Na cidade de Roskilde, certa manhã um garotinho, filho do sapateiro Vidar, estava comendo uma fruta debaixo da pereira nos fundos do quintal quando um pássaro azul pousou em seu ombro.
- Mas veja só que bichinho atrevido! – ele disse feliz da vida, e com a ponta do dedo indicador acariciou a cabecinha da ave, ela ficou tão feliz que começou a gorjear. O menino nunca tinha ouvido semelhante sonoridade. Então entrou em casa e perguntou pra mãe se aquele passarinho empoleirado em seu ombro era um antriyk. A mãe olhou que olhou a avezinha e fez um beicinho.
- Tanto pode ser como pode não ser. Pergunta pro seu pai.
O menino foi à sapataria.
- Pai, sabe o gênero dessa coisinha bonita?
- Parece um antriyk. Só que antriyk é dum azul mais claro.
- Então não é antriyk.
- Tanto pode ser, como pode não ser.
- Acha que o professor Bjarne sabe?
- Acho que sim, afinal ele vive observando pássaros com uma luneta.
- Vou perguntar pra ele.
O menino voltou para casa, ajeitou o pássaro em uma cesta de vime sem tampa, supriu-a com um potinho de água fresca e pedacinhos de kiwi, ameixas amassadas e gomos de laranja – tinha certeza que o bichinho se alimentava de frutas. Depois foi procurar o mestre Bjarne. No caminho para a escola, encontrou uma menininha.
- O que você tem aí na cesta? – ela perguntou.
- Não está vendo? É um passarinho.
- Ele está com a asinha quebrada?
- Claro que não. Ele não voa porque não quer.
- Se eu olhar de pertinho, será que ele se assusta?
- Duvido muito, ele é mansinho. Acha que é um antriyk?
A menina observou o pássaro bem de pertinho, sem tocá-lo.
- Não é um antriyk, é o Pássaro Azul da Felicidade. Você o encontrou numa árvore branca?
- Não, numa pereira. E não fui eu que o encontrei, o passarinho pousou em meu ombro por conta própria.
- Ele mora numa árvore branca cheia de frutos que realizam nossos desejos. Vai ver que se perdeu e quer que você encontre pra ele o caminho de volta.
- Ainda acho que é um antriyk. E você está inventando essa história de Pássaro Azul da Felicidade.
- Você é um bobo – disse a menininha, ofendida.
- Boba é você – replicou o garotinho. Mostraram a língua um para o outro e se afastaram. Quando o menino chegou ao pátio da escola não havia alunos à vista porque estavam envolvidos nos preparativos para as festas da colheita do trigo. Ao lado do prédio do colégio ficava a casa do professor. Ele bateu à porta, o mestre veio atendê-lo. O garoto apontou a ave:
- O senhor pode me dizer se esse passarinho é um antriyk?
O velho mestre colocou a cesta diante dos olhos.
- É uma avezinha amestrada?
- Eu não sei. Ele apareceu de repente e pousou no meu ombro.
- Pois eu acho que é amestrada. Nenhuma ave silvestre procura o ser humano assim de livre e espontânea vontade.
- Mas esse passarinho é ou não é um antriyk?
- Ele canta?
- Canta sim.
- Como é o canto dele?
O menino assoviou imitando o trinar da ave.
- Acho que não é antriyk – disse o professor. – o antriyk não gorjeia, ele só pia. Assim como os pardais. Mas pode ser, e isso não é impossível, que esteja surgindo uma nova espécie que tenha aprendido a cantar.
- Ou seja, é um antriyk, mas um antriyk desconhecido – disse o menino, inconsciente do sarcasmo implícito na frase.
- Ninguém sabe tudo, menino. E não é nenhuma vergonha admitir nossa ignorância. Mas se não sabemos que ave é esta, vamos descobrir.
Convocou o menino para sua biblioteca e pegou um monte livros de ornitologia. Sentaram-se em lados opostos à mesa e passaram a consultar os volumes. O menino apenas olhava os desenhos, já que ainda não aprendera a ler – um desejo que ele acalentava no peito, mas naquele tempo só os garotos ricos podiam sentar nos bancos escolares. O professor lia e relia as palavras impressas. Às vezes o gurizinho encontrava uma gravura de pássaro azul e comparavam-na com o bichinho na cesta, confabulavam a respeito e chegavam à conclusão de que as aves se pareciam, mas olhando bem tinham diferenças quase imperceptíveis. Folhearam uns quantos livros e não se chegou a resultado algum.
- Vamos consultar o meu colega, o sábio Hallvar.
O menino ficou embasbacado.
- O senhor consegue falar com o sábio Hallvar?
- Claro – disse o mestre Bjarne.
- Mas ele vive na corte rodeado de nobres!
- Menino, aprenda uma coisa: o saber derruba qualquer barreira social. Hallvar e eu somos assim, unha e carne. Vamos, pois, ao palácio.
Mestre Bjarne pegou seu cajado, o menino segurou a cesta e saíram para a rua. Passaram pela sapataria, o professor informou ao pai do garoto da intenção de ambos e seguiram em frente. Em trinta minutos saíram da cidade e se enveredaram pela estrada sulcada pelas rodas de carruagens e carroças. Numa boa caminhada de duas horas chegariam ao palácio. O professor aproveitava que tinha um ouvinte silencioso e discorria sobre as aves do mundo inteiro. Mas o menino não prestava a atenção que o mestre imaginava, porque logo perguntou:
- Mestre, o senhor acha que o bichinho pode ser o Pássaro Azul da Felicidade?
- Que besteira é essa?
- Uma menininha me disse isso, e também que o passarinho mora numa árvore branca, essa árvore dá umas frutas gostosas e basta a gente comê-las e nossos desejos serão atendidos.
- Tolice, essa lorota não passa de um conto da carochinha – afirmou o professor, categoricamente.
Continuaram a seguir pela estrada, em silêncio. O pássaro azul voou do cesto e veio pousar em cima da cabeça do menino, que sorriu. O professor observou a cena de soslaio e também achou graça.
Quando estavam a menos de um quilômetro do palácio, ouviram o barulho de cascos de animais. Saíram da estrada e minutos depois surgiu uma carruagem atrelada a duas parelhas de garbosos cavalos e, na retaguarda, cavaleiros de escolta em montarias negras enfeitadas com penachos vermelhos e brancos, as cores da bandeira e das armas reais.
- Estão levando a princesinha para o passeio semanal – disse o professor.
- O senhor conhece a princesinha?
- Já tive um encontro com ela.
- É uma princesinha bondosa?
- É uma insolente – respondeu o mestre, lembrando-se que tinha sido convocado ao palácio com a incumbência de prover Sua Alteza dos conhecimentos de mecânica celeste. Foi levado à presença da princesinha. Ela mirou-o da cabeça aos pés e depois disse, com desdém:
- Não quero esse professor. Além de ser meio corcunda, ele tem cara de caroço de pêssego.
O mestre e o menino se prepararam para as curvaturas reverenciais à passagem do séquito real e ficaram surpresos quando a carruagem estacionou a poucos metros de ambos. E ainda mais espantados quando a princesinha abriu a janela do veículo e gritou:
- Você aí, menino, venha cá!
- Eu?! – gaguejou o garotinho.
- Claro que é você! Aproxime-se!
O menino se achegou à janelinha da carruagem.
- Que pássaro é este na sua cabeça?
- É um antriyk, princesinha. Bem, eu acho que é um antriyk...
- Coloque-o no cesto e me dá aqui.
O garoto obedeceu. A princesinha mostrou a ave às damas de companhia, uma delas cochichou-lhe ao ouvido:
- Essa ave ficaria linda empalhada e colocada no seu quarto de bonecas.
- Tem certeza?
- Tenho sim, Alteza.
- Você será meu para sempre – sussurrou a princesa passando o dedo na cabecinha do antriyk, depois bradou ao cocheiro que continuasse o passeio.
- Meu passarinho! – gritou o menino enquanto pulava para a beira da estrada – mesmo assim quase foi atropelado pelas rodas traseiras do veículo. E ficaram, o garotinho e o mestre, olhando a carruagem e escolta desaparecendo num rastro de poeira.
- A princesinha vai cuidar bem da sua ave – disse o professor a título de consolo, mas entristecido porque sabia qual era o destino do suposto antriyk, conhecia o taxidermista real e este já lhe tinha falado da paixão de Sua Alteza pelos pássaros empalhados.
- Ela é uma ladrona, isso sim – retorquiu o garoto, ressentido.
Mestre Bjarne então se sentiu culpado pelos acontecimentos, a ideia de ir ao palácio consultar o sábio Hallvar, brotada de sua inesgotável curiosidade científica, resultara naquela catástrofe.
- Eu vou te recompensar pela perda, menino. Assim que as aulas se reiniciarem, quero você sentadinho nos bancos escolares.
- Meu pai não pode pagar.
- Quem falou em pagar? Vou ensinar o que sei a você gratuitamente.
Deram as mãos e retornaram para a cidade. O menino estava radiante. E agora tinha certeza que seu bichinho não era afinal um antriyk, mas o verdadeiro Pássaro Azul da Felicidade. E que a árvore branca era o professor e seus frutos o saber. Quanto ao passarinho, se o mestre e o menino estivessem prestando atenção ao cortejo na estrada, teriam visto que ele havia fugido da carruagem e cortava o céu em voo picado para atender aos desejos de alguma outra criança sortuda.
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