseira, mas terá os resquícios de tudo isto nas entrelinhas, irremediavelmente. Não mais ficarei dezoito longos anos escrevendo isto, sofrendo terrivelmente! Procurarei amenizar tudo e nem terei todos esses anos de vida, é claro... Não sou nem parente longínqua de Matusalém... Quero lembrar-me de coisas bem mais agradáveis, mesmo sendo do passado. Coisas lidas, aprendidas, ouvidas, vividas, absorvidas pelo meu interior complicado, ou pela memória, se quiserem simplificar junto comigo. Verei se consigo essa façanha... Continuarei com a parturição das idéias, um parto bem mais dolorido do que os partos comuns. Sendo incorrigível como sou, escapulirá alguma coisa triste, algumas chorumelas... Ninguém escapa do que contém sua alma e eu não sou de pedra afinal...Caminhemos juntos nessa estrada turbulenta, que tentarei suavizar. No meu primeiro livro, deixei registradas notas em forma quase poética, meio fora de lugar, talvez... Aqui, posso até reeditá-las, incluindo outras que nem sempre são de minha autoria, mas que se impregnaram na minha memória, na alma, fazendo parte de mim, como se minhas fossem. Depois de se passarem uns dezoito anos com a mente ocupada com meu primeiro livro, eis que o termino, deixando-me um vazio absurdo, principalmente passando por uma limitação física deprimente, potencializando este vazio incômodo. Costumo dizer que enquanto minha mente caminha a dois mil por hora, meu corpo se arrasta, criando-me um descompasso insuportável! Com essa mania de escrever, muitas vezes viajei mentalmente, longe, bem longe de minha realidade imediata, fazendo um apanhado de observações feitas das pessoas andando na rua, ou num grupo de bate-papo, com seu modo de vestir, de cumprimentar os outros, seus trejeitos engraçados, cheios de “caras-e-bocas”, tipos físicos interessantes ou mesmo pitorescos, outras vezes ridículos. Sempre tive mania de observar narizes, orelhas, bocas, jeitos de caminhar, bundas e peitos. Não consigo passar ou permanecer perto de alguém, sem estas observações do grotesco, que nem sempre o são, mas, ao ficar reparando, acha-se alguma coisa engraçada, algum despropósito...Sempre reparei que as pessoas andam se apoiando ou ressaltando uma parte do corpo (peito, bunda, joelhos, ombros, barriga,etc.). Parece até uma catarse que uso, inconscientemente, aliviando minha vida, sempre muito pesada. É bom, pois enquanto faço isto, minha boca fica fechada, evitando falar coisas rudes que desagradam às pessoas...
Ninguém gosta de ouvir verdades a seu respeito e tenho mania também de soltar coisas que poderia guardar só para mim. Costumo dizer que sou como criança: quando me vem algo na mente ou no coração, sai instantaneamente de minha boca, soando muitas vezes como agressão. Não consigo guardar nada por muito tempo, principalmente mágoa. Chego um dia qualquer e falo com a pessoa tudo que me incomoda a seu respeito. Também não é assim tão aleatório e grosseiro; óbvio que acontece quando tenho uma certa liberdade com a mesma, se me provoca, se põe o dedo na ferida, ou se me pede opinião... Gratuitamente não acontece. Um estimulozinho que surja, estou abrindo o bocão e soltando as faíscas. Às vezes acerto, a pessoa alvo gosta, concorda aos poucos, mas nem sempre acontece assim... Uma vez tive uma crise de mão solta em vez da língua, danei a escrever coisas deste tipo, que chamei de crônicas, isto é, críticas às pessoas no cotidiano popular. Nada específico, dirigido a alguém em particular.
Vivi no seio de uma família onde não se falavam palavras rudes, nem vulgares, muito menos palavrões. Quando se estava com muita raiva de qualquer um de casa, o máximo que se dizia era – "vai amolar outro! " Meu irmão mais velho ao ter raiva de alguém xingava "vai comer broinha !" Uma época em que um dos irmãos nossos fazia uso de um medicamento denominado Poliplex, o mais velho dizia também, para quem o amolasse: " te dou um poliplex na moleira!" Havia outros xingamentos como"vai lamber sabão!" e coisas assim, muito infantis. Todo esse xingatório só podia ser dito longe de meus pais. A rigidez e a repressão eram absurdas! Um dia tive muita raiva de minha irmã mais velha e soltei -um vai tomar banho- bem sonoro, até escandindo as sílabas. Minha mãe que estava deitada em sua cama, levantou-se, sem nem calçar os chinelos, correu para o meu lado, como um bicho bravo, lascou-me um tapa na boca e aplicou-me uns beliscões muito doídos.Se si falasse um com outro "é mentira" era ganhar, no mínimo, uns beliscões! Às vezes tinha mania de escrever coisas em forma mais poética, como disse acima... Transcreverei estas bobagens por aí. Podem saltá-las, apesar de terem alguma coisa até mesmo jocosa... Aliás, não fiz nada disto com raiva e, sim, me                                                                                                                                                                                                                                    divertindo muito. Uma destas baboseiras denominei de Merda; ei-la:

MERDA


Merda é uma palavra que já foi um palavrão. Hoje é usada para incontáveis situações. Experimente, ao usar um martelo e um prego, numa parede ou em qualquer superfície perfurável e, ao se distrair ou por incompetência, eis que o danado do instrumento de trabalho, um dos mais perversos, resvala de seu controle, de sua mão, e vai direto no dedão, preferencialmente, na sua unha... Você, cheio de raiva e de dor, o que vem, incontinenti, na sua cachola, saindo de sua boca, aos gritos, às vezes em                           surdina, mas com os lábios premidos, mostrando não só sua dor, mas também sua ira... O “vai à merda” já tem outro sentido... Sai de você quando não está agüentando uma pessoa que azucrina os seus ouvidos e quer ficar livre dela, saindo enraivecido.
        Às vezes você está sozinho, chateado, deprimido, sem coisa alguma interessante para fazer, anda pela casa à procura de algo que lhe interesse, põe música em algum aparelho de som, mas nada está bom...Como se expressa nesses momentos, enquanto procura e verifica que, na realidade, não quer nada, nada – “que merda!”; é a única coisa que sai, de viva voz e aí você se prostra, cai numa cama e pensa: esta vida é uma merda!...ou – que merda de vida! A força desta palavrinha depende só da entonação que se lhe dê, da expressão adequada...
       O mais interessante deste vocábulo, que entrou para o rol das interjeições, é no mundo artístico. Há pouco tempo fiquei sabendo disto e achei muito esquisito o seu uso entre os artistas, ou pelas pessoas que trabalham em teatros, novelas, etc.. Quando vão entrar em cena, uns dizem aos outros, como cumprimento, saudação ou desejando sorte, sucesso: “Merda!” Achei de muito mau gosto inicialmente, pensando que deveriam ser mais criativos, mais delicados, sutis, por se tratarem de pessoas com certa cultura e que passam, transmitem cultura para o mundo, onde se encontram ouvintes ou espectadores de várias camadas sociais, alguns tão ou mais quadradas do que eu, alguns de gosto requintado, discretos e até mesmo rígidos moralmente. Há pessoas que não admitem ouvir palavras chulas, mesmo sabendo que merda não é mais um palavrão. Mas que é uma palavra feia, isto continua sendo... Também, é o que sempre se usa para desabafar quando se machuca de alguma forma inesperada, não tem jeito, é só ela, a merda, que sai, às vezes com toda a força dos pulmões...E todo mundo aceita e fala, resmunga ou grita!
           É uma MERDA o que acabo de escrever!...
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Como se lavasse o que acabo de escrever, achei um jeito de falar um pouco sobre a chuva...


DIA CHUVOSO


A chuva caía forte.
Dentro de casa, eu sozinha, andando lentamente de lá pra cá, pensativa, absorta, melancólica, escutando, languidamente, o barulho contínuo, ritmado da chuva lá fora, como se não fosse parar nunca. Acendi um cigarro, tentei ler alguma coisa e, incomodada, fechei o livro, sem conseguir me concentrar na leitura, continuando a caminhada lenta, preguiçosa, dentro de meu quarto, sem me prender a tarefa alguma, a coisa nenhuma. Com uma das mãos no bolso do casaco e a outra segurando o cigarro que levava á boca seguidamente, soltando a fumaça lentamente, no mesmo ritmo dos pensamentos e dos passos, aproximei-me da janela envidraçada do cômodo próximo ao que dava para o lado da rua. O não fazer nada me incomodava .... Fiquei ali paralisada, olhando através da vidraça embaçada, a quietude da rua e o cair da chuva persistente, teimosa. A solidão me invadiu completamente lá fora e a ausência de barulho dentro de casa me inquietavam, me angustiavam. Estava triste, pensativa, sem lugar, sem vontade, sem rumo, num espaço exíguo. O pensamento passeava de um fato a outro, de idéia à outra, todos inacabados, sem começo nem fim, confusamente, como a preencher, somente, o tempo ali perdido, a quase inércia temporária, aflitivamente, mas com uma aparente calma, contrapondo-se ao bater exasperado do coração e a tensão de todo o meu corpo. Ao me aproximar da janela, permaneci ali por longos minutos, à espera, talvez, de ver alguma vida lá fora, além da chuva, alguém que passasse correndo, tentando encontrar um abrigo, algum animal correndo da chuva, algum veículo... Mas coisa alguma acontecia. Parecia que o mundo parou por umas horas. Continuei, impotente, à janela, não encontrando e nem querendo achar uma alternativa. Vi que o vidro da janela estava todo molhado, respingado e comecei a brincar com as gotas: um pingo aqui, outro acolá escorriam pelo vidro.
Percebi que uma gota surgia de cima, ia se juntando a outra mais adiante, engrossando a segunda que continuava escorrendo, se juntando a uma outra, a outra mais, continuando seu percurso, até desaparecer na parte de baixo da vidraça e ao atingir a madeira da janela. Ia, assim, procurar uma outra gota, quando acontecia a mesma coisa, enquanto durou a chuva. Distraí-me por muito tempo com os pingos serenos e obsessivos da chuva na vidraça, numa monotonia sem fim. De repente me chamou a atenção um vulto negro, através do vidro embaçado e cheio de pingos da vidraça. Era um homem com roupas e chapéu escuros, com um guarda-chuva também negro, que passava na rua, sem apertar os passos, como se não importasse estarem encharcados os sapatos, roupas e chapéu, quando o uso do guarda-chuva já não lhe protegia o bastante. Apesar deste, escorria-lhe pela aba do chapéu, na frente e atrás, grande quantidade de água, o ensopando todo. Mesmo assim, ele caminhava num ritmo displicente, descendo a rua, quiçá, indo a lugar nenhum importante ou determinado. Simplesmente caminhava, competindo com a insistência da chuva, enfrentando-a. Achei esquisita aquela figura esquálida, louca, encharcada, que parecia não se preocupar com o tempo e nem com ninguém. Seria um solitário também? Ou o quê ele queria lavar com a chuva caindo a cântaros: sua alma, seu corpo, sua mente?...Ou nada disto... Apenas perambulava, talvez sentindo um prazer inconfessável ou mórbido, de se molhar todo, sem interesse de procurar um abrigo, de esperar a chuva passar. Incomodou-me muito vê-lo naquela indiferença, mas tive uma pontinha de inveja, de vontade de fazer o mesmo. Queria este homem afogar alguma mágoa? Conseguiu?
    Continuei pensativa, desviando minha atenção dos pingos da chuva que escorriam na vidraça. A obsessiva ali, acho, era eu, certamente...Mas o cair da chuva também era obsessivo...A ociosidade nos leva à obsessão, quando nos apegamos ao movimento contínuo dos pingos da chuva na vidraça, ao caminhar insignificante de um transeunte deprimido e louco, inconseqüente, na chuva, sem norte, sem objetivo sério, sem nada melhor para fazer. A solidão nos leva a coisas deste tipo, nos tira a iniciativa, nos prende ao chão, esvazia nossa mente e o coração, esfria-nos a alma, principalmente num dia chuvoso.
     As gotículas que caíam na vidraça desapareciam de certa forma, encharcando a madeira da janela, mas a água que caía com força nas pedras da rua, subia, atingindo a calça do homem, até na altura de suas panturrilhas, juntando-se á água que descia da aba de seu chapéu e do guarda-chuva. Enfim, só sua cabeça não se molhava, sem que ele se importasse com isto em nenhum momento.
    A chuva diminuíra e abri uma banda da janela, curiosa para ver se mais alguém estava na rua. Com espanto vi que o homem encharcado, ainda com o seu guarda-chuva aberto, estava parado na esquina, vendo não sei o quê, esperando não sei o quê ou quem... Continuei a observá-lo, já que não havia mais ninguém, nem um cachorro, nem carro, nada, naquele sossego monótono e quase tenebroso.
De repente, eis que o homem se movimenta lentamente, retomando o caminho de volta por onde havia passado, no mesmo passo, com a mesma aparência misteriosa, sem se virar para lado nenhum, como se fosse o único habitante do lugar, a única pessoa viva, apesar de se parecer com uma alma penada.
E se fosse uma alma penada que esteve ali, ou só na minha imaginação, não tendo realmente acontecido nada daquilo?! Estaria eu enlouquecendo? Tendo visões?

A chuva alucina? A solidão alucina?
A solidão alucina, enlouquece, paralisa, entountece, seca nossa alma, mata!
Dizem que a solidão casual é benéfica, quando encontramos conosco mesmos... O isolamento que é ruim...Assim dizem os teóricos, os que sabem fazer amizades e que acreditam nelas. Acho que a solidão nos isola e que o isolamento nos transforma em solitários. As duas coisas adoecem nossa alma e nos sugam a vida. O solitário e o que se isola são um morto-vivo!

A chuva parou. A vidraça se secou. O homem desapareceu. O movimento da rua voltou ao normal aos poucos. O arco-íris coloriu o céu, dando-lhe mais graça.
Reanimei-me, mas nem tanto... Os pensamentos confusos, misturados e inacabados continuaram, nenhuma vontade de fazer qualquer coisa, a tristeza, sem pedir licença, me invadiu o ser e se aninhou em minh’alma. Nada, da essência, mudou. A solidão continua persistente. Que tédio infindo!
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VIDA


Minha vida sempre foi interessante, cheia de percalços, mas intensa, cansativa, acho, pela minha intensidade interior. Muito atenta a tudo e a todos, nos mínimos detalhes, tornou-se cansativo viver. Apesar de observadora e metida a analisar as coisas e pessoas, na maioria do tempo não entendi nada e ninguém... Acho.
Existe, nas pessoas, muita falsidade e maneirismos nas atitudes, talvez como forma de salvaguardar o interesse próprio... Não sei...
Serei louca, neurótica, burra, para não saber fazer um juízo exato das atitudes das pessoas ao meu redor?

Como julgam mal a velhice de cada um!
Juro não ser débil mental, retardada ou insensível, para não perceber ou sentir os olhares atravessados, os trejeitos, as formas de mostrarem preocupação comigo, nos relacionamentos superficiais, formais, como se obrigados fôssemos a conviver. Nota-se um incômodo, uma pressa, ou uma desatenção de tudo que se diga, principalmente se si tratar de como estou me sentindo ou se arrisco relatar algo pessoal. Aí o bicho pega... Às vezes fingem tão mal estarem prestando atenção, que se pararmos de falar no meio do relato, ninguém nota e tudo fica perdido no ar, que vai se tornando pesado; talvez só para mim... Seria paranóia minha? Às vezes isto é tão explícito, que, tranqüilamente, falam outras coisas ao mesmo tempo, não tendo nada a ver com o que você disse... Nem a escutaram; o pensamento deles está, talvez, no seu próprio umbigo ou em outros interesses, geralmente onde você não está incluída e nem a incluem, até porque você não sabe de quê se trata, pelas linguagens cifradas, em códigos particularíssimos, que por mais inteligente e perspicaz, jamais saberá o que dizem, via de regra entre dentes ou resmungos impacientes, dando como encerrada a visita ou a formalidade do estar ali com você.
Que sacrifício inútil e incômodo para todos, estas formalidades! O amor ao próximo é muito difícil; se não há amor, para quê serve este sacrifício e por quê é tão comum e frustrante tudo isto?! Por quê as pessoas continuam agindo assim, com tanta freqüência, se elas sentem e você se sente como uma ave fora do ninho ou um peixe fora d’água, como queiram... Falam muito em carência afetiva atualmente, de depressão... Claro! Os relacionamentos superficiais, egoísticos, insinceros, formais, apressados, deveriam produzir o quê?! A alegria de viver, esta, é fato raríssimo! Junto à alegria de viver está igualmente deformada a alegria do estar juntos, do compartilhar, mesmo nas crianças isto é notado, como se tivessem passado a elas, também, instruções de repressão, de comedimento exagerado, de cautela neurótica e neurotizante. Será que nós temos medo de tudo e de todos, nesta vida enfadonha? A vida não serve mais para ser vivida? Onde estarão: a poesia, a alegria, a autenticidade tão decantada atualmente, mas tudo isto espremido no peito ou, talvez, no cérebro condicionado? Ah! Pavlov, não precisava de tanto! Para os sentimentos não; por favor! Não podemos quebrar a beleza do viver humano, com a alegria de estar com outro ser humano, trocando figurinhas. Dizem que o homem veio ao mundo para ter alegria... Onde estará ela escondida que não a encontramos? Disse também um poeta que a felicidade está não onde estamos, mas onde a pomos, querendo dizer, quem sabe, que fica dentro de nós ou que nós a comandamos. Teremos que tirá-la com formão, com alavanca ou com o quê, de dentro de nós? É difícil! Quanta sede de felicidade, de alegria, respeito, autenticidade, naturalidade, lealdade, fraternidade, como sentimentos verdadeiros, eu sinto, todos devemos sentir! Um dia, quem sabe, poderemos crescer, na mais alta acepção da palavra, é claro, quando poderemos caminhar juntos, de mãos dadas, mesmo que isto seja somente “ipsis verbis”, podendo olhar “olhos nos olhos”, sem desvios furtivos. Acho que o poeta das pombas está mais certo... Chegaremos lá, certamente, em outras reencarnações...Se é que existem mesmo. Se não, continuemos a sonhar pelo menos...

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A VELHICE DE CADA UM



Para mim a velhice sempre foi prosáica, desinteressante, limitativa, sugerindo certa distância, não sei se de medo ou de intocabilidade pelo respeito excessivo, talvez. Poderia ser também por insegurança ou a pressão da ascendência exercida sobre mim... Nunca me aproximei muito de pessoas mais velhas, homem ou mulher. Há pessoas que veneram os velhos, procuram se aproximar, entabulam conversa, os acariciam, os tratam como a uma criança. Falam-lhes num tom de voz alto, como se fossem obrigatoriamente surdos ou débeis mentais; ao caminharem juntos, seguram-lhes o braço, achando que irão cair a qualquer momento, ou como se dirigissem um cego, ou um incapaz de enxergar um palmo diante do nariz, uma pedra no caminho. Há velhos que, por outro lado, fazem corpo mole, adoram parecer incapazes, trôpegos, dependentes, nas mínimas ações do dia a dia.
Há tanto preconceito com a velhice que lhe arranjaram apelido: idoso! Velho e velhice eram termos usados sem restrição e significavam apenas muitos anos de vida e experiência. A velhice não se constituía de desdouro, nem demérito. Era expressão adequada e ninguém se ofendia de carregá - la. Não era xingatório... Apesar de não me atrair a velhice, sempre a respeitei, agindo educadamente, cedendo lugar em filas, num coletivo, em qualquer circunstância, pelo respeito, pela consciência do cansaço possível e previsível, numa atitude natural, lógica, espontânea, de sensatez, como a boa educação nos ensina. Talvez por não ser muito paciente, sempre guardei certa distância de velhos, mas não exageradamente. Resguardava-me somente, acho, por não saber lidar ou por desagrado mesmo... Não que já tenha tratado mal um idoso alguma vez. Mesmo que pareça, pela minha referência, admiro a alegria, a experiência de vida, a caminhada mesmo que trôpega, cuidadosa, insegura, de um velho; a experiência de vida guardada e expressa na fala, nas atitudes, nos ensinamentos, na clareza de visão das coisas muitas vezes que nem aconteceram ainda. Apesar da fraca visão física, muitas vezes o “enxergar longe” da maioria dos velhos é incrível! Seria como o ditado revela: “ quando você vem com o fubá, meu mingáu já está pronto!” A leitura das entrelinhas é sempre feita pelo velho, mesmo que não seja letrado. Mas há os ingênuos também que, parece, não saíram da primeira infância. Até se ouve muito que o velho de setenta vira criança novamente. Estou com quase setenta e quatro e não cheguei a isto... Acho. Há os que se fazem de bobos para viverem sossegados, em paz.
Há pessoas de pouca idade, às vezes cheirando a cueiro, que adoram achar que todo velho é burro, não sabe mais de nada, é bobo e o tratam assim, invertendo as atitudes ou a ordem das coisas, querendo mandar, controlar o velho todo o tempo. Na minha adolescência tive mestres velhos, uns maravilhosos, outros que me davam impressões diferentes, díspares, confusas, de quem sempre eu mantinha distância, por excesso de respeito ou mesmo de medo. Dentre estes, lembro-me de D. Afonsina Brandão, diretora de uma das escolas primárias que freqüentei, o Grupo Escolar D. Pedro II. Era uma fera a mulher! Todos nós morríamos de medo dela, de sua aproximação. Então nas filas ou nos corredores da escola, era demais! Ao se dirigir a um aluno isoladamente, era uma doçura! Em conjunto, era um terror! Parecia ter sido linda quando jovem!
O professor Edgar Renault, que por um ano foi meu professor de matemática, era outro velho ranzinza, bravo demais! Durante sua aula tinha-se que ouvir o vôo dos mosquitos... e seu vozeirão. Não admitia nem perguntas sobre a matéria! Era totalmente descontrolado, nervoso, neurótico. Devia ter ódio do mundo, das pessoas, da vida. Um dia explicava a matéria, quando uma aluna falou qualquer coisa em voz baixa, talvez até que não estivesse entendendo coisa alguma. O professor ficou tão furioso, por tão pouco, que, ao esbravejar lhe caiu da boca a dentadura superior, em cima de sua mesa. Aí não se conteve mais! Trancou a porta da sala, nos prendendo durante o horário de três aulas seguidas! Por mais que o diretor geral do Instituto de Educação, que era o Dr. Emanuel Brandão; a diretora do curso de Formação de Professores, na época Prof. Maria José Paiva; serventes da escola, outros professores pedissem para que o prof. Edgar abrisse a porta da sala, ele não dava a menor confiança, como se estivesse surdo, apresentando tiques nervosos, uns espasmos involuntários do pescoço e da cabeça, totalmente possesso! Conheci várias loucuras dele, pois, apesar de estar ainda no primeiro ano do curso, já dava aula na Escola Cesário Alvim, curso noturno para adultos. Esta escola era e é ainda na Rua Olegário Maciel, com Rua Guarani, tendo que passar pelo final de linhas de bonde que havia na Rua Carijós, que vivia cheiíssimo de gente e uma molecada terrível. Era de dar medo! Uma noite, ao me dirigir para a escola, notei uma baderna diferente. Morrendo de medo de passar ali, tive de enfrentar, quando vi que os moleques, adultos e adolescentes, corriam, às gargalhadas e gritos, do prof. Edgar, que empunhava uma bengala, ameaçando a rapaziada, enfurecido. Chamavam-no de “Bacuráu”; não sei por quê... Fiquei horrorizada com aquilo e muito decepcionada!
Outra idosa, também professora de matemática, foi D. Odete Klëin. Esta ensinava muito bem, sendo, apesar de velha, bonita, mas muito brava e impaciente. Morríamos de medo dela.Como era exigente, severa, irritada, meu Deus! No primeiro dia de aula do ano, chegando ao meu nome na chamada, mandou que eu me levantasse, o que fiz tremendo as pernas. Perguntou-me muito séria: “o que você é de Eurico?” Respondi que era prima. D. Odete virou-se para a turma e, indiretamente para mim, pois não me olhava, me desafiou: “foi o melhor aluno que tive em minha vida de professora. Espero que você pelo menos seja tão inteligente quanto ele, o que acho difícil”.
Tive outros professores idosos, mas alguns muito doces, mais amenos, equilibrados, apesar de exigentes também. Um deles foi cientista, pesquisador e professor da Escola de Medicina de Belo Horizonte, o famoso Dr. Marques Lisboa. Este dava aula em tom de discurso enfático, depois de fazer uma oração de mãos postas, antes de iniciar sua aula. Outro mestre bondoso e exigente foi o prof. Mesquita de Carvalho. De uma sabedoria e introspecção impressionantes. Era ótimo professor de português. Tinha estilo socrático para lecionar. Com ele analisamos os Lusíadas de Camões, com exceção do nono canto, não sei por quê...Eu gostava e achava poético o nome de seu filho – Mistral! Parecia um pestinha o menino, com aquelas sardinhas no rosto! O prof. Mesquita era adorado e temido ao mesmo tempo. Contudo, era um romântico...
Agora, vejamos outros velhos...
Minha avó paterna que faleceu em fins da década de quarenta, com seus oitenta e sete anos, acho, era uma mulher muito alta e forte. Ela viveu sua velhice assim: cega, tranqüila, gorda pelo pouco movimento que fazia com o corpo. Lembro-me de seus oitenta anos, quando lentamente caminhava pela casa, para tomar banho, amparada por alguém que lá estivesse, além da Bulúia e da tia Nhanhá. Aos oitenta e um anos, fraturou o braço na banheira, teve pneumonia, foi desenganada pelos médicos várias vezes. Sempre se ouvia dizer: “sua avó tem poucos dias de vida”. Viveu mais uns anos, desafiando a morte. Mesmo cega, cosicava seus panos. Contava histórias interessantes, acompanhadas de risinhos abafados e com seu olhar indefinido, apontando sempre para o nada. Casou-se aos treze anos de idade! Gostava de oferecer biscoitinhos e docinhos a quem a visitasse, guardados numas latinhas.
Meus avós maternos tiveram pouco contato conosco. Moravam no interior de Minas, em Ferros. A avó fabricava doces, velas de cera, pães, biscoitos, tudo muito bem feito e gostoso. O avô era um doce de criatura! Muito humilde, brincalhão, um santinho. Os dois fumavam cigarros de palha continuamente. Às vezes se esqueciam de um que já estava no canto da boca e acendiam mais um... Morreram, também, aos oitenta e tantos anos.
Com toda graça individual que cada um possa ter, a velhice é triste, por mais que os metidos a otimistas queiram dourar a pílula. Meu pai diria: bonita e triste! Eu digo: não é nada belo deparar-se com sulcos de rugas no rosto; manchas escuras nas mãos, no rosto, nas carecas; a boca, quase sempre, semi-aberta, quase entrando mosquito; olhos lacrimejantes, como se chorassem a saudade da juventude que não volta mais; muitas vezes tremores nas mãos e/ou nas pernas; a diminuição ou perda de várias habilidades outrora vivazes; o andar trôpego, a fala trôpega, com descontinuidade de assuntos e outros bichos mais! A tudo isto acrescentem a falta de paciência com os jovens e dos jovens com os mais velhos. O jovem quando adoece preocupa a todos; o velho recebe na cara os dizeres de pouco caso: “ é o dna”, não querendo dizer o DNA da genética, isto não. Significa: data de nascimento antigo, ficando, assim, tudo bem... Soa como se dissessem: você está velha, na hora de morrer; não tem jeito... O mundo é dos jovens! O belo e o novo fascinam; o velho incomoda...
Não temos mais direito à privacidade, à liberdade, à vontade, à paz, a espaço físico, nem mental!
Velho, idoso, maturidade, terceira, quarta idade, idade provecta, idade das reminiscências, decrepitude, dna, caquético, senilidade, geriatria... Quantos nomes discriminadores! Todos nós não caminhamos naturalmente para o mesmo fim? Aliás, nem todos...Alguns se cansam prematuramente, desistindo cedo demais da caminhada difícil. Há jovens-velhos e velhos-jovens...
Não deixa de ser belo e bom, mesmo que não esteticamente, chegar à velhice, após termos transposto, simbolicamente, pedras, rios, águas turbulentas, escalamos montanhas à primeira vista intransponíveis, escalamos abismos profundos, ultrapassamos muralhas imensas e com alguma força ainda, com coragem, com destemor, mesmo que a respiração nos tráia, que a fragilidade das pernas nos deixe pra trás, que as lágrimas se escorram do coração, apesar de os olhos estarem secos...
Se eu puder terminar a caminhada com lucidez já está ótimo!


Biografia:
Nascida em Diamantina,em 26-02-1931.Iniciei a escola aos seis anos,quando tivemos que nos mudar para Belo Horizonte,eu emeus sete irmãos,meus Pais,dois Educadores,sendo meu Pai Diretor da Escola Normal.Chegando em Belo Horizonte, de trem-de-ferro,éramos 11 pessoas desembarcando na Estação Férrea de BH,isto contando com empregada e um seu filho.Não me aceitaram no Grupo Escolar Barão do Rio Branco(não tinha sete anos ainda).No ano seguinte,já que morávamos na Rua dos Inconfidentes,fui matriculada no Barão.Estudei 1 ano aí,quando dois anos depois nos mudamos para o Barro Preto,passando a estudar nas Classes Anexas da Escola de Aperfeiçoamento Escolar,onde minha Mãe passou a estudar.Era uma Escola com poucos alunos,selecionados por Testes,para servir ao Curso de Aperfeiçoamento de mestras.Cursando o segundo ano aí,mudamo-nos para o Bairro de Santa Efigênia,quando passei a estudar no Grupo Escolar Pedro II.Depois deste Grupo, como eram chamadas as Escolas de primeiro grau.Passei para a Escola Normal,hoje Instituto de Educação, tendo feito aí,também,o Curso de Formação de Professores e,mais tarde, o Curso de Pedagogia, no mesmo lugar.Anos após,fiz o quarto ano de Formação, que era chamado também, de Cursos Adicionais.Anos depois fiz Pedagogia,também no Instituto de Educação.Até aí lecionei em várias Escolas e sempre fazendo outros Cursos de especialização em várias áreas.Lecionei em Belo Horizonte, em algumas escolas, aliás, desde o primeiro ano de Formação já comecei a lecionar numa Escola noturna para adultos...Dei aula também em Araxá, em três Escolas,já casada e com seis filhos, tendo nascido mais uma filha aí.Voltando de Araxá para Belo Horizonte, trabalhei na Secretaria da Educação,depois passei para uma Escola de crianças e adolescentes com dificuldades especiais,logo,logo, tendo feito um Curso Especializado, tendo a matéria Fonoaudiologia, quando me saí muito bem,passei a trabalhar com a Fonoaudiologia.Em 1983,com o reconhecimento da Profissão,além de receber a Carteira Profissional de Fonoaudióloga,emitida pelo Conselho Federal,com Sede no Rio de Janeiro,e fui devidamente nomeada Fonoaudióloga do Estado. Aos cinquenta anos de idade, resolvi fazer o Curso de Direito na Faculdade Milton Campos, onde me formei.Até Curso de Taquigrafia inventei de fazer!Foram muitos outros feitos, com devidos certificados.Estava iniciando o Curso de Direito quando me deu vontade enorme de escrever um livro e o escrevi, durante muitos anos, num trabalho enorme e está guardado sem editar até hoje! Casei-me em 1953, aos vinte e dois anos,fiquei viúva em 1978, com sete filhos. Hoje tenho vinte e um netos, um casal de bisnetos,todos lindos e inteligentes.Aposentei-me do Estado em 1988 e adoro escrever e ler, amo música clássica e lírica e vou vivendo até quando não se sabe...
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