Já é dia, poucas nuvens e parado está o ar.
Uma rua empoeirada já parou de respirar.
Frente ao bar, um gato preto espreguiça-se discreto.
O faz como qualquer gato faz em busca de afeto.
Delicado, arqueia as costas, vai curtindo seu astral.
Com os olhos acompanha a distância um pardal
Que saltita indiferente, sem perder de vista o gato,
Pois, se bobear, bem sabe, que irá pagar o pato.
Frente ao bar, uma casinha bem antiga. Seu jardim
Tenta inundar a rua com perfume de jasmim.
Mas aquele ar parado, entre a rua e a praça,
Não deixou que se espalhe esse cheiro de fumaça.
De repente, o silêncio se dissipa sem aviso.
Um rumor se avizinha e o faz de improviso.
A cidade adormecida se transforma num tambor,
Uma nuvem de poeira antecede o rumor.
O ruído se insinua, lá da praça da Matriz.
Uma turba enfurecida já contorna o chafariz.
E, à frente, apavorado, espumando, acuado,
Corre um boi; vem ofegante, com olhar esbugalhado.
Perseguido, vai mugindo, é o seu grito de dor.
Perseguido, desde o pasto, já faz horas sofredor.
Perseguido pela chusma de crianças e marmanjos.
Perseguido, vai fugindo desse bando de “arcanjos”.
Multidão ensandecida, um São Jorge em cada um
De um boi dragão fizeram, não houve esforço algum.
Pensam afirmar grandeza destruindo um animal.
Dane-se o sofrimento, todos sofrem, é normal.
Escolhido pra brinquedo, o sol nunca mais verá.
E ninguém fez a pergunta, pois ninguém responderá.
É uma vida ou apenas carne, casco, chifre, couro?
Massacrado foi na praça transformada em matadouro.
Apedrejam-no aos gritos. Fraquejando, ele cai,
Se debate, das feridas o seu sangue se esvai.
É um bicho. Que importa se sofrer, não há quem chore.
Essa rude covardia tem um rótulo: folclore.
Reafirma-se o domínio de uma raça superior
Condenada a ser imune para sempre ao amor.
O lugar já não fervilha e voltou a ser pacato.
Lá, em frente à padaria, espreguiça-se um gato...
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Biografia: Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` (Ed. Totalidade), ´Bucareste` e ´Plataforma G` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br
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