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Atrás da Porta
Lucas Dames

Cefas abria uma janela do windows quando ouviu a campainha tocar. Sentiu uma rajada de adrenalina percorrer-lhe o sangue. Levantou hesitando e foi descendo os degraus como se fosse uma escada rolante que subia. Quando chegou no andar debaixo, movimentava-se descontroladamente, com mãos e pernas se adiantando aos comandos mentais. Sentiu um gosto amargo de arrependimento. Não queria abrir a porta. A campainha tocou de novo quebrando o silêncio da sala. Ele sentiu uma pontada no peito. Passou a tentar amarrar seu próprio tronco com os braços. Suava frio.
Cefas estava ali sozinho; quase nu; querendo se tele-transportar pra outro lugar. Pra não ter que passar pela porta. Não suportava mais estar ali e não conseguia abri-la. Então, passou a perceber algumas sombras lhe circundando. Ficou assustado, olhando rápido de um lado pro outro. Todos os espelhos pelos quais passava a vista emitiam um brilho sinistro. De repente as sombras foram crescendo em progressão geométrica e partiram para cima dele, que tremia de medo, se debatendo no chão, rolando desvairadamente. Pareciam querer empurrá-lo para a porta, cuja maçaneta se mexia nervosamente. A campainha ressoava com impaciência. Ele resistia. E quanto mais resistia, mais sufocava. Respirava com sofreguidão ao fazer um tremendo esforço e ecoou um barulho do fundo da garganta. Esgoelava a boca para puxar um fiapo de ar.
Com os olhos arregalados, Cefas já não via nada. Só sentia vultos devorando sua percepção. Sua mente rolava em uma cordilheira íngreme. Fechou os olhos e, num frenesi, buscou se apoiar nas ruínas de um grande amor perdido há muito tempo. Pendente numa encosta, segurou firme numa viga de lembranças enferrujadas. Conseguiu algum equilíbrio. Mas lhe veio no peito um agito inaudito. Parecia ter dentro de si um tufão. Seu corpo estava desgovernado, cheio de gestos involuntários. Soltou um grito e apertou os olhos fazendo uma força quase não humana.
Como numa cena de Indiana Jones, viu-se correndo, quase perdendo a força das pernas, sobre uma velha ponte que ia desmoronando logo após seus passos. O céu estava carregadíssimo, distribuindo raios e trovões a torto e a direito. Abaixo, rodeado por flores cinzentas, havia um lago de águas cristalinas, nas quais se agitavam, com as bocas escancaradas, alguns crocodilos enormes, que tinham a cara de uns amigos de Cefas; e seus olhos brilhavam. Então chegou ao fim da ponte, que logo caiu totalmente atrás de si. Cefas ainda titubeou na beirada e quase despencou. Quando firmou os pés em solo estável, deu um grande suspiro. Ofegava... sua boca estava muito seca. O coração parecia um motor a jato. Caiu no chão.
Por alguns instantes sentiu-se no completo vazio. Como se preso numa prisão de grades invisíveis Sentiu-se no nada. Sentiu-se nada. Sem memórias, incômodos e satisfação. Esquecera até do próprio nome. Esquecera de quem era; sem amigos, sem família, sem ninguém. Sem lembrança nenhuma. Via tudo branco; um branco que cegava. Estava submerso num silêncio abafado. Ao recobrar a total consciência, sentiu sua pele queimando, e rangia os dentes de frio. Passou a sofrer uma dor que espremia o núcleo da sua alma, como se tivesse perdido um filho, o pai ou a mãe; sendo que ambos estavam vivos e ele não tinha filhos. Chorava em rajadas de soluços deitado no chão do escritório, ora com os braços recolhidos em posição fetal ora estendidos batendo a palma das mãos no chão com força, como se quisesse fazer um barulho que desviasse a atenção do seu cérebro corroído pela solidão urbana.
Ao passar de alguns minutos, Cefas vai começando a sentir a dor ceder lugar a uma certa complacência; um estado de serenidade... quase de meditação.! Ia refletindo sobre o que acabara de lhe ocorrer. Deu um suspiro pesado de consciência encurralada ao pensar que escapara da morte e, como em todas as vezes anteriores, achou que da próxima não passava. Já chorava serenamente. Olhou pra um lado e viu, jogados no chão, próximos à porta do banheiro, uma gravata e um pé de um sapato social que ornavam seu corpo poucas horas antes.
Cefas tinha resistido com todas as suas forças e sabia disso. Sentia uma ponta de prazer por ter conseguido, mesmo que aos trancos e barrancos, escapar mais dessa; não obstante, prazer proveniente de um orgulho cansado.
A campainha parou de tocar e a maçaneta estava imóvel. Agora, ouvia toques sutis na porta, de um modo bastante curioso. Era uma batida diferente de tudo que já tinha ouvido na vida. Sorriu. Lembrou de muitos momentos passados. Riu de si mesmo. Passou na ponta da língua todos os acertos e voltas. Não tinha dúvidas de que a vida era um jogo compulsório e de regras bastante flexíveis e imperdoáveis. Localizou-se no meio do tabuleiro e sentiu-se em posição confortável. De repente levantou de vagar, encheu uma taça de gin, colocou uma musiquinha – laound -, pensou em acender um cigarro, porém recuou. Andou até uma janela de onde se podia ver parte da Baía de Guanabara; linda! mergulhada na luz da noite dela. Começou a lembrar de uns braços... da pegada do abraço... Sentia-se firme!
Mas Cefas, sem nem sentir e nem saber, escorregou e o galo cantou – o trem descarrilhou formando trilhas de miolos aguçados em magníficos bosques perfumados – e, sem nem sentir e nem doer, foi se deixando levar e acabou abrindo aquela porta...
Na manhã seguinte, deliciaram-se com seu cadáver.




Biografia:
Bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em março de 2004; advogado e servidor público. Vivo a juntar umas palavras o tempo todo quando posso minha inquietude apoquentar. Alguns textos publicados a partir de outubro de 2011 pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores - CBJE - e, a partir do início de 2012, na Escrita - Biblioteca Virtual -.
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