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Um pássaro muito esquisito
J. Athayde Paula

Na cidade de Roskilde, certa manhã um garotinho, filho do sapateiro Vidar, estava comendo uma fruta debaixo da pereira nos fundos do quintal quando um pássaro azul pousou em seu ombro.
- Mas veja só que bichinho atrevido! – ele disse feliz da vida, e com a ponta do dedo indicador acariciou a cabecinha da ave, ela ficou tão feliz que começou a gorjear. O menino nunca tinha ouvido semelhante sonoridade. Então entrou em casa e perguntou pra mãe se aquele passarinho empoleirado em seu ombro era um antriyk. A mãe olhou que olhou a avezinha e fez um beicinho.
- Tanto pode ser como pode não ser. Pergunta pro seu pai.
O menino foi à sapataria.
- Pai, sabe o gênero dessa coisinha bonita?
- Parece um antriyk. Só que antriyk é dum azul mais claro.
- Então não é antriyk.
- Tanto pode ser, como pode não ser.
- Acha que o professor Bjarne sabe?
- Acho que sim, afinal ele vive observando pássaros com uma luneta.
- Vou perguntar pra ele.
O menino voltou para casa, ajeitou o pássaro em uma cesta de vime sem tampa, supriu-a com um potinho de água fresca e pedacinhos de kiwi, ameixas amassadas e gomos de laranja – tinha certeza que o bichinho se alimentava de frutas. Depois foi procurar o mestre Bjarne. No caminho para a escola, encontrou uma menininha.
- O que você tem aí na cesta? – ela perguntou.
- Não está vendo? É um passarinho.
- Ele está com a asinha quebrada?
- Claro que não. Ele não voa porque não quer.
- Se eu olhar de pertinho, será que ele se assusta?
- Duvido muito, ele é mansinho. Acha que é um antriyk?
A menina observou o pássaro bem de pertinho, sem tocá-lo.
- Não é um antriyk, é o Pássaro Azul da Felicidade. Você o encontrou numa árvore branca?
- Não, numa pereira. E não fui eu que o encontrei, o passarinho pousou em meu ombro por conta própria.
- Ele mora numa árvore branca cheia de frutos que realizam nossos desejos. Vai ver que se perdeu e quer que você encontre pra ele o caminho de volta.
- Ainda acho que é um antriyk. E você está inventando essa história de Pássaro Azul da Felicidade.
- Você é um bobo – disse a menininha, ofendida.
- Boba é você – replicou o garotinho. Mostraram a língua um para o outro e se afastaram. Quando o menino chegou ao pátio da escola não havia alunos à vista porque estavam envolvidos nos preparativos para as festas da colheita do trigo. Ao lado do prédio do colégio ficava a casa do professor. Ele bateu à porta, o mestre veio atendê-lo. O garoto apontou a ave:
- O senhor pode me dizer se esse passarinho é um antriyk?
O velho mestre colocou a cesta diante dos olhos.
- É uma avezinha amestrada?
- Eu não sei. Ele apareceu de repente e pousou no meu ombro.
- Pois eu acho que é amestrada. Nenhuma ave silvestre procura o ser humano assim de livre e espontânea vontade.
- Mas esse passarinho é ou não é um antriyk?
- Ele canta?
- Canta sim.
- Como é o canto dele?
O menino assoviou imitando o trinar da ave.
- Acho que não é antriyk – disse o professor. – o antriyk não gorjeia, ele só pia. Assim como os pardais. Mas pode ser, e isso não é impossível, que esteja surgindo uma nova espécie que tenha aprendido a cantar.
- Ou seja, é um antriyk, mas um antriyk desconhecido – disse o menino, inconsciente do sarcasmo implícito na frase.
- Ninguém sabe tudo, menino. E não é nenhuma vergonha admitir nossa ignorância. Mas se não sabemos que ave é esta, vamos descobrir.
Convocou o menino para sua biblioteca e pegou um monte livros de ornitologia. Sentaram-se em lados opostos à mesa e passaram a consultar os volumes. O menino apenas olhava os desenhos, já que ainda não aprendera a ler – um desejo que ele acalentava no peito, mas naquele tempo só os garotos ricos podiam sentar nos bancos escolares. O professor lia e relia as palavras impressas. Às vezes o gurizinho encontrava uma gravura de pássaro azul e comparavam-na com o bichinho na cesta, confabulavam a respeito e chegavam à conclusão de que as aves se pareciam, mas olhando bem tinham diferenças quase imperceptíveis. Folhearam uns quantos livros e não se chegou a resultado algum.
- Vamos consultar o meu colega, o sábio Hallvar.
O menino ficou embasbacado.
- O senhor consegue falar com o sábio Hallvar?
- Claro – disse o mestre Bjarne.
- Mas ele vive na corte rodeado de nobres!
- Menino, aprenda uma coisa: o saber derruba qualquer barreira social. Hallvar e eu somos assim, unha e carne. Vamos, pois, ao palácio.
Mestre Bjarne pegou seu cajado, o menino segurou a cesta e saíram para a rua. Passaram pela sapataria, o professor informou ao pai do garoto da intenção de ambos e seguiram em frente. Em trinta minutos saíram da cidade e se enveredaram pela estrada sulcada pelas rodas de carruagens e carroças. Numa boa caminhada de duas horas chegariam ao palácio. O professor aproveitava que tinha um ouvinte silencioso e discorria sobre as aves do mundo inteiro. Mas o menino não prestava a atenção que o mestre imaginava, porque logo perguntou:
- Mestre, o senhor acha que o bichinho pode ser o Pássaro Azul da Felicidade?
- Que besteira é essa?
- Uma menininha me disse isso, e também que o passarinho mora numa árvore branca, essa árvore dá umas frutas gostosas e basta a gente comê-las e nossos desejos serão atendidos.
- Tolice, essa lorota não passa de um conto da carochinha – afirmou o professor, categoricamente.
Continuaram a seguir pela estrada, em silêncio. O pássaro azul voou do cesto e veio pousar em cima da cabeça do menino, que sorriu. O professor observou a cena de soslaio e também achou graça.
Quando estavam a menos de um quilômetro do palácio, ouviram o barulho de cascos de animais. Saíram da estrada e minutos depois surgiu uma carruagem atrelada a duas parelhas de garbosos cavalos e, na retaguarda, cavaleiros de escolta em montarias negras enfeitadas com penachos vermelhos e brancos, as cores da bandeira e das armas reais.
- Estão levando a princesinha para o passeio semanal – disse o professor.
- O senhor conhece a princesinha?
- Já tive um encontro com ela.
- É uma princesinha bondosa?
- É uma insolente – respondeu o mestre, lembrando-se que tinha sido convocado ao palácio com a incumbência de prover Sua Alteza dos conhecimentos de mecânica celeste. Foi levado à presença da princesinha. Ela mirou-o da cabeça aos pés e depois disse, com desdém:
- Não quero esse professor. Além de ser meio corcunda, ele tem cara de caroço de pêssego.
O mestre e o menino se prepararam para as curvaturas reverenciais à passagem do séquito real e ficaram surpresos quando a carruagem estacionou a poucos metros de ambos. E ainda mais espantados quando a princesinha abriu a janela do veículo e gritou:
- Você aí, menino, venha cá!
- Eu?! – gaguejou o garotinho.
- Claro que é você! Aproxime-se!
O menino se achegou à janelinha da carruagem.
- Que pássaro é este na sua cabeça?
- É um antriyk, princesinha. Bem, eu acho que é um antriyk...
- Coloque-o no cesto e me dá aqui.
O garoto obedeceu. A princesinha mostrou a ave às damas de companhia, uma delas cochichou-lhe ao ouvido:
- Essa ave ficaria linda empalhada e colocada no seu quarto de bonecas.
- Tem certeza?
- Tenho sim, Alteza.
- Você será meu para sempre – sussurrou a princesa passando o dedo na cabecinha do antriyk, depois bradou ao cocheiro que continuasse o passeio.
- Meu passarinho! – gritou o menino enquanto pulava para a beira da estrada – mesmo assim quase foi atropelado pelas rodas traseiras do veículo. E ficaram, o garotinho e o mestre, olhando a carruagem e escolta desaparecendo num rastro de poeira.
- A princesinha vai cuidar bem da sua ave – disse o professor a título de consolo, mas entristecido porque sabia qual era o destino do suposto antriyk, conhecia o taxidermista real e este já lhe tinha falado da paixão de Sua Alteza pelos pássaros empalhados.
- Ela é uma ladrona, isso sim – retorquiu o garoto, ressentido.
Mestre Bjarne então se sentiu culpado pelos acontecimentos, a ideia de ir ao palácio consultar o sábio Hallvar, brotada de sua inesgotável curiosidade científica, resultara naquela catástrofe.
- Eu vou te recompensar pela perda, menino. Assim que as aulas se reiniciarem, quero você sentadinho nos bancos escolares.
- Meu pai não pode pagar.
- Quem falou em pagar? Vou ensinar o que sei a você gratuitamente.
Deram as mãos e retornaram para a cidade. O menino estava radiante. E agora tinha certeza que seu bichinho não era afinal um antriyk, mas o verdadeiro Pássaro Azul da Felicidade. E que a árvore branca era o professor e seus frutos o saber. Quanto ao passarinho, se o mestre e o menino estivessem prestando atenção ao cortejo na estrada, teriam visto que ele havia fugido da carruagem e cortava o céu em voo picado para atender aos desejos de alguma outra criança sortuda.


Biografia:
Jornalista, publiquei os seguintes livros: Os Troféus (contos), Capricha na Pontaria, Campeão! (romance) e Vestígios de Vida (contos).

Este texto é administrado por: João Athayde Paula
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