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ÁGUAS MORTAS
Ruy Câmara

Resumo:
O texto em defesa da transposição das águas do Rio São Francisco para o Ceará foi-me solicita-do, à guisa de pós-fácio, para o livro Água dos trópicos, Editora Bagaço, organiza-do por Beatriz Alcântara e Lourdes Sarmento e lançado na Bienal Internacional do Livro de Fortaleza em 2000.

ÁGUAS MORTAS

                                   Ruy Câmara

Que seja o destino das águas quebrar a mo-notonia dos mares, sejam antes desviadas para deixar fertilidade e vida por onde passam.

Só agora, livre dos murmúrios que me perseguiam a eito, posso sentir o quanto é difícil cruzar a barreira da ficção enquanto a reflexão teórica amea-ça danificar as imagens que se projetam adiante. Nenhuma imagem fala por si mesma. O rio morto é obra da minha paciência, hipérbole de miséria e a tumba sórdida dos esquecidos. Desceu inteiro, solitário, tristonho. Como foi ingênuo e ao mesmo tempo magnífico, levando peixes para o mar de peixes, até o fim da devoração. Já não chora enquanto escorre-se como uma lágri-ma ressequida sobre o cascalho do meu rosto. Já não urra mais em sonhos, nem sente a aflição do último veio que se esgota no curso do próprio silên-cio. Deste veio restará apenas uma taça quase vazia, a cicuta de quem aí irá beber na sequidão do vale, até a hora do cortejo que vejo deixando a aldeia, parte do ofício da providência que não providencia.
Nesses séculos dilemáticos, quem ousou adivinhar o que caiu do alto, sentiu-se tão acuado entre o chão rachado e aquela imensa espessura vazia, quanto acuado continua o grande rio morto. Se abrisse os olhos para esprei-tar o que está ocorrendo dentro de si mesmo, veria no brilho apavorante que fratura com veios avermelhados o azul dos céus, que nunca é tarde para bendizer a vida ou o que está sendo refeito em seu benefício.
A última campina já se foi, deu-se inteira a comer. Resta o lodo, que é o fim das águas, a solidão do homem que foge do gosto salobro de uma tarde devorada pela fome. No horizonte sem fim, aberto no desabraço das próprias asas, um pássaro perdido não sabe como se esconder no ar azul. Parece um pendulo-negro à procura de um abrigo, ou do desabrigo que o mantém inde-ciso entre continuar ali pairado ou flanando baixo até cair no solo firme. Po-der emudecer ante o que vai sumindo é quase uma virtude. Flutuando sobre o cascalho, sepulcro das águas paralíticas, tudo que aí jaz parece se aco-modar tão lentamente, quanto as palavras impuras contidas na muda história dessa gente. É ingenuidade pensar que não estamos a adulterá-la. Estamos sim, com palavras e interconectividade. Mesmo que se bastem, essas ima-gens precisam ser tocadas pelos vastos sentidos. Assim se acomodam e se convertem em palavras sentidas. Mas o tempo vai passando, as águas tam-bém, protelando o que na última hora será dito. Desse veio restarão umas poucas palavras poéticas, palavras cheias de perturbadoras imagens, tanto e quanto um entressonho meu, que vai se materializando devagar, devagar, até que um sonho novo venha substituir o velho. Tudo sofre os efeitos da substituição calculada, tudo, inclusive a alacridade do meu riso. Há poucos instantes e agora novamente indagando-me sobre isto, com a maior sereni-dade possível, chego à legítima conclusão de que, o caminho adiante não tem atalhos, e a metáfora do sonho pode ser a foz ou o abismo. Pelo abismo passarão só as imagens. Sem palavras todos os olhos são mudos e as no-vas águas não se aperceberão na próxima travessia.
Onde puseram as palavras proféticas dos Gênios caluniados? O gênio não se expressa pelo olhar. Que o diga Borges. As imagens ocas morrem cedo porque não se comportam bem no contexto. Mas não nos convém per-der de vista o que vai fluindo no caminho dessas águas tão escassas, nem é oportuno reivindicar o retorno ao passado. Sabemos nós que a natureza nem sempre reabilita sistemas extintos. Aqui caberia dizer algo menos restritivo. Para quem das águas retira o sustento, os leitos são caminhos naturais, tra-çados pelo empreiteiro de todas as obras. Para quem aí navega sobre toras milenares, são os leitos que potencializam as riquezas nacionais. Para quem precisa desviá-los para gerar estoques de signos monetizados, todos os rios deveriam ser comunicantes com o Jordão. Se este é um geral desejo, os lei-tos mortos serão meras palavras e tão restritos quanto certos conceitos uni-versais. O tempo que espere e só nos resta continuar o percurso.
Mas ao invés de reprimido entre as margens estreitas de um rio paralíti-co, desatento à amplitude infindável da própria subjetividade e apesar do murmúrio que revela numa curta pausa as sombras mortas do invisível, e por toda parte há quem diga que sou uma porção dessa invisibilidade espacial, e ao mesmo tempo, parte substancial do vazio temporal que me comporta, me-lhor é fazer um passeio a pé pelos campos contíguos ao leito do Sono, onde poderei admirar um estranho e muito belo contraste, de um lado, o ocre ene-grecido do barro petrificado em robustas colinas, e do outro, o esplendor da soagem, de cuja aparência, como é natural nessa época do ano, tinge as vastas superfícies do sertão com um colorido inimitável.
Mas com o passar das águas e dos homens tudo vai ficando banal, re-petitivo e um obstáculo intransponível continuará a ser tão avassalador, quanto a fúria vingativa das catástrofes gigantescas. É melhor seguirmos a marcha global e a ordem vigente. Estamos muito mais interessados nos sig-nos do que nos enunciados. Contudo, não me apraz repetir aqui o trotar ba-rulhento dos idealistas e naturalistas. Em tudo há incoerência, tanto que, os mais exaltados até já insinuam o extermínio humano para o bem da nature-za.
E aqui novamente, olhando para essas nuvens ágeis, fingidoras, sinto que é hora de fazer um balanço de consciência, antes que esta medíocre re-flexão se misture às palavras vãs da lei impura, que como as toras milena-res, também apodrecerá nas próximas correntezas. Mas como posso ser co-erente com o meu discurso, sendo ao mesmo tempo algoz e vitima da natu-reza, usuário das benesses do meu tempo, e impávido como o sol outonal que despenca sobre os telhados de papelão e vai se deitar à alcova e quei-mar a alma de quem aí estiver, ou frio e insensível como os cavaleiros an-dantes que iniciaram a longa marcha pela universalidade do poder e da cruz? A marcha crucífera continua, tão firme quanto a vida frágil de quem to-dos os dias repete os mesmos trajetos para suster-se. Parece ser esse o destino dos rios e dos homens. Mas para que tanta pressa, se ninguém nos espera em lugar algum? O mundo é grande, o Céu é maior.
_____________

Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de Outono, o romance da vida de Lautréamont, Ed. Record, fi-nalista do Prêmio Jabuti 2004 e Vencedor do Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira de Letras.

                     Site Oficial do Autor: www.ruycamara.com.br


O texto em defesa da transposição das águas do Rio São Francisco foi-me solicita-do, à guisa de pós-fácio, para o livro Água dos trópicos, Editora Bagaço, organiza-do por Beatriz Alcântara e Lourdes Sarmento e lançado na Bienal Internacional do Livro de Fortaleza em 2000.


Biografia:
O poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo brasileiro Ruy Câmara nasceu em 15/04/1954, em Recife e viveu a infância em Messejana, subúrbio de Fortaleza - Ce, onde leu pela primeira vez Dante, Cervantes, Edgar Poe, Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar, o pai do romance brasileiro, nascido em Messejana. Formado em Tecnologia Mecânica pela ETFC, cursou Engenharia Operacional e Engenharia Mecânica na Universidade de Fortaleza, estudou Filosofia como auto-didata, bacharelou-se em Sociologia e especializou-se em Dramaturgia Clássica para teatro, cinema e televisão no Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura. Antes de entreger-se à literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios, desde aprendiz de serralhero, operador de máquinas operatrizes, instrutor mecânico, técnico em lubrificação de navios, locomotivas e máquinas de terraplenagem, até caixeiro-viajante, representante comercial, agente exportador na América do Sul, Central e Caribe, diretor comercial de empresas multinacionais e empresário. Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara de sua carreira empresarial para se dedicar exclusivamente ao ofício literário. "Adqueri a paciência e aprendi o ofício de lapidar as palavras, polindo metais duros nas oficinas de minha juventude". Após 11 anos de escrituras, sempre em convivência com autores e obras, Ruy Câmara ingressou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o romance da vida de Lautréamont - Editora Record - obra que teve o seu lançamento nacional em julho de 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Aplaudido pela crítica e pela imprensa espercializada, em 2004 Ruy Câmara é finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e vencedor do Prêmio de Ficção 2004, concedido pela Academia Brasileira de Letras, na categoria - melhor Romance de 2004. Em 2006 Cantos de Outono teve seus direitos vendidos para os seguintes países: Romenia, Serbia & Montenegro, Espanha, Mexico, Cuba, Belize, Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicaragua, Costa Rica, Panama, Puerto Rico (USA), Estado da Flórida (USA), República Dominicana, Venezuela, Colombia, Equador, Peru, Bolivia, Chile, Paraguay, Uruguay e Argentina. TRADUTORES de Cantos de outono Inglês (USA): Dr. John B. Jensen - Ph.D. Harvard University end florida university - Linguistics and Portuguese, Conference Interpreter , ATA-Accredited Translator. Francês: Dr. Marie-Hélène Paret, docente e Mineur en Langue portugaise (Sorbonne -Bordeaux) e tradutora de autores lusófonos. Espanhol: Dr.Basílio Losada, primer catedràtic de Filologia Gallega i Portuguesa a la Universitat de Barcelona y California-Illinois, és autor de nombrosos estudis crítics sobre la literatura gallega, portuguesa i brasilera. Ha traduït 150 llibres en set llengües d'autors com Jorge Amado, Saramago, Rosalía de Castro, Pere Gimferrer… Entre els guardons que ha rebut hi ha el Premi Nacional de Traducció, la Creu de Sant Jordi, la Comenda da Ordem do Infante Dom Henrique, que atorga el govern portuguès, l'Ordem do Cruzeiro do Sul, de Brasil, i la Medalla Castelao de la Xunta de Galicia. Continua impartint classes en els programes a la UB de diverses universitats nordamericanes. Alemão: Dr. Rainer Domschke, docente da Universidade de Mainz - Center of Communication and Language, tradutor do Instituto Martius-Staden, do 'Atlas Regionaler Literaturen Brasiliens' e diversos obras para (Deutsch, Portugiesisch, Spanisch, Französisch). Italiano: Patrizia di Malta, tradutora de Borges, Cortazar, Bioy Casares, Kafka, Bukowsky, Daniel Galera, Luiz Ruffato, Clarice Lispector e outros. Romeno: Dr. Iulia Baran, Departamento Português de Rádio da Romênia Internacional, da Societatii Romane de Radiodifuziune si Societatii Romane de Televiziune, preşedintele Confederaţiei Naţionale Sindicale Meridiantra, tradutora de impostantes obras como: a ópera de Mihai Eminescu, Cortazar, Arnaldo Niskier, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto e outros. AGENTES E EDITORES INTERNACIONAIS de Cantos de Outono 1. Editora Record (Brasil) 2. International Editors' Co. Provenza, 276, 1r 08008 Barcelona (Spain) 3. Grupul Editorial RAO, Str. Turda, Nr. 117-119, Bl. 6, parter - Bucuresti, 78219, 4. PRAVA I PREVODI Literary Agency, Yu-Business Center - Blvd. Mihaila Pupina 10B/I, 5th Floor, Suite 4 - 11070 Belgrade, Serbia & Montenegro. 5. BELACQVA, Grupo Editorial NORMA de América Latina- Ronda de Sant Pere, 5-4º-2ª - 08010 Barcelona - Spain
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