Pouco à vontade, endireitou o nó da gravata, e, estático, olhou em volta. Sentia-se um perfeito estranho, naquele ambiente cheio de rostos conhecidos. Um raio de sol, hesitante e retilíneo, abria uma fresta luminosa no ambiente cinzento
Frustrado pela própria inação, pegou a mão da mulher e a segurou com firmeza; um gesto automático. Indiferente, deixou que alguns, vários, incontáveis minutos transcorressem. Desde os tempos do namoro às escondidas, aquele simples ato possuía uma gama interminável de significados. Com o tempo, haviam conseguido desenvolver uma série de códigos, apenas por eles decifráveis, a partir de sutis variações na intensidade ou duração do toque. Muitas vezes, nem era preciso falar. Falar para quê? Brigas, reconciliações, declarações de amor, reprimendas, intimações ao silêncio eram expressos assim, sem o uso de palavra alguma. Desde o toque neutro do caminhar pensativo na rua até o convite ao amor, nada havia que não pudesse ser traduzido através de uma intensidade diferente da compressão. Quantas variações possíveis! O habitual segurar sem força, a transmitir paz, comunicando a presença solidária, o aperto rápido para evitar uma gafe iminente, a seqüência alternando apertos fortes e fracos para dizer: Quero agora, e o resto do mundo que se dane!...
Tudo começara num baile carnavalesco, décadas atrás. Ao convite de sair por uns instantes do salão e fugir dos olhares vigilantes da “vela”— o irmão maior, bem mais velho e chateado por ter de ficar vigiando, aos 16 anos, a irmã três anos mais nova, no meio daquele monte de pirralhos — ela respondera com uma risada, encantadora risada pré-adolescente e um beliscão no braço. Não poderia existir um “sim” mais explícito. A lembrança da mão gelada naquela tarde abafadiça de fevereiro, ou teria sido março, nunca o abandonara. Naquele momento, marcado definitivamente na memória, saboreou o triunfo maior à sua maneira: Sentiu frio, calor, um filete gelado de suor escorrendo nas costas e o batimento acelerado de um coração em pleno aprendizado do que significava amar. Queria que o momento se eternizasse – tanta felicidade não poderia ter fim — desde que a ninguém fosse dado entender o motivo de tamanha alegria. Segurar a mão de uma menina, mesmo no meio da algazarra própria de um evento momesco era, para aquela época, uma façanha digna de registro e, ao mesmo tempo, algo a ser guardado como segredo de Estado, se bem que muitos amigos da classe costumavam se gabar por conta de feitos bem mais gloriosos, mesmo se de impossível comprovação. Sempre as mesmas conversas, contando vantagens, para, em seguida, mudar logo de assunto, receosos de não poderem defender suas versões fantasiosas. Ele era diferente. E ela... ela era... ela era... tão... Impossível definir.
“Mais de mil palhaços no salããão”... Ninguém notara no meio de tantos confetes e serpentinas a saída deles. Pelo menos, o implacável protetor fora ludibriado. Naquele instante, jurou ser o destemido guardião do arcano e que se preciso fosse, negaria, mesmo se torturado — imaginou até a quais torturas poderia resistir — o atrevimento de ambos. Nem ao melhor amigo, o ruivo Gustavo, poderia confidenciar. Seria alvo de impiedosa gozação, objeto de chacota no recreio. Outros tempos... nem melhores, nem piores, apenas diferentes. Quando, ainda descrente da felicidade que se abatia sobre ele, apoderou-se entre apavorado e autoritário daquela mão, não pôde deixar de estranhar, e em voz alta comentou:
— Mas como está fria sua mão.
— Che gelida manina, é?
— O quê? — Ela explicou tratar-se de uma ária famosa da ópera La Bohême. Ele nunca ouvira falar na tal La Bohême e, logo sentiu que enrubescia, enquanto ao som de um ensurdecedor “Mamãe eu quero” recebeu a explicação. Sentiu-se ignorante, infeliz, ridículo. Fazer feio assim, na primeira oportunidade foi um choque, logo dissipado pela pressão afetuosa — não estava sonhando — das mãozinhas geladas, que, mais tarde, se transformariam no mais doce par de algemas que pudesse imaginar.
O feitiço daquele contacto desafiou os anos. Caminhar de mãos dadas, mesmo tendo virado um hábito, bem depois de significar quase um ato de rebeldia num passado já brumoso, renovava o sentimento de plenitude, melhor que qualquer frase de efeito. Era um presente — e existe algo mais maravilhoso do que poder presentear o ser amado? — testemunho de uma paixão que se perpetuava através desse ato singelo. A felicidade assim adquirida não se devia à conquista de algo que porventura lhes faltasse em algum momento e sim, a tudo que encontravam na suprema banalidade de um gesto tantas vezes repetido. Fora tão fácil sentir a ventura de atravessar a vida sem experimentar a necessidade de questionamentos estéreis ao se assenhorearem naturalmente daquilo que para tantos é motivo de infrutíferas buscas. Que indescritível sensação a de deter o segredo do milagre maior!
Nos momentos felizes, aquele aperto selava a sensação de júbilo, assim como nos momentos difíceis era o refúgio seguro para livrarem-se da angústia.
Sentiu um esbarrão. O faltoso murmurou algumas palavras de desculpa e se afastou. O que estavam fazendo à sua volta aquelas pessoas?
Sem abandonar a mão dela, perscrutou o ambiente. Melhor seria saírem de lá o quanto antes.
Uma voz tirou-o do torpor:
Com licença, doutor, precisamos fechar o caixão.
Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` (Ed. Totalidade), ´Bucareste` e ´Plataforma G` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br
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