Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
A TRÍADE DO INFERNO
Ruy Câmara

Resumo:
Três personagens em luta pela sobrevivência


                                 A TRÍADE DO INFERNO

                                                                     Ruy Câmara

O Conto “A Tríade do Inferno” é o resultado de um Problema de Dramaturgia proposto por Gabriel García Márquez.

        A SITUAÇÃO DRAMÁTICA NÃO PODE SER MODIFICADA

1- O personagem “A”, está sozinho, solitário, em situação crítica, no limite de suas forças e necessita urgentemente se livrar de um grave problema, mas não tem ninguém confiável por perto.

2- O personagem “B” precisa contar com a ajuda e a compreensão de “C” para solucionar um conflito pendente entre ambos.

3- “A” não conhece “B” nem “C”, e os três se encontram num lugar hostil e perigoso.

4- Para “C” a presença de “A” é oportuna e pode resolver um problema insolucionável, desde que “B” colabore.

5- No conflito de “A”, há um fator envergonhador.

6- “B” não pode fugir da situação em que se encontra, pois tem que esperar por “C”.

                          Personagens Criados por Ruy Câmara:

                                           “A” - Lagarto   
                                           “B” - Cão.
                                           “C” - Menino.            


Meio dia. A luz intensa irrompe um escampado de nuvens brancas e penetra por entre os galhos do cedro sem folhas. A sombra se move de um lugar ao outro, açoitada pelo vento escaldante. Pisando nela, quatro patas raquíticas, obedientes a um par de olhos famintos que traquinam sem convicção, como se mirassem ali algo que supostamente existe, mas que não se pode ver ou pegar. Nessas horas terríveis, até mesmo uma sombra parece ter vida para quem mal consegue distinguir o real do imaginário, tanto que insiste em abocanhá-la em vão. Nesse cenário de miséria e delírio tudo que se move existe e se existe ou é alimento ou ameaça. Uma decisão quase negada, talvez a última, diz de si para si mesma: onde se vê o rastro por aí passou o bicho. Da sombra saem dois vultos escalavrados, um Menino tísico, cabeção e asmático, seguindo um Cão esquálido e rabugento, cor de raposa. Os dois tomam um rumo qualquer. Tudo é caatinga. Prosseguem sem esperanças. No íntimo pressentem que um êxito qualquer exterminará tudo de uma vez por todas. Do modo como o Cão está farejando, o Menino quer adivinhar onde está a vítima, o sustento de um dia infeliz, certamente o último. Num trocar de passos o Cão fica estático e atento. Contrai-se sobre o esqueleto quase visível e pára. Rastros de um vivente exausto de fuga continua ali, grudado à terra rachada. A aproximação inoportuna do Menino é reprovada pelo Cão, que continua farejando no rastro do que supõe ser uma solução ou o caos. “Se ele acertar a pedrada eu morrerei de fome”, raciocina o quadrúpede com egoísmo. Temendo desperdiçar a chance o Menino abaixa-se, apanha uma pedra, ergue-se devagar e prepara o arremesso. O Cão levanta as orelhas, o rabo, fareja o ar como quem respira indícios de sobrevivência. O silêncio agônico do momento imobiliza os parceiros. Segundos de espera. Súbito, um chiado sobre folhas secas denuncia-se. O vivente agora é reconhecido pelo mais desprezível e envergonhador meio de existência: rastejar de fome sobre o próprio ventre e às escondidas. O Menino alegra-se com a possibilidade. O Cão nem tanto, pois sabe por experiência vivida que aquela caça não será repartida segundo o merecimento pelo esforço de cada um, muito menos segundo a lógica: de cada um conforme a capacidade e a cada um segundo a necessidade. Contudo, espreita o momento certo para o ataque. Desesperados e famintos como estão os parceiros, nesse momento já ultrapassaram a condição de aliados e logo, logo se tornarão inimigos. O Lagarto pressente que tem agora um só destino: escapar da ameaça. O farejador apronta-se numa posição estática sobre três patas. O Menino avança e pára no preciso instante em que seu pé de apóio esmaga um graveto teso de sequidão. Nesses instantes tensos o simples estalar de um graveto pode ser uma catástrofe. Num esforço extenuado o Menino alonga-se por cima do arbusto e arremessa a pedra no local suspeito. Em disparada fuga vai o Lagarto e na perseguição o vira-lata perde-se de vista. Seus latidos ecoam no espaço. “Acua, acua”, grita o Menino, já em marcha corrida na direção do comparsa. No desespero salvífico o Lagarto entoca-se num buraco, entre um pedregulho e um formigueiro, e aí se mantém quieto como se tivesse plena consciência de que sua vida está numa situação crítica. Os latidos do Cão aumentam o desespero de quem passou de caçador esfomeado e solitário à caça. “Pega, pega”, grita o Menino, atiçando o Cão, que no íntimo desconfia do seu proveito. Diante da toca, os dois se olham com se quisessem dizer um para o outro que o êxito vai depender do esforço conjunto ou de muita espera. Mas a fome não pode esperar, como bem o sabem. O Menino expectora os brônquios e escarra. Em seguida corta uma vara comprida de marmeleiro e começa a estocar. O Cão permanece numa inquietação feroz, mostrando os caninos ao buraco. Lambe em seco o focinho goela adentro e torna a ladrar. Da toca sai um cheiro de banquete ameaçado. Acuado, o Lagarto respira fundo na esperança de empreender uma nova fuga. Deve estar ciente de que desta vez não sobreviverá inteiro. Agora que se acomodou na toca, ocorreu de ter uma idéia: seu rabo tornará a crescer se conseguir cortá-lo. Mas precisa ser rápido para ludibriar o olhar e o faro obscuro da fera. Num ato de superação instintiva o Lagarto desvia-se de mais uma estocada, ergue-se por cima do dorso, alcança a cauda e com a dentição afiada, corta-lhe um pedaço para saciar a gana do inimigo no momento da fuga iminente. Cansado pelo esforço hercúleo e esvaindo-se em sangue, ainda supõe ser possível saciar o desejo voraz do inimigo para desaparecer na imensidão da caatinga. Só o instinto de sobrevivência é capaz de ignorar que a vida real, em tais condições, é uma utopia impossível, indigna da mais medíocre lógica. O Lagarto reúne o que lhe resta de forças e, de repente, fura o bloqueio. Um chiado corre em desesperada fuga e desaparece na caatinga, deixando nas presas do esganado boa parte da sua cauda. Duas bocadas e pronto. Em segundos a catástrofe planejada fora devorada sem remorsos. O Menino olha para seu companheiro com desprezo e ódio. Está completamente desnorteado e sem esperança. O Cão permanece quieto, desconfiado, com o rabo entre as pernas, em posição de medo. Por certo ainda lembra que na semana anterior não tivera direito sequer ao esqueleto da última vítima. A ossada torrada e pilada fora misturada à farinha de mucunã e comida pelo Menino. Numa toca segura o Lagarto contorce-se na dor secreta, desejando a desgraça ruir sobre os inimigos. Apesar das dores e do cansaço ele consegue ouvir os passos que seguem noutra direção e começa a lamber a ferida com o orgulho máximo de quem se presume sobrevivente de uma catástrofe. No pedregulho de um rio seco o Menino começa a delirar sob o firmamento aberto, de onde vem um brilho escaldante. A sede aumenta. Mirando uma sombra lá adiante, ele jura se vingar do parceiro, que parece adivinhar tais pensamentos e se deita ao lado, fingindo arrependimento. O Menino olha, mas seu olhar não é correspondido pelo Cão, que rasteja e aproxima-se sorrateiramente como se quisesse lhe dizer que a dor e fome nas plagas sertanejas são irmãs gêmeas, como trigêmeos são o egoísmo, o amor e o ódio. As horas vão passando devagar e o espetáculo sinistro parece ser o prenúncio de uma grande tragédia, uma tragédia sem culpados e sem testemunhas. Num gesto abrupto o Menino sangra o Cão e bebe-lhe o sangue. Em seguida come-lhe a carne e afasta-se devagar da cena de sacrifício. O calor aumenta, vêm os engulhos, os delírios, e um tombo é ouvido na caatinga. Já é quase noite quando o Lagarto aproxima-se triunfante, lambendo o espetáculo mórbido. Parece adivinhar que nesse cenário trágico é custoso admitir que a morte é um caos sem providência divina e que a seca no Nordeste do Brasil é só um problema de irracionalidade soberana.   

     _____________
     Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de Outono, o romance da vida de Lautréamont, Ed. Record, finalista do Prêmio Jabuti 2004 e Vencedor do Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira de Letras.

Site Oficial do Autor: www.ruycamara.com.br



                                                                                  


Biografia:
O poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo brasileiro Ruy Câmara nasceu em 15/04/1954, em Recife e viveu a infância em Messejana, subúrbio de Fortaleza - Ce, onde leu pela primeira vez Dante, Cervantes, Edgar Poe, Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar, o pai do romance brasileiro, nascido em Messejana. Formado em Tecnologia Mecânica pela ETFC, cursou Engenharia Operacional e Engenharia Mecânica na Universidade de Fortaleza, estudou Filosofia como auto-didata, bacharelou-se em Sociologia e especializou-se em Dramaturgia Clássica para teatro, cinema e televisão no Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura. Antes de entreger-se à literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios, desde aprendiz de serralhero, operador de máquinas operatrizes, instrutor mecânico, técnico em lubrificação de navios, locomotivas e máquinas de terraplenagem, até caixeiro-viajante, representante comercial, agente exportador na América do Sul, Central e Caribe, diretor comercial de empresas multinacionais e empresário. Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara de sua carreira empresarial para se dedicar exclusivamente ao ofício literário. "Adqueri a paciência e aprendi o ofício de lapidar as palavras, polindo metais duros nas oficinas de minha juventude". Após 11 anos de escrituras, sempre em convivência com autores e obras, Ruy Câmara ingressou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o romance da vida de Lautréamont - Editora Record - obra que teve o seu lançamento nacional em julho de 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Aplaudido pela crítica e pela imprensa espercializada, em 2004 Ruy Câmara é finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e vencedor do Prêmio de Ficção 2004, concedido pela Academia Brasileira de Letras, na categoria - melhor Romance de 2004. Em 2006 Cantos de Outono teve seus direitos vendidos para os seguintes países: Romenia, Serbia & Montenegro, Espanha, Mexico, Cuba, Belize, Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicaragua, Costa Rica, Panama, Puerto Rico (USA), Estado da Flórida (USA), República Dominicana, Venezuela, Colombia, Equador, Peru, Bolivia, Chile, Paraguay, Uruguay e Argentina. TRADUTORES de Cantos de outono Inglês (USA): Dr. John B. Jensen - Ph.D. Harvard University end florida university - Linguistics and Portuguese, Conference Interpreter , ATA-Accredited Translator. Francês: Dr. Marie-Hélène Paret, docente e Mineur en Langue portugaise (Sorbonne -Bordeaux) e tradutora de autores lusófonos. Espanhol: Dr.Basílio Losada, primer catedràtic de Filologia Gallega i Portuguesa a la Universitat de Barcelona y California-Illinois, és autor de nombrosos estudis crítics sobre la literatura gallega, portuguesa i brasilera. Ha traduït 150 llibres en set llengües d'autors com Jorge Amado, Saramago, Rosalía de Castro, Pere Gimferrer… Entre els guardons que ha rebut hi ha el Premi Nacional de Traducció, la Creu de Sant Jordi, la Comenda da Ordem do Infante Dom Henrique, que atorga el govern portuguès, l'Ordem do Cruzeiro do Sul, de Brasil, i la Medalla Castelao de la Xunta de Galicia. Continua impartint classes en els programes a la UB de diverses universitats nordamericanes. Alemão: Dr. Rainer Domschke, docente da Universidade de Mainz - Center of Communication and Language, tradutor do Instituto Martius-Staden, do 'Atlas Regionaler Literaturen Brasiliens' e diversos obras para (Deutsch, Portugiesisch, Spanisch, Französisch). Italiano: Patrizia di Malta, tradutora de Borges, Cortazar, Bioy Casares, Kafka, Bukowsky, Daniel Galera, Luiz Ruffato, Clarice Lispector e outros. Romeno: Dr. Iulia Baran, Departamento Português de Rádio da Romênia Internacional, da Societatii Romane de Radiodifuziune si Societatii Romane de Televiziune, preşedintele Confederaţiei Naţionale Sindicale Meridiantra, tradutora de impostantes obras como: a ópera de Mihai Eminescu, Cortazar, Arnaldo Niskier, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto e outros. AGENTES E EDITORES INTERNACIONAIS de Cantos de Outono 1. Editora Record (Brasil) 2. International Editors' Co. Provenza, 276, 1r 08008 Barcelona (Spain) 3. Grupul Editorial RAO, Str. Turda, Nr. 117-119, Bl. 6, parter - Bucuresti, 78219, 4. PRAVA I PREVODI Literary Agency, Yu-Business Center - Blvd. Mihaila Pupina 10B/I, 5th Floor, Suite 4 - 11070 Belgrade, Serbia & Montenegro. 5. BELACQVA, Grupo Editorial NORMA de América Latina- Ronda de Sant Pere, 5-4º-2ª - 08010 Barcelona - Spain
Número de vezes que este texto foi lido: 52815


Outros títulos do mesmo autor

Crônicas ÁGUAS MORTAS Ruy Câmara
Contos A TRÍADE DO INFERNO Ruy Câmara


Publicações de número 1 até 2 de um total de 2.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
JASMIM - evandro baptista de araujo 69000 Visitas
ANOITECIMENTOS - Edmir Carvalho 57911 Visitas
Contraportada de la novela Obscuro sueño de Jesús - udonge 56750 Visitas
Camden: O Avivamento Que Mudou O Movimento Evangélico - Eliel dos santos silva 55824 Visitas
URBE - Darwin Ferraretto 55080 Visitas
Entrevista com Larissa Gomes – autora de Cidadolls - Caliel Alves dos Santos 55027 Visitas
Caçando demónios por aí - Caliel Alves dos Santos 54895 Visitas
Sobrenatural: A Vida de William Branham - Owen Jorgensen 54878 Visitas
ENCONTRO DE ALMAS GENTIS - Eliana da Silva 54790 Visitas
Coisas - Rogério Freitas 54756 Visitas

Páginas: Próxima Última