O INIMIGO VAI VOLTAR!
Esta frase grifada em vermelho na parede enegrecida da repartição às vezes instigava a imaginação de Júlio. Em meio ao bate-bate das máquinas de escrever, que não paravam nunca, Júlio às vezes raciocinava... “O Inimigo vai voltar...” O inimigo vai voltar? Mas... o inimigo já andou entre nós? Como assim vai voltar? Afinal, quem é o inimigo? Esses devaneios lhe causavam vergonha, pois sempre os interrompia quando percebia que o som sempre sério das máquinas havia parado, e seus colegas, sentados às suas mesas, o fitavam de maneira estranha.
Olhos mortos.
A repartição era escura, quase não tinha cor [seja lá o que isso – cor - quisesse dizer], Júlio não conhecia essas coisas, apenas batia relatórios em sua velha máquina... tac tac tac tac tac tac e então uma sensação de segurança lhe acalentava a alma, era um tac tac tac tac tac tac tac em consonância com os demais, era algo harmônico , todos juntos tac tac tac...
O Inimigo vai voltar...
“Como assim? Quem é ele? Quem é ele?” Seu olhar perdido no nada... “Quem é ele?”
Pronto. Máquinas paradas. Mais uma vez o peso dos olhares sobre si.
Olhos mortos.
Desconforto total.Um colega se pôs em pé, perfilado feito um militar, e em seguida retirou-se da sala. Sem demora já estava de volta acompanhado do chefe; este botou a mão no ombro de Júlio e fez um sinal com a cabeça. Saíram. As máquinas retomaram seus ritmos monocórdios... tac tac tac tac tac tac...
Já na sala do chefe, este o inquiriu. “Afinal? O que estava havendo com ele, Júlio, sempre funcionário tão bom? Não era admissível desviar os olhos das tarefas, ou seja, dos relatórios, e perder-se em pensamentos, com o olhar solto no nada, como assim? E as tarefas? E as tarefas? Que tomasse jeito então, afinal, isso não parecia bom exemplo para os demais.“Já pode ir”
Tac tac tac tac tac tac...
Mas aquela frase na parede não lhe saía da cabeça.
Cabeça?
Cabeça?
Cabeça,
cabeça, cabeça, cabeça tac tac tac tac... Por que um inimigo? Quem poderia ser inimigo daqueles inócuos relatórios? Daquelas pessoas cabisbaixas tão ciosas de seus afazeres. Afinal, às dezoito horas – sempre, sempre - tocava a sirene e todos rumavam ordeiros para suas casas, jantavam e deitavam suas cabeças em seus travesseiros... suas cabeças? cabeças? cabeças, cabeças, tac tac tac...
Dezoito horas. Sirene.
Naquele dia Júlio não foi para casa.
Bebeu vinho
perambulou
pensou
riu
riu mais
bebeu mais vinho
caminhou
correu
pulou
sonhou
dormiu de ressaca...
Oito da manhã. Sirene.
Tac tac tac tac tac tac...
Júlio sentiu a mão do chefe em seu ombro; levantou-se e acompanhado daquele homem taciturno e mal-encarado, desapareceu pela porta. Minutos depois a senhora da limpeza entrou na repartição com balde, esfregão, e indiferença; então esfregou, esfregou, até desaparecer os dizeres da parede. Ninguém desviou os olhos dos relatórios.
Tac tac tac tac tac tac...
Júlio nunca mais foi visto.
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