Já cinquentona, tinha uma doce mania: colecionar caixinhas. Não era uma coleção qualquer. Eram estantes e mais estantes repletas de objetos díspares, de todas as formas e tamanhos, uma verdadeira caixaria num quarto escolhido para refúgio, sem, contudo, chegar a merecer o rótulo de centro de meditação. Latinhas vistosas, compartilhavam democraticamente o espaço com caixas de papelão de algumas confeitarias, cujas portas haviam se fechado décadas atrás. Objetos redondos, cúbicos, paralelepipédicos, enfim um mundo de pequenas inutilidades de valor inestimável, como tudo que de inútil carregamos ao longo da vida.
Quando foi preciso colocar uma estante adicional no meio do cômodo, todos começaram, como se houvesse uma prévia combinação, a caçoar impiedosamente.
Tudo bem que a filha mais velha casara, mas será que não haveria maneira mais inteligente de aproveitar o espaço? Um home theater iria tão bem.
Indiferente aos gracejos, encontrava num sorriso zombeteiro a melhor resposta para os bem-intencionados críticos. No pequeno refúgio havia apenas uma poltrona confortável de espaldar amigo e braços acolhedores. Conseguia passar momentos encantados com aqueles objetos inanimados, que pareciam ganhar vida em sua companhia. Não era uma rematada maluquice. Dotada de memória privilegiada, ela conseguia lembrar-se perfeitamente da história de cada um dos troféus. Aquela azul com detalhes marchetados, a caixa de música da qual ainda jorravam as notas da Kleine Nachtmusik, presente de um aluno, aquela outra chegara a conter misteriosas, porém eficientes, pastilhas contra rouquidão. Decerto era menos vistosa que a caixinha de chocolates vienenses, mas seguramente mais engraçada que aquela outra de madeira esculpida comprada durante aquelas férias de verão em Gramado.
Naquela tarde, a bola da vez foi uma caixa algo gasta na qual um dia estivera uma boneca tirolesa, uma miniatura. A bonequinha já se fora, a caixa, não. Observava com atenção as bordas marcadas pelo tempo. Nem reparou na mancha lateral, resultado de um tombo numa poça de óleo na oficina do pai. Estava ouvindo a música interior das lembranças. Abriu a caixa e, de súbito, o mundo passou a girar. Estava de volta no quarto de menina conversando com as amigas, embalando a boneca preferida Malu. Saia azul curtinha, meias soquete, blusa branca: o uniforme do Colégio Rio Branco. Aquele bando alegre e ruidoso mergulhado na deliciosa atmosfera da infância. Em breve chegaria o bolo de passas e as iguarias do lanche que a velha Isabel iria trazer. Mas por qual motivo Cláudia estava tentando arrancar-lhe a boneca?....Cláudia sempre tão amiga e de mais a mais a boneca fora presente dela mesma, Cláudia. E, por que, de repente o quarto tornou-se escuro... o que significaria aquilo? Onde estariam as amigas? Cláudia, puxando a boneca, soltando uma gargalhada... Aquela dor indescritível... Como aquela risada feria os ouvidos! Tanto quanto, anos depois, o sorriso que Cláudia lhe dirigira do altar, ao casar com o ex-namorado da menina das caixinhas. Mas a boneca ela não conseguira levar. Muito menos, a caixa de bordas gastas.
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Biografia: Alexandru Solomon nasceu em Bucareste (1943), mas vive no Brasil desde os 17 anos. Ao lado de uma sólida carreira empresarial, de uns tempos para cá passou a se dedicar a uma nova paixão: a literatura. Através da sua escrita nunca deixa o leitor indiferente.
Autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus`, ´Bucareste`, ´Plataforma G` e ´A luta continua`, além de colecionar vários prêmios nacionais e internacionais por sua escrita.
http://blogdoalexandrusolomon.blog.terra.com.br
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