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Poemas do Exílio - 4 vls.
Flávio René Kothe

Resumo:
Quis o destino que o autor desses textos chegasse à adolescência quando o Brasil e tantos outros países foram dominados por ditaduras. Logo foi levado, em 1964, a responder a um inquérito policial-militar (IPM) por artigos que tinha publicado e programas de música clássica que havia feito aos 15-16 anos. Como continuou a combater a ditadura militar, embora não tenha participado, por uma simples avaliação das forças, da metamorfose do movimento estudantil em movimento de guerrilha, foi perseguido. Em 1969, recebeu de um coronel do exército, que chefiava um serviço de informações em São Paulo, a ―recomendação‖ de tratar de sair logo do país. Assim fez. Quando retornou alguns anos depois e tratou de trabalhar, enfrentou grandes dificuldades em conseguir emprego nas universidades. Por um engano de informação do stablishment, foi aceito na Universidade de Brasília, mas após algum tempo acabou sendo eliminado. Voltou a ter dificuldades em conseguir trabalho e teve de migrar para diversos lugares, países e continentes. Foi-lhe difícil organizar minimamente sua vida sem ser aniquilado intelectualmente. Os poemas aqui reunidos foram escritos durante esses anos todos de uma involuntária peregrinação. Marcam os passos dados e as estações em que parou para refletir. Os poemas são uma forma de oração privada, sem a menor pretensão de serem usados por qualquer religião. Havia uma profunda vergonha do autor em mostrar a seus algozes o quanto eles o haviam feito sofrer e quanto haviam perturbado sua vida. Além disso, ele sabia que não deviam valer como queixa pessoal e sim como um testemunho que tivesse suficiente qualidade textual para terem valor por si. Por outro lado, o sistema editorial brasileiro não se tem mostrado aberto à publicação de poesia, menos ainda quando ela não pretende ser um protesto imediato, que viva da negação do algoz. Os poemas tratam de desvelar, no entanto, a interiorização da repressão. Cumprem o paradoxo de propor uma saída na saída do país e, ao mesmo tempo, serem escritos na língua oficial do país, portanto para o país, como se fossem parte de seu sistema. São uma parcela ignorada, na sombra, na ausência, não parte da fala pública: são uma escrita que se afirma enquanto se retira, mas explica a sua retirada, meditando o seu gesto na língua de um povo que é seu e não é. Desistem de buscar uma saída interna e, ao mesmo tempo, o seu registro participa de uma exposição do problema. Eles não querem ser, contudo, o mero registro de uma época, e sim uma peregrinação, uma busca, um aprendizado, que se aproveita das condições difíceis da época para elaborar a vivência trágica, fazendo dela um rito de iniciação para um grau maior de sabedoria, que pode ser oferendado a outros.

                    Nota do Autor
   Quis o destino que o autor desses textos chegasse à adolescência quando o Brasil e tantos outros países foram dominados por ditaduras. Logo foi levado, em 1964, a responder a um inquérito policial-militar (IPM) por artigos que tinha publicado e programas de música clássica que havia feito aos 15-16 anos. Como continuou a combater a ditadura militar, embora não tenha participado, por uma simples avaliação das forças, da metamorfose do movimento estudantil em movimento de guerrilha, foi perseguido. Em 1969, recebeu de um coronel do exército, que chefiava um serviço de informações em São Paulo, a “recomendação” de tratar de sair logo do país. Assim fez. Quando retornou alguns anos depois e tratou de trabalhar, enfrentou grandes dificuldades em conseguir emprego nas universidades. Por um engano de informação do stablishment, foi aceito na Universidade de Brasília, mas após algum tempo acabou sendo eliminado. Voltou a ter dificuldades em conseguir trabalho e teve de migrar para diversos lugares, países e continentes. Foi-lhe difícil organizar minimamente sua vida sem ser aniquilado intelectualmente.
   Os poemas aqui reunidos foram escritos durante esses anos todos de uma involuntária peregrinação. Marcam os passos dados e as estações em que parou para refletir. Os poemas são uma forma de oração privada, sem a menor pretensão de serem usados por qualquer religião. Havia uma profunda vergonha do autor em mostrar a seus algozes o quanto eles o haviam feito sofrer e quanto haviam perturbado sua vida. Além disso, ele sabia que não deviam valer como queixa pessoal e sim como um testemunho que tivesse suficiente qualidade textual para terem valor por si. Por outro lado, o sistema editorial brasileiro não se tem mostrado aberto à publicação de poesia, menos ainda quando ela não pretende ser um protesto imediato, que viva da negação do algoz.
   Os poemas tratam de desvelar, no entanto, a interiorização da repressão. Cumprem o paradoxo de propor uma saída na saída do país e, ao mesmo tempo, serem escritos na língua oficial do país, portanto para o país, como se fossem parte de seu sistema. São uma parcela ignorada, na sombra, na ausência, não parte da fala pública: são uma escrita que se afirma enquanto se retira, mas explica a sua retirada, meditando o seu gesto na língua de um povo que é seu e não é. Desistem de buscar uma saída interna e, ao mesmo tempo, o seu registro participa de uma exposição do problema.
   Eles não querem ser, contudo, o mero registro de uma época, e sim uma peregrinação, uma busca, um aprendizado, que se aproveita das condições difíceis da época para elaborar a vivência trágica, fazendo dela um rito de iniciação para um grau maior de sabedoria, que pode ser oferendado a outros.





          Da palma da mão

Pureza há de brotar das mãos mais sujas
seus sulcos têm a terra e têm o adubo.
Água há de prover a divina Providência
com suor do teu rosto e muita paciência.

Por que ainda andar nas ruas dessa vila
se não para escrever algumas linhas
como se nelas tivesses possíveis vias
como se aqui te lessem como tu os lias?

Que teus olhos nos olhos possam olhar
que num espelho ainda possas te mirar:
até quando nessa terra ainda irás ficar?

Teu sonho não hás de ver nesse morro
nele não verás as sementes do outono:
da pátria espera tu apenas abandono.






















          São Paulo, 1985

São Paulo hoje não apenas parece um inferno
com o diabo se travestindo de anjo esperto
bimbando dia e noite nossa Santa Paciência
sem guardar quaresma, jejum ou abstinência.

Como se fosse carnaval e de ouro a idade
segue a alegoria pelas ruas dessa cidade
propondo pura alegria na cabeça do santo
enquanto só se vê piolho de muito espanto.

Passar adiante a noz, passar adiante a nós
vender no mercado a noz, no mercado a nós
transcrever no ar o que se passa nesse mar
contar causos de sarapantar, de espantar...

A este céu será que adianta pedir proteção
se o diabo aqui anda solto, não tem perdão?
Os santos paramentados aqui nesses altares
são agentes fardados, são soldados armados.

Pratos vazios besuntados com mel e engano
enquanto pobres roem os cacos nas entranhas
mil demônios aprontam os seus pandemônios
mas tu te retiras para os campos teutônios.

Mensageiros do advento, onde as trombetas?
Caminhai também pelas estradas do agora
caminhai também nossas estradas goradas
mas fiéis à fel, não fazei de nós novos capetas.










               Derradeira chama

Era uma vez um moralista, sabia o que era o Bem
e bem odiava o Mal: sabia o que era A Salvação...
Certo dia descobriu que enquanto se martirizava
mais o galo do patrão cantava, mais ele engordava.

Pagou então para o diabo levar sua alma tão alva
mas alma o diabo não encontrou, não havia alma
nem mesmo as Eríneas dele ainda se lembraram:
Justiça não havia, o injusto não podia encontrar.

Andou pelas ruas de São Paulo, pela muita garoa
andou santinhas nas curvas da estrada de Santos
como se andar fosse um avanço, uma boa solução:
e no amor se fez carne, foi até mesmo um dia feliz.

Pediu à carne perene pausa e perdão pelo perdido
ergueu o cálice de um rosto trigueiro na penumbra
como se fosse um sol que se pudesse erguer sozinho
cortinas coloridas coavam o entardecer e alvas luas.

Não apenas passa o amor, também a hora do perdão
e de passamento em passamento se ia o pensamento
como se o pensar fosse apenas a impotência do gesto
como se pensar já fosse avanço ou primeira solução.

Mais uma vez ergueu um pequeno templo no agora
cego aos passos perdidos na última curva da estrada:
na palma da mão uma chama dançarina, nova alma
a iluminar antigos vestígios, ilusão em meio à noite.

A soberana vitória da chama em nossa conversação
tuas palavras em punhal, a depor flores pelo punho
propondo em verde claro e num carmim acendido
versos de cervo ferido, a buscar no monte amparo.





               Carta do penoso consolo

São Paulo, agosto de 1986

Não consideres pecado o que foi só ter menos poder
não consideres culpa tua o que foi deles fria agressão
não consideres engano o que apenas profetas saberiam
não consideres suicídio o que foi tua imposta agonia:
renasce das tuas cinzas, renasce da tua tanta derrota
passa por cima do pecado, da culpa, do engano, passa
trata de erguer de novo a bandeira caída no campo
molha em teu próprio sangue os teus lábios sedentos
aprende a bater no mais baixo-ventre, e desaprende
o inimigo se alegra engordando as tuas carnes, ah sim
com um sorriso no olhar ele já devora as tuas partes
há índios antigos nesses senhores no alto das poltronas
devora os teus sonhos, guarda em ti mesmo tua chama
nós temos de aprender a rastejar enquanto só jazemos
temos de aprender a capenguear enquanto rastejamos
temos de aprender a caminhar enquanto capengueamos
temos de aprender a correr enquanto ainda caminhamos
temos de aprender a enfrentar esses sabujos da estrada
sabujos que vigiam até veredas onde buscamos salvação.
Tu ousaste abrir a boca para exigir pouco mais que pão
tu perdeste o teu emprego, a tua carne foi rasgada, sim
tu tiveste de seguir as ínvias vias da emigração interior
tu te espantas com o teu próprio destino, com a história
mas não deixes que a dor te desvie do caminho, escreve
nessa hora sobreviver ainda é uma vitória, te resguarda
nascituri te salutant, guarda em ti o caminho, a chama
e mesmo que ninguém te saúde, tu tentaste o chamado.










               Consolos de um cão

Por mais que te saia o sangue pelas chagas vivas
propõe ao futuro cicatrizar as tuas tantas feridas
como se fossem te escutar num dia já redimido:
tu também fizeste teus tantos pecados, fizeste
sonha com o dia em que esses que ora imperam
passeando sobre cadáveres sua sinistra sombra
já não sejam mais senhores de braços e cutelos
sonha com esse dia como se fosse mesmo existir.

Vejas bem: essa mesma mão que ora bate, açoita
ela tem outra mão, esquerda, travessa e afoita
uma mão que pode parir martelo, pão ou foice
mão que pode dar-te uma paz que nunca tiveste
ou mão que pode ser tão avessa quanto a direita.

Se inimigos tantos ora te cercam tão bem fornidos
prontos a fazer de ti um chafariz de rubra tinta
já decidiram, tu tens e não tens em ti o infinito
tens de ir embora, trata de apressar a tua saída
ainda que queiras ficar, ainda que te doa partir.

Tens mesmo de evaporar como a névoa no vento
o primeiro combate é abater esse teu desalento
talvez um dia tenhas volta, tenhas algum advento.

Resguarda no baú do olvido um pássaro de papel
um anjo a ser solto um dia como um Papai-Noel
palavras escritas com gotas de sangue, e sem fel.

No peito, feito medalhas, cicatrizes de batalhas.









                Carcamanos

Tua vida, que sonhavas tão plena de ventura
virou uma capoeira, um bem mirado arbusto.

Procura agora o alto de um sossegado morro
de onde possas gritar ao nada socorro-socorro.

Três livros tu fizeste, três empregos perdeste
três tristes tigres, trotando de leste para oeste.

Se caminhos não tens, ó tu, ó pobre arbusto
arbustos não têm caminhos, vive sem susto.

Todo humilde, vai ganhar teu cotidiano pão
vendendo a tua alma no mercado da ilusão.

Do tigre só tens a bengala, o berro e a gaiola
a gaiola de galhos, a bengala de gorgonzola.

Podes estar tremendo de frio aqui na encosta
mas que isso importa, quem de ti ainda gosta?

Parco e triste arbusto da encosta do morro
tu vais cair com a chuva, com o teu socorro.

Por ora tentas agüentar tremendo todo vento
esse minuano frio que sopra o teu desalento.

Nós aqui ficamos, teus desafetos, nós ficamos
com os pés fincados na lama, nós, carcamanos.

Honremos aqui os mortos da beira da estrada
aqueles a quem teus braços acenam teu nada.

Homens do avesso do império, homens da lama
fazei na lama vossa cama, ninguém vos chama.




               Estrelas pernoitam

Uma suave brisa acalenta teus últimos dias
como se alguma esperança a ti permitirias.

Deixa o barco correr por essas podres águas
pela cloaca do Tietê, dias iguais, tuas mágoas.

Vai anotando esses musgos e fungos do casco
vai amontoando teus cabelos brancos de asco.

Deus, ó Deus, por que abandonaste esse povo
povo, ó povo, por que traíste a Deus de novo?

Tantas rotas, tantas rotas, e tantas derrotas
nenhuma delas a merecer notícias ou notas.

A tempestade agora por si já se encarrega
de estragar o resto do casco que te carrega.

Tinhas tantas esperanças nessas novas terras
ó tu, navegante, que em sargaços emperras...

Teu corpo vai encontrar boa corrente ou brisa
que irá levar teu cadáver até o porto de Ibiza.

E lá ressuscita, ó pobre salamandra do jirau
lá recomeça a viver com a maior cara de pau...

Noite, ó noite, noite tão escura, tão tão escura
és tu que me dás a estrela de púrpura pura...










               Lição de otimismo

Na encosta desse morro miniflores cintilam
por mais que chuvas chorem morro-abaixo.
Nos arbustos inclinados desse teu descenço
pássaros pousam e às vezes ousam decantar
prontos para voarem no passeio dos gatos
vadios fantasmas do antanho, amos do anho.
Espreitam e cantam, esses pássaros perdidos
que não sabem o que fazem aqui no Sumaré
como não sabem essas minicorolas coroadas.
Se o morro pode abrir seu leque de espantos
por que não podemos sorrir aos gatos tantos?
Ilusões das vinte auroras, vos dizemos adeus
nunca mais vos queremos ver, never more
queremos apenas repor alguns pontos nos is
descobrir por que existe alguma cedilha no c
dar um atestado, fazer um pseudotestamento.
Apesar de todos nossos prognósticos passados
vamos sequer ser meros espantalhos de palha
estrelos a cintilar nas madrugadas mais frias
sóis sem arrebol, na terra do alheio carnaval.



















               Valsa antiga

Três passos eu dou para onde vais
e quatro em seguida tu te retrais;
três passos eu como que me afasto
e quatro tu dás para o outro lado.

E nesse jogo da eterna distância
passamos um ano, mais outro ano
quatro anos e mais nós já passamos
sem encontro, desencontro, ânsia.

Quanto mais perto nós andarmos
tanto maior será entre nós o mar:
um passo, dois passos, três passos
orquestra sem cânon ou compasso.

A três e quatro palmos de fundura
talvez se possa um dia ouvir o eco
da minha tíbia tocando reco-reco
nas tuas lindas costelas bem nuas.

Não sei se saberão nossas canelas
ainda dançar ao som das costelas
a dança do ganso, dança da pança
a dança do fim de toda a andança.















               De déu em déu

Da amada a ausência fatal, funesta flor
a botar angústia na garganta ora viúva
a brotar no brilho pálido dos teus olhos
a fincar raízes feito um ninho de saúva.

Cultiva essa tua flor, cultiva, jardineiro
revolve a terra onde ela em ti germina
sem piedade apara o caule em janeiro
revolve até o fundo, daí recobre a mina.

A hora fatídica já chegou e se achegou
se aconchegou em ti a hora do espanto
um espantalho mergulha o seu punhal
com seu punho de palha e sem pranto.

É tão lindo o filho que ainda te resta
consolo dos teus dias, alegria, bênção
como um anjo pousado nesse desterro
como se te prestassem deuses atenção.

Mas um dia esse anjo irá também voar
pelo céu azul ele há de voar, nas asas
nas asas da Panair, de nuvem qualquer
e tu já não terás mais casos nem casas.

Hora fatal, fatídica e funesta hora essa
teu punhal será sempre apenas de papel
a recolher lágrimas contidas numa eça
instantes de precipício, vazios a granel.

Com o punhal do sonho no peito em prosa
recorta apenas um pedaço do azul do céu
come vagas nuvens de algodão cor de rosa
e fica vagando para sempre de déu em déu.





          Filha perdida

Filha minha, que nascer não pudeste
entre os perigos e percalços da vida
sacrificada no altar do antanho Abrão
tu que antes mesmo de ir pelas ruas
já foste atropelada pelo Desemprego
ah ‒ eu te vejo ora bailando pelo ar
vestida de azul, no cabelo uma tiara!

Pelos ares eu te vejo agora bailando
de azul vestida, uma tiara no cabelo
a dançar os quatro anos de ausência
a bailar em quatro cantos de Perdizes
eu ‒ comparsa dos algozes poderosos
eu ‒ algoz a cumprir a lei dos tiranos!

Ainda passeiam impunes os algozes
passeiam pelas páginas dos jornais
passeio eu, impune, pelas calçadas
só tendo perdido mais um emprego
e as mãos hereges, a língua profana.

Com sangue escrevem meus cotovelos
na parede inútil da nossa impotência
a vida que queríamos e não tivemos
a vida para sempre perdida, a menos.

Nós, pais, nunca realmente veremos
a princesa morta em nossos terrores
Ifigênia sangrada na era dos horrores.

Ela dança, ela revoa apenas em sonho
ela ressurge sangrando em pleno sono.

Doce ausência azul, nunca te veremos!





               Duas meninas

Duas meninas brincavam comigo um dia
só a uma eu via, da outra eu nada sabia
(a segunda exata no ângulo se escondia
onde olho esquerdo ou direito nada via):
das duas eu nada mais vos diria exceto
que eram todo meu encanto, todo afeto.

A primeira, matreira, de tudo ela se ria
e, sabida, piscando o olho à outra, sorria
mas da outra, procurada, eu nada sabia
procurei ao norte, ao sul, a leste e oeste
não achei o que tão perto de mim havia
aquela que de olho estava e não se via.

As duas matreiras se divertiam e riam
no espelho do olho se buscavam e viam
no curvo espelho se deformavam e riam
uma vinha outra ia, uma rinha outra rá
uma inha outra in, uma rainha outra má
vendo o que eu não via, as duas se riam.

Danada prisão da patafísica mais passada
deixa pousar nessa janela a pomba suave
aquela que anuncia paz e tranqüilidade
estranha paz de um país tão longe daqui
paz que não pousa nessa janela paulista
paz que não tenho no país em que nasci.












               Separação

Mui original, digo enfim adeus, aceitando ora
as tantas despedidas, tangos da última desova
cantos do mais negro cisne soando a toda hora.

Digo que cansei de ver teu rosto em lágrimas
digo que cansei de ver teu corpo todo abatido
digo que cansei do amor só rondando calvários.

Não quero mais do teu corpo o imenso fascínio
não quero mais noites e noites de puro delírio
não quero mais em teu centro catar negro lírio.

O preço da tua voz suave ausente no telefone
de não mais ver o sorriso brilhando no olhar
de perder imenso prazer ‒ esse preço eu pago!

Um preço imenso, não demais para a santa paz
para o atraso duma periferia toda desgastada
abrigo do meu corpo finito, já frágil, agastado.

Tu sabes e eu sei, apesar do nosso imenso porre
apesar da imensa paz que nosso peito percorre:
é rubra a negra tinta que ora no papel escorre.

Temos medo da dor, e ela está tão perto de nós
é tão imensa a força do império, não temos voz
mas repetir perdas, ó amada, será menos atroz?












               Registro

Hoje foi outro dia perdido
     e as más notícias e os maus fatos
     nele se acumularam mais uma vez
     como águas de um inverno passado
     como o fogo de infernos repassados.

Agora olha para tuas mãos
     revês o tempo a escorrer nas rugas
     revês a labuta escorrendo em nada
     revês tua têmpera gasta com porcos
     pérolas perdidas: corta as tuas mãos.

Tu gostarias de ainda poder
     passear com teus filhos em sossego
     ler um livro que tu mesmo compraste
     ter um emprego, garantia de serviço
     quem sabe escrever, cantar, até falar!

Mas tu aqui não soubeste
     não ser essa a terra do pássaro azul
     que tuas idéias eram o teu inimigo
     que o caminho para esse povo e país
     passa por cima do teu pobre cadáver.

Tu também nunca soubeste
     arrancar o arcaico que trancava a rua
     decifrar o enigma da pública esfinge
     subir ao leito das princesas e rainhas
     semear pela rua mais que teu sangue.

Talvez no entanto ainda possas
     aprender a pensar sem fome nem dor
     enxergar um pouco entre o nevoeiro
     mover os dedos, apertar manas mãos
     encontrar na Terra um abrigo, morada.




               Valhacouto

Sou o príncipe-herdeiro de todos meus erros
mas hoje não há tempo sequer para enterros.
     
Parece restar agora apenas o depois do agora
sem o desespero de agora, augúrios de ágora.

Que um bem remoto valhacouto nos seja dado
onde purgar se possa, e cauterizar o chagado.

Lá cultivarei a terra com minha própria mão
lá cultivarei, à noite, poemas da maior solidão.

Que o testemunho dessa periferia da história
possa converter-se em querer bem e estória...

Seria tão bom ter paz como benção da velhice
deixando de ser plebeu, de escrever caretice...

Seria melhor plantar batatas e verdes limoeiros
ao invés de ignotos versos em ausentes outeiros.

Sem nenhum desassossego, ainda que solitário
em perene doação, embora pareça parasitário.

Uma escrivaninha, alguns livros, uma cadeira
e um pouco de olvido e paz - a semana inteira.

Dos caminhos, o que tu tomasses seria errado:
seria o teu caminho, caminho de amaldiçoado.

Sossega então, lá também não terias sossego
isso é Brasil, a terra do terror, terra do medo.

Mas teus versos também são inúteis, ignotos
como inútil este sonho em meio a terremotos.




          Chegando ao cerrado

Aqui estou eu sem beira nem mata
aqui estou eu no deserto do cerrado
longe do mundo, longe demais de ti
longe de todos, mesmo longe de mim
como um náufrago, no exílio perdido.

Aqui posso chegar mais perto de mim
posso até mesmo encontrar em mim
mais que o branco da folha, e o gris
a pedir carinho a teus olhos ignotos
para palavras movidas a alho e óleo.

Cá estou tratando de plantar batatas
as batatas que me mandaram plantar
batatas, batatinhas, batatões, cartofla
pommes de la terre ferida e fechada
encerrado no mais fundo do cerrado.

Potatoes, patacos, patacões, patagões
currupaco-paco-paco pago o teu pato
quando pica partilha o peito paterno
na beira da mata, no meio do cerrado
ó poeta paspalho, papagaio do nada!
















          Um cervo, um servo

Um cervo-real corre na antiga floresta
     e atrás dele escorre a matilha de cães
     (como se fosse o deus que mais presta).

Quanto mais corre pela floresta o cervo
     mais galhos tem nos seus galhos, e cães
     (afinal, um cervo é um cervo, um servo).

No último recanto, de hastes um volteio
     morrem dois, talvez três desses cães
     (antes de feri-lo o ferro fatal no meio).

O que lhe resta nos quadros antigos
     senão estrebuchar em meio aos cães
     (senão ornamentar os castelos dos vivos)?

Do peixe também não se tem piedade
     peixe também não é melhor que cão
     (e a minhoca sem pernas a espernear?)!

Tu te olhas no espelho da minhoca cega
     sem vértebras, sem os dentes do cão
     (como tu, espetada pela bunda, se renega).

Nem cervo-real tu és, apenas um servo
     a veadar pelas ruas feito vadio cão
     (em ti, nem a minhoca-mignon te serve).












               Pelo Jaó

Passeio com meu filho pelas trilhas desertas do Jaó
    entre verdes capoeiras e pássaros cantando, vamos
        vemos branco tapete do céu, garças em busca do lar.

Vemos, aqui e ali, estilingando fantasmas e vozes
    pássaros a volitar permanentes reprizes atrozes
        a volitar volteios velozes, nada longe dos algozes.

De que adianta, meu filho, ora caminharmos por aqui
    debaixo desse céu todo azul, se é hora do entardecer
        se nossa presença é toda feita de azares e ausência?

Não fui bem recebido nas catedrais do saber do Brasil
    em templos em que ajoelhei, fui até cuspido e expulso
        como um cão sarnento, fui até apedrejado pelas ruas.

Estamos agora no outono do desespero mais cruel
    que o teu caminho seja mais fácil, mas longe daqui
        suplico aos deuses, sabendo que os deuses são cruéis.

Tu és o consolo desse meu exílio, pobre companheiro
    do mesmo pão nós comemos, e é bem amargo esse pão
        mas é pão, e é esse o pão que agora posso te oferecer.

Encontramos nessa ilha provisório refúgio, e morada
    uma ilha pequena, quase sem água, sem coqueiros
        nós, náufragos, vamos nela navegar à beira do nada.

Sonho feroz do outono, mas inverno aqui não se tem
     tem-se apenas a secura do deserto, o calor do inferno
          gotas de suor sem orvalho, espécie de avessa Sibéria.

Vamos suplicar aos deuses, fazer grandes sacrifícios
     churrascos a ornar os céus com fantasmas pingues
          alegrias de Caim, caímos calados, ó meu curumim!

Pingues pingentes do céu a pingar fogo pelos altares
    cai ganindo Caim perto do Abel abelhudo, daí se cala

        com um punhal de pedra no peito, ele te sorri falaz.


Em três gotas de orvalho temos de navegar, hijo mio
    no azul desses teus olhos temos de navegar, aflitos
        da derrota fazendo uma rota, rotos, no entanto vivos.



































               Na praia do Araguaia

Alguns galhos se estendem pelo céu do azul goiano
um pássaro põe-se a navegar em busca de insetos
um touro ataca feroz com seus tão tamanhos chifres
um inseto se debate sem cura num bico sem cifra
e plácida se estende a manhã por todo o cerrado...

Das navegações grandes que se fizeram nem rastos
restos que se arrastariam por praias bem perdidas
como se algum moribundo fosse fonte de esperança
ovos de tracajás devorados aos baldes sem amanhã
ainda uma criança brinca na branca areia da praia.

Suave deslisa uma canoa por um límpido igarapé
folhagens perpassam cabeças recobertas de ferro
Sinatra zumbe compassos para o peixe tucunaré
tu repuxas sobre ti o lençol do último azul celeste
estendes tua mão até o verde - e dizes adeus, até.

Das navegações grandes que se fizeram, só restam
toneladas de lixo, bêbados, um rio quase sem peixe
o suave contorno de um sonho situado muito além
uma terra que não veremos nós em pleno deserto
enquanto ruínas se acumulam dizendo-se progresso.

Quarenta anos andamos nós pelo cerrado deserto
semeamos desertos com nossas patas de pantera
colhemos as promessas da esperança mais austera
não somos um povo eleito, mas um povo desfeito
do trabalho forçado fazemos a grandiosa promessa.

Temos alegrias de índio cevado para próxima festa
um boto ostenta o negro dorso, voam duas araras
nas mãos da menina um pedaço de pau, caravela
outra criança dorme num leito de folhas fanadas
como se para hoje fosse haver amanhã, alvoradas.




                    Mulo nulo

Fomos ao nosso próprio enterro e já retornamos
com razão menor que a das plantas do altiplano
sem o consolo teimoso das flores do seco cerrado
sem a casca grossa das parcas árvores do cerrado.     

Não sabemos onde será nossa próxima sepultura
somos uma velha trôpega à beira do seu túmulo
tumultuando o sossego dessa ignota encruzilhada
no cemitério dos sonhos da nossa pátria amada...

Onde ecoarão os pretéritos, os perdidos carinhos
onde estarão as luzes, os caminhos sem espinhos
se aqui a miopia celebra seus cultos, seus triunfos
se aqui o engodo tem na mão tão imensos trunfos?

De que adianta um poema tão perdido no espaço
de que adianta respingar uma tinta tão solitária
de que adianta se amargurar sem ferro nem aço
de que adianta fazer do pardal a grandiosa águia?

Tu bem sabes que a ira duma linha não-impressa
é uma tiara tão igual às outras, de validade nula
é no cancro apenas uma ínfima, fugaz compressa
enquanto continuas marchando feito uma mula...















          Num espelho barato

De repente me vejo num espelho barato
e noto que é branca a barba que brota.
Meu Deus, quanto tempo sem redenção
quanto caminho perdido, que danação!

Ai, meu Deus, o que faço eu no cerrado
perdido no semi-deserto, encarcerado
um náufrago dos sonhos, desnavegado
sem ter um porvir, um sentido amado?

Nessa hora branca, da desimaginação
lembras quantas vezes disseram não
te forçando a buscar longe o teu pão
porque tu és de esquerda, és alemão?

Os companheiros estão muito distantes
pelos bons amigos podes gritar em vão
tua mulher não agüenta mais a situação
o que esperas duns versos suplicantes?

Deus, ó Deus, por que ainda escrever
com maiúscula teu nome falar, Deus
por que ainda linhas no papel meter
se és abjeto objeto, um expulso ateu?

Desse deus não terás a bênção jamais
dele outros é que ora tiram proveito
não podes ir à forra com teu despeito
e outros deuses por aqui não há mais.

Põe de novo o traje de Sancho Pança
solta de novo o Quijote em andanças
vê o espírito que domina hoje em dia
paraíso não há e é enganosa a utopia.





               João da Ladeira
Súbito me aparece o fantasma do meu tataravô
    do velho Johann Beckenkamp, o João da Ladeira
     que foi cocheiro, camareiro do imperador brasileiro.

Tu trabalhaste nas cavalariças do Pedro imperador
    lá no Paço de Santa Cruz, tu trabalhaste lá no palácio
     ou nas estrebarias do palácio, na última flor do Lácio.

Tu foste depois fundar a nova colônia de Santa Cruz
    foste e aprendeste a soletrar as letras da virgem mata
     como já aprenderas a decifrar as estrebarias do palácio.

Doces navegações da loucura, agora ouço um piano
    tocado ao entardecer, ora, após tantos e tantos anos
     enquanto aves revoam em V pelo anoitecer goiano.

Um piano entre nuvens, em meio à estação das águas
    um piano impossível, flutuando entre rubras nuvens
     enquanto se faz a noite, enquanto ressoam as chuvas.

Bate meu coração nas teclas desse antigo clavicórdio
    enquanto pianos eletrônicos nas modernas vitrines
     prometem o que não podemos ser, cínicos cisnes.

Claves do coração alheio, onde estarão as tuas chaves
    para abrir portas, portinholas, talvez mesmo portões
     para não ficar para sempre só na estrada dos senões?

Era uma vez um rei de dois reinos e de reino nenhum
    um rei que reinou nessa terra e quis reinar bem além
     reinou sobre nós, daí se foi, não reinou mais ninguém.

E houve um imperador do império segundo, imperador
    rei que foi rei sem ser rei, que foi rei e que não foi rei
     dele cumpriste o mandato, por esse rei pela terra errei.

Nos idos de mil oitocentos e cinquenta foste ao cais do Rio
    foste visitar dos liberais-democratas alemães o navio
     e uma jovem tu viste, e minha tataravó em ti me viu.

Nas mãos do destino, nunca mais tu foste o mesmo:
    "para novas terras remei, em Rio Pardo eu me casei
     na catedral do nada nem sequer catedral encontrei.

Saímos juntos do Rio de Janeiro, fomos juntos pro Sul
    tu tiveste de adotar minha crença, a tua crença abjurar
     mas se Paris vale uma missa, vamos essa missa rezar!

Saímos de Santa Cruz do Rio de Janeiro, juntos fomos
    para Santa Cruz do Sul, por ordem de Pedro Imperador:
     nós, loucos, contentes fomos, do Rio pro nada, sem dor.

Dos sonhos loucos dos meus sogros eu pouco entendia
    eles queriam igualdade, o valor do trabalho, liberdade
     no meio do mato, de quarenta e oito as perdidas crias!

Na catedral do nada navegas tu agora as tuas ânsias
    navegas tuas ânsias de rei, mas nas estrebarias do rei
     tu, cria das capoeiras, podes ser rei, rei das capoeiras!

Tu não querias estar enterrado nessa distante terra
    mas é a terra que te resta, enterra nela a tua semente
     não terás uma cruz mais santa, nada virá de repente!

Abençoados pelo Imperador abandonamos o paço real
    cumprindo o mandato de criar uma terra de fraternidade
     mas pronta a entrar na guerra em caso de necessidade.

Abonados abandonamos o paço de Santa Cruz, no Rio
    no compasso do remo fomos a Rio Pardo subindo um rio
     e passo a passo seguimos o Rio Pardinho, a serra nos viu.

Caminhamos e caminhamos como se isso resolvesse:
    Jacuí cantava entre brenhas como se redenção houvesse
     e eu cantava junto como se para cantar razão se tivesse!

Há tantas litanias a serem compostas ainda, meu neto
     vou tocar a viola que enfiaste no saco, e vamos cantar
     vou ser como se eu fosse, como se aqui pudesse cantar!


Com uma fogueira no morro conclamo o meu vizinho
    o vizinho mais próximo, que não pode ouvir meu grito
     essa terra, nossa sepultura; o topo da serra, duplo exílio.

Por essa terra pedregosa exaltei minha alma ingênua
    nessa terra exilei o meu corpo todo carente de carinho
     nessa terra não tenho um amigo, só longe um vizinho.

Eu dirigi carruagens e malandragens do Segundo Pedro      
    acompanhei suas andanças noturnas, mas imperar deixei
     sobre mim a insânia do verão, para vir morar no deserto.

Quem é mais louco, Don Quijote com fantasmas de papel
    ou Sancha Pança, que sabe que eles são apenas fantasmas
     mas ainda busca uma ilha rodeada de terra por todo lado?

Mas o que é o homem sem a sua loucura, refúgio da ventura
    aventura de tornar vivo o que não é nem nunca por si seria
     ainda que a nova criatura sufoque em suas mãos o criador?

Nessas terras construí uma casa, plantei videiras, sementes
    nesse leito implantei ainda minha mais imprevisível semente
     tratei de esquecer Berlim, a corte no Rio, caminhos da mente.

Por essas terras exaltei uma alma que parecia estar vazia
    tive nelas uma companheira, tive para a esperança uma baía
     nelas sustentei meus filhos, construí uma cidade com alegria.

Vamos beber, meu vizinho, desse vinho que eu mesmo fiz
    neles se resguarda o sol do verão retrasado, ó prosit-prosit
     vamos beber o sol sob a luz da lua, lua e sol bebamos aqui!

Se depois nossas pernas não puderem mais nos sustentar
    vamos deitar nessa cama, e vamos beber, beber e cantar
     vamos ver no quero-quero teuto Kiebitz voando pelo ar!

Navego agora pelo ar como o quero-quero desses campos
    navego pelos ares como se já tivesse as alvas asas dos santos
     já não renego mais o que fiz, não nego meus enganos tantos.


Contempla, vizinho, contempla o que daqui ainda há de vir
    contempla da semente o fruto, não só essa tua mão calejada
     contempla não só a terra ferida, mas nela a terra fecundada!

Vamos calçar luvas brancas, um pouco mais de fé meu irmão
    o Botucaraí é nosso templo, vamos nele construir outra nação
     se implantamos a morte, plantamos também a ressurreição!
Procuramos nesse fim de mundo uma picada da salvação
    não podem entender nesse país o que buscamos, meu irmão
     antes de salvar a alma, temos de dar ao corpo uma solução!

Assim como nós nessa água parda do mais pardo dos rios
    antes de salvar qualquer alma, corpos tratamos de salvar     
     temos agora dessa mata selvagem nossas almas resgatar!

Não sabemos se havia redenção no gesto que implantamos
    uma longa e remota noite se impõe sobre o que desejamos
     não saberão o que tentamos quando escapamos dos amos:

o que ano após ano nossas mãos semearam com sementes
    o que ano após ano tentamos semear através das sementes
     o segredo das nossas mentes, nossos sonhos de dementes!

Nessas terras nossas mãos cultivadas se cobriram de calos
    calejados estão os nossos corações, recortamos talos e valos
     semeamos uma cultura contrária à servidão de sonhos ralos!

Esse nosso gesto tão pleno de coragem, tão pleno de loucura
    nesse gesto tão insensato, em que jogamos nossa vida impura
     nesse gesto aniquilamos a escravidão que parecia sem cura!

Olha o fundo do copo, meu companheiro, vê no vinho o sonho
    o sonho que tiveram os meus sogros na Germânia em sombras
     vê a fraterna igualdade que ao colono no meio da mata assoma!

Saímos da capital Berlim, depois da corte do Rio para a capoeira
    foi o caapora que nos tocou das capitais, fazendo de nós caipiras
     agora somos nós dois uma dupla caipira a exconjurar o caapora!



Tentei galgar montanhas, desci a ladeira, virei João da Ladeira
    na capital fui criado, na corte cortejei, da capoeira eu virei o rei
     e agora o Imperador lamenta ter perdido o império brasileiro!

Foi sábia e ignara a resolução que lá no cais do Rio nós tomamos
     não sabíamos o que nos esperava nessas matas que ora amamos
     agora pelo exílio do perdido Imperador Pedro Segundo bebamos!

Imperador ou não, pouco importa, pouco nos importa o palácio
    foi nosso amigo, deu-nos nome e destino, meu neto Pedro será
     nós vamos continuar catando cacos da pátria no couro do acaso!
Quem troca um palácio pelo meio do mato está louco, vizinho
    mais louco que o louco é quem segue o louco, redobrado louco
     espelhos da loucura vis-a-vis se desdobrando pouco a pouco!

Essa mulher que a meu lado dorme, ela pariu aqui a sua noite    
    quando seus pais se foram, já descrentes do sonho democrata
     ela ficou a meu lado, se esvaindo em sete filhos que geramos!
    
Essa mulher, parteira do finito e do infinito, ficou a meu lado
    do lado de um louco, já contaminado pela loucura dos sogros
     querendo igualdade, querendo liberdade no meio do mato!

O gesto primeiro da nova liberdade foi na matriz de Rio Pardo
    submeter-se ao ditame jesuíta, abjurar sua crença em Lutero
     jurar que nossos filhos seriam todos criados no católico credo!

Ela jurou e ela cumpriu, mesmo sabendo ser melhor sua crença
    eu deixei que o padre impusesse maldição como se fosse bênção
     com a sacra mão do carrasco ele abençoou a futura destruição!

E eu fiz o sinal-da-cruz, disse amém, alegre em minha insciência
    sem saber que para os netos sua crença era melhor que a minha
        sem saber que ela, parteira, cria primeiro na vida que logo vinha!

Sim, eu fiz o sinal-da-cruz e disse amém, pensando estar certo
    disse amém como se assim não abdicasse ao nosso modo de ser
     enquanto ela dizia amém a mim, à vida que através de nós seria!




Ela teve a coragem de quem não sabe o perigo que lhe aguarda
    domingo após domingo meus netos irão ao templo que era o meu
     não irão ao templo interdito, ao templo interior, ao templo seu...

Um caminho se desfez: o caminho até o templo seu, interdito
    nós sabemos que não se refaz o que se proibiu em público dito
     para sempre perdido está e, como se não fosse, olvidado ficará.

Tu o sabes tão bem quanto eu, meu caro companheiro de copo
    a verdade prefere pernoitar distante do palácio, no interditado
     num palácio infeito, no palácio do palhaço, num circo não feito.

Um palácio interdito guarda uma verdade, uma incerta verdade
    nós saímos do palácio real, construímos um palácio de palha, irreal
     semeamos na capoeira um sonho, nela fizemos a nossa choupana.
Do palácio real nos retiramos para cumprir o mandato imperial
    criamos uma colônia para defender o império contra o invasor
     e em terra de escravos, sem escravos foi nosso fraterno labor.

Criamos um povo de iguais num país todo feito de desigualdade
     sem ferros nem berros nós trabalhamos, construindo liberdade
     enterramos nossos avós, mas seus sonhos nós não enterramos.

Não só fugimos da servidão e da guerra, no oceano as deixamos
    a mim chamam João da Ladeira, pelas ladeiras do sonho andamos
     e, da deusa derradeira, no mato as promessas cumprir tentamos.

Não apenas a promessa, não apenas o sonho, mas o gesto soberano
    nós tanto perdemos tentando encontrar, destruímos ao construir
     semeamos na macega o sonho, no sonho a ventura e a desgraça.

Demasiado longe ficaram os civilizados e seus salvadores navios
    perto demais os bárbaros com seus cavalos e suas tantas sevícias
     nós mesmos nos tornamos pouco a pouco índios cheios de vícios.

Erguemos igrejas e uma catedral, braços nossos erguidos pro alto
    tentamos erguer um império sem dono nem imperador, tentamos
     melhor que nossa história foi a nossa intenção: nós fracassamos.

Nego o gesto da estória que corrige o desvio, o desvario da história
    ficamos sem teatros, ficamos sem navios, mas nunca sem o sonho
     nesse mar de capoeiras ora navegamos o nosso duplo desterro.

O único navio que ora nos resta nesse oceano de capoeiras infindo
    é esse vinho vagabundo que eu mesmo faço, ácido todo corrosivo
     a percorrer as nossas entranhas como uma estranha despedida.

Na cidade que aqui fundamos em nome da utopia e da igualdade
    semeamos também fumo e favela, pesadelo, safadeza e ganância      semeamos o que não queríamos, mas demos à capina os braços.

Vamos montar nosso desespero nesse tonel de vinho, vamos voar
    vamos sair voando pelo vale do Rio Pardo, vamos beber no outono
     o enterro do sol do verão que um dia a nós fizemos como sonho!

Outra esperança há de vir, basta esperar, a nossa pequena fogueira
    ilumina a nossa noite e nos aquece, nela esqueçamos tanta sujeira
     ano após ano capinamos a capoeira, em meio a suor, pó e poeira.

Vagamundos, aqui nos quedamos, nesse fogo temos de nos aquecer
    âncora da parca esperança nossa, luz que longe luzir queremos ver
     com fogo conclamamos gerações que aqui ainda hão de aparecer!
    
Mas de que adianta plantar palavras no ar como sementes ao vento
    para gerações que não se sabem amadas antes mesmo de existirem
     que não sabem que por elas sonhos brilham em nossas caveiras?

Nas noites frias do inverno revoa em nós a asa da saudade da pátria
    uma imensa coruja da vida que deixamos atrás de nós na Alemanha
     mas não é sábia a saudade quando se queimaram todas as naves!

Quem nos dera podermos voar como revoam corujas e quero-queros
quem nos dera podermos voar tão longe quanto voam as andorinhas
    mas nós podemos viajar apenas nesse tonel, voar na asa das vinhas!

Se nosso ontem se encontra interdito, venha o depois de amanhã
    o amanhã já pertence a jesuíticos arames farpados entre tumbas
       separando na morte o que a vida juntou: no ar ficaremos juntos!



Do alto da Picada Velha ficarei contemplando meus netos e bisnetos
    minhas pegadas em Boa Vista, Bom Jesus, Kleiner Rio e Dona Josefa
      na poeira do chão, nas árvores, nas ruas e roças, meus olhos e pés!

Na curva do rio estará enterrado o meu coração, tão longe de Berlim
    mas uma nova pátria terei dado, longe de guerras, a esse povo aqui
        a quilômetros mil da civilização, com pobreza de subdesenvolvido!

Tão infinita é a distância que distância não há, e tu dormes, ó amigo
    infinitos problemas legados, e tu dormes, em pleno vôo tu dormiste
       acordaremos amanhã ou jamais, pouco importa, meu caro vizinho!

Para quem perdeu o coração na última curva do rio, e a curva perdeu
    para quem perdeu o rio e a curva do rio onde se perdeu seu coração
       resta apenas dormir no ar, dizer "tentei, meu esforço a vós leguei"!

Das navegações grandes que um dia se fizeram guardamos a memória
   guardamos num sono de pedra a pedra do sonho, silêncio da história
    o resto é o silêncio que ora nos resta, runas em ruínas, rara vitória!






















               Se tu ainda fosses

Se tu ainda fosses a minha agonia
poderia reter-te por mais um dia
impor-te o jugo da atroz nostalgia.

Se tu ainda pudesses ser um pássaro
voando em frente à janela e à palavra
eu poderia te ouvir, poderia me calar.

Se tu ainda fosses do perfume um rastro
poderia seguir-te como se segue um astro
ou carregar-te comigo feito um emplastro.

Já não és perfume, já não és um pássaro
no entanto revoas nas sombras da alma
como se alma houvesse e pudesses voar.

Tu voas e revoas por tantos espaços
lançando sombras por onde tu passas
em tua negra luz me enredas e enlaças.




















          A peçonha do império

Em teus dentes luzentes se esconde a peçonha
que gela as pernas e braços de todo um povo.

Tu mesmo não notas mais tua branca peçonha
teus dedos estão vacinados, eles estão mortos.

Desses tantos dedos mortos não poderá brotar
a chama que possa o monstro colonial queimar.

Dedos mortos precisam ser cortados, gangrena
braços, pernas congelados: que pena, que pena!

Estamos verdes, amarelos estamos, é de medo
no azul do céu estão eles, dentes de percevejo!

Herodes é nosso herói, heroína a sua heroína
em sangue se afogam sonhos, lar de vampiros.

Espadas translúcidas percorrem o ar de Belém
lacaios enganam, salvação só se tem bem além.



















               Ave marinha

Teu corpo de palmeira em minha palma
e a tua calma inundando a minha alma
em ti eu repousei dia e noite, noite e dia
como nunca pensei que pousar poderia.

Deitada comigo, sei que estavas distante
como se fosses na casa uma ave marinha
sem pouso nem praia, e sem lei nem rei
mesmo só contigo, sempre sem ti estarei.






























               Adeus ao deus

Adeus, Drummond, tu acabas de partir
abrindo caminho para nós, os parcos
e nessa funda e escura tumba que te
envolve, encobre, esconde e desvela
também antigos modernos se enterram.

Contigo se vai o modernismo nosso
mas nós nem sabemos mais enterrar
os nossos mortos, as nossas mortes
e ficamos fazendo de conta que já
espantamos fantasmas de sarapantar!

Tornou-se difícil enterrar os defuntos
quando os mortos dominam as ruas:
todos presos em covas aqui estamos
transformados em zumbis ambulantes
mas tu, Drummond, o adeus aceitaste.






















                Soror sereia

Samanta do corpo de prata, luar na areia
no ínfero mundo, marinhas, torso de sereia
uma estranha tristeza a te percorrer o peito
e meu pobre coração a bater asas sem jeito.

O teu precioso corpo feito em frangalhos
pasto das piranhas na lagoa, vãos olhares
teu corpo a flutuar em sangue, em prata
pôr-do-sol no Araguaia, as negras pestanas
galhos beirando a lagoa, peixes em repouso.

O nosso amigo Toninho, dias e dias na UTI
a percorrer ínferos mundos, descaminhos
fala-nos com estranha voz, fantasmosa voz
passando à beira da escura tumba nossa
como se dos infernos ainda se retornasse
como se do além alguma voz nos falasse.

Tão débil essa voz, tão distante essa voz
apenas um pobre fiapo, um farpado fiapo
mas ainda bem maior que o som do corpo
a flutuar no sangue crepuscular do Araguaia
precoce aborto do amor, pasto das piranhas
e uma serena sereia canta à beira da lagoa
enquanto se ri de quem tanto ela encanta!

Tão terno parece o canto da Iara nas águas
enquanto ela apenas finge cantar seus ais
lamenta e chora sua impossível conjunção:
um novo Odisseu se levanta, sem pretensão
sem palavras de astúcia, sem safada argúcia
sem grandes terras, sem servos nem servas
sem uma Penélope se fingindo fiel a granel:
Nausicaa, Iara da saudade, meu último altar.





           Guerrilheiro da cultura

Tu te sentes tão sozinho nesta cidade imensa
e esta solidão parece apenas ser tua maldição:
como tocaste nos cancros, te puseram a correr
atrás de ti corria de cães um completo cortejo.

Onde se guardaram, afinal, teus companheiros
será que se esparramaram por toda a nação
será que se refugiaram todos no estrangeiro
não continuam mais a rezar a oração do não?

O que é esse pseudo-refúgio na pseudo-poesia
senão uma inútil e privatíssima homeopatia
senão um modo de tratares a tua cardiopatia
numa época em que ninguém te tem simpatia?

Esses parcos versos duma privada resistência
são apenas a tua privada, do apoio a ausência
não conseguem ter uma adequada pertinência
são sonhos dum louco, não batem continência!

Rasga também as traduções pagas, meu amigo
com elas importaste mãos que te estrangulam
com elas não nos trouxeste auxílio nem abrigo
a fome devorou-te no agora, e poetas pululam.

Quem sabe vais até à praia, contemplar o mar
mesmo sem ter namorada nem ter onde morar
da areia podes ver o azul com azul se encontrar
já morreste mesmo na praia, hão de assegurar!

Este é o tardio outono do teu desencantamento
a última estação que viveste sem acampamento
as noites passam melhor sem ouvir teu lamento
a ninguém agrada tua metamorfose em jumento.





          Luxo, lixa, lixo, lincha

Duro gesto do puro desconsolo, piedoso gesto
um dia ganhei de presente um piano anapesto
um piano posto depois por ignara, ingrata mão
numa lata de lixo, em pedaços, refugo do verão.

Foi em Berlim que tive tal piano durante anos
um piano que acompanhou um Brasil sombrio
anos de ditadura, sem solução para fome ou frio
mortos em cárcere, perdida opção dos antanhos.

Na pseudo-pátria, o fascismo desgarrado e solto
"Brasil, ame-o ou deixe-o", os autos então diziam
"o último a sair apague a luz", os pés respondiam
um piano consolava as horas do coração revolto.

O piano doado em adeus para firmar novos laços
o casório berlinês no lixo, no lixo o piano também
quebrado em pedaços, e eu no Brasil aos pedaços
a literatura sob ditadura, ao diabo dizendo amém.

A lata do lixo, do piano penúltimo pouso e palco
como meu coração e a pátria minha, em pedaços
da serra e do machado, o mais malévolo assalto
sacro velório de heróis, doidos Mariguelas de aço.

Guerra, barbárie imperando em dois continentes
não inveje outra geração a nossa péssima sorte
o destino atroz dos nossos sonhos de adolescentes
a pátria em chamas, a pátria perdida, sem norte.

Um amigo em Nova York viu numa lata de lixo
uma fumaça e uma chama, de material explosivo
como ele ficamos em pedaços, e do lixo nos ouvia
de um piano aos pedaços a mais bizarra melodia.

Quando ora caminho pelas ruas do exílio interior
ouço das latas ressoar a cantiga, a antiga ilusão
como se o piano pudesse reunir-se numa canção

como se alguém ainda pudesse escutar a sua dor.

Quem há de escutar no cerrado tão estranha voz
romper essa barbárie que se impôs a todos nós
pintar pelas paredes quadros menos indecentes
bóias-frias bem pagos, até redentos Tiradentes?

Entalado na lata de lixo, em pedaços, poeta canta
canta tuas esfarrapadas melodias, mas tampado
na lata mais escura, na rua mais escusa, decanta
a tua tampa é teu escudo, torpeza não te espanta.






























               Dor de cotovelo

Ai, pobre pobre de mim, quanta tristeza
ontem a mulher mais formosa eu perdi
aquela que com os seus longos cabelos
a pele do meu tão pacífico peito invadiu
do meu parco coração fez um churrasco
e dum deus entre homens somente asco!

Ai, pobre pobre de mim, rios de sangue
arrastam o meu cadáver todo exangue
como se nas noites desse rubro outono
ainda pudesse haver luar, luar e sonho
pudesse haver prata em tua santa lagoa
pudesse eu pobre ter uma dona tão boa!


























               Herodes, o herói

Formosas palavras de um medo tão antigo
formosas quais flores a escalar as encostas
sorrisos da terra parca, teu inverso castigo
sedutoras palavras da tua bandeja expostas
dançaste, ó João, na saboneteira do umbigo.

Na sala paulista, sob a rósea luz do abajur
a tua filha aos pés da santa mãe brincando
o teu filho contemplando retratos da turma
no aquário em luz peixes coloridos nadando
na mesa uma tropical fruteira farta de cores
avencas despencando verdes em três cantos
no piano partituras dos diletos compositores.

Eis o quadro da tua antiga e real felicidade
talvez digam burguesa, talvez até filistéia
que tiveste e perdeste na paulistana cidade
que te retiraram concretos colegas fascistas
que devoraram bestas utopias apocalípticas:
quiseram que o não e o nada te imperassem
quiseram fazer de Herodes um novo herói
da Pontifícia Universidade Católica o herói
e tu dançaste meu filho na pança da Salomé.
















               Reflexões goianas

                    - I -

Estás sujeito aos que dizem o que é o bem
acima do mal tu não te ergues com poemas
sem poder, toma caipirinha, lembra Belém.

Uma árvore seca ergue os braços de bruxa
o sol te busca nela, e ela busca uma nuvem
o fogo vos enlaça feito uma serpente bruta.

De que adianta no cerrado sonhar futuros?
Uma serpente se enrosca em tua penumbra
uma serpente baba veneno em tua secura.

Nunca irás, dizem-te, ao cerrado te adaptar
teus filhos, dizem, ainda irão te abandonar
mas que diz em ti pequena voz a sussurrar?


                    -II -

Longe, em São Paulo, amigos tu abandonaste
também uma amada tu lá para trás deixaste
cumprindo o dever, num lixo tu te tornaste...

A amada fazia-te vibrar nas horas do leito
ah, vibravas então no diapasão dos deuses
como se na cama tivesses a própria Vênus!

Ah, pobre macho por outros machos corrido
pobrecito, o teu dever, e a responsabilidade
de fato tu perdeste amigos, amada e cidade.

Teus filhos são teus deuses, e a composição
a composição dos poemas da tua veneração
como se tivesses doença venérea no coração.

Tu sofres como se fosses o primeiro a sofrer
como se tua história no país não fosse banal
és um fóssil num fosso, um fabricante de sal.
                    
                    - III -

Carregas em ti uma tão estranha estranheza
repetindo no Brasil antiga européia certeza
como se ora fosse hora de uma tal esperteza.

O teu anjo te olha, desolha, mira e remira
talvez negocie a tua alma lá para Altamira
quem perde o jogo é que no fim te retira...

Desolado teu anjo te olha em patético adeus
a ninguém mais é dado dizer isso aos teus
desdizer o instante que mata, marca o deus.

Ledo engano dos teus antanhos desenganos
pensar que poderias pensar por muitos anos
que ainda poderias doar ao país teus ganhos.

Tu és nada, tão nada tu és que já és demais
por toda parte a excessiva presença: a mais
até no deserto goiano chegando já tarde vais!


                    -IV -

Que adianta pedir a deuses se deuses não há
mesmo que queiras apenas um pouco de paz
os deuses tupis não querem te ouvir ó rapaz!

E se te escutassem talvez prestassem atenção
mas pra melhor te acertarem a pinha, rapagão
pra zombarem das tuas súplicas... de alemão!

Talvez não se possa mesmo nada contigo fazer
nesse lado do oceano, no americano continente
talvez na terra dos bisavós possas virar gente!

Aqui perdido palmitas trilhas em teu deserto
talvez lá possas sobreviver, virar um esperto
aqui nada se aproveita de ti estando desperto!

Tu caminhas nas areias vazias da tua história
não só a paciência se acabou, tu viraste estória
vai embora antes que te perfurem sem glória!

               
                    - V -

Estás descornado como os anelores sem cornos
ora et labora, ora bolas, se nada te resta agora
ou bole as bolas, dia após dia, e hora após hora!

O lábaro que aqui se ostenta sempre estrelado:
devora teus bagos como os de um zebu capado
aprende do bicho a corcova e o dorso curvado!

Nesse deserto té parece que nada te atrapalha
podes caminhar pelo cerrado sem maior falha
a lua te ilumina, ainda que te pareça de palha...

Um trem aponta na penúltima curva, ele apita
o trem da infância traz teus avós, tiui-abacaxi
ele apita, suplica, grita, mas nada contigo fica...

Tu estás só, Santa Cruz se foi, horas melhores
pagas o pedágio do deserto, exílios há piores
quiseste poesia, rebelaste, agüenta, não cores.

Deixa na última gaveta os sonhos de proveta
essa noite não mais te afeta, é um morto feto
não publiques um xerox da tua alma desafeta.

Aos senhores dos lares, aos donos dos dólares
aos herdeiros da miséria colonial: tu Sócrates?
Na careca ri a tua caveira da carícia hipócrita.
                    
                    -VI -

Quando um dia tu estiveres mais rico de azares
poderás rever teus maestros do mal, milhafres
megeras do acaso revoando sombras pelos ares.

Doidas cavalgaduras verdes a revoar certezas
de oeste a leste, num sabá de sábias safadezas
enquanto afundas devorado por velhas cruezas.

Vais desaparecer nesse translúcido turbilhão
diabólico redemunho à luz do sol, tua prisão
vais servir de pasto a esses santos de plantão.

Assim seguirão teus dias durante tuas noites
se indo como se vai uma nuvem no horizonte
e silêncio se fará em tua tumba em ares longe.

Não restará numa rocha uma lápide brocha
sequer um rato há de roer os teus restolhos
gastaste em vão tua alma, em vão teus olhos.

Não restará de ti sequer um projeto de campa
campanário, campânula num trecho de campo
para teus enganos é melhor não haver rampa.




















                   Uma talha

Estende mais uma vez tuas mãos para o alto
mas não vás buscar de novo um deus alheio:
como se fosses uma planta, deixa que a seiva
penetre em teus pés e lenta suba sem saltos
até que brotem de tuas mãos níveos pássaros:
eles que voem como se fossem novos lábaros.

Os inimigos, tu sabes, têm armas embaladas
prontas para abater teus pássaros e palmas
eles têm serras afiadas para teus pés e ramas
ainda assim, como se tu mesmo tivesses asas
solta os pássaros que brotarem de tuas mãos
mesmo de mãos ausentes, de mutiladas mãos.

Tu não és mártir, ó boy, herói também não és
ocorre apenas que agora nada mais de ti resta
não te resta sequer uma estranha raça de reza
apostando que ainda possa um pássaro brotar
das mãos mutiladas, da tanta ausência a gritar
mãos que seriam só um jorro de sangue no ar.

Queres crer que tais mãos voariam pelos ares
encarnados pássaros a pintalgar o anoitecer
como se teu crepúsculo fosse um amanhecer:
de fato nada mais te resta exceto essa crença
desespero da ausência, num país sem solução
e não te basta apenas tua própria consolação!

Não foste o primeiro nem o último dos mortais
a sentir nos pulsos a lâmina sedenta de sangue
o teu silêncio inocentaria o patrão do carrasco
os teus gritos de dor alegrariam teus inimigos
mas os cotos inúteis sobrecarregam os amigos:
arco não tens, abraçar não podes, evita o asco.
               




                    O lago dos cisnes

É bem banal dizer: a tua ausência me faz sangrar o peito.
Mas nessa banalidade sangue escorre do teu pobre peito.
Brancos e negros, cisnes navegam em teus olhos aguados
cisnes velejam com os ventos da cisma, do cisma, símios:
mas onde navegas tu mesmo, se em ti mesmo te perdes?

Essas brancas paredes do apartamento, barrancas do lago
em que navegas teus sonhos e que te parecem tão firmes,
estão replenas de fissuras, são apenas paredes de papel...
Qualquer passo que dês é um passo perdido, passo inútil
não tem para ti salvação esse país, nele tu estás marcado.

Só bois do campo é que gostam do sal das estátuas de sal
cisnes dos lagos precisam é soltar as suas penas ao vento
dá adeus à ilusão do cisne em se converter em príncipe.
No pantanal dos teus olhos flutuam cisnes, lírios, delírios
por toda a tua pessoa marcas de peçonha, pobreza, dente.

Deplora agora, ó coração das negas, os teus tantos enganos
e mais uma vez te prepara pra ver do diabo chifre e ânus:
não podes contar com fadas-madrinhas, ou santos e heróis
samaritanas capazes de partilhar com poetas seus lençóis:
se não príncipe, então ser o cisne que flutua em teus olhos!

Alguns caciques brancos te condenam ao desterro e olvido
agora olvida que tu quiseste construir um pouco da pátria
procura teu caminho noutra terra, há neve em teu cabelo
a miséria no Brasil vai continuar fabricando miséria, exílio
cisnes brancos e negros navegam em teus olhos, vai amigo.










          O estranho

Meu filho, por que um demônio travesso
sempre de novo atravessa as tuas trevas
sempre de novo atrapalha os teus passos?
Por que não consegues nunca reconciliar
o amor com a amora, e idade com cidade?
Por que resvalas a cada três compassos?

Meu caro, por que não te adaptas ao real
a esse mundo que te parece tão imundo
por que não reages com bondade ao mal?
Por que te tornaste a mim um estranho
por que és em tua pátria um estrangeiro
por que já me dás um adeus derradeiro?

Meu filho, tu tens em ti uma estranheza
como se não viesses de nossas entranhas
como se não se soubesse para onde vais!
Nós estamos aqui, e nós estaremos aqui
nós pedimos perdão pelos nossos erros
erros que te levam de nós para sempre!

Meu pai, nessa terra em que moramos
onde teu orgulho era vender caminhão
onde teu prazer era tocar tango e baião
nela aprendi do carrasco espreita e ação
e aí o meu mestre primeiro foi tua mão
o silêncio irá conosco para onde vamos.

Meu pai, adeus, e adeus ao meu irmão
vou embora, aqui não tenho mais chão
erros perdôo, não perdôo má intenção
tenho olhar pesado, não tenho acusação
aqui está enterrada dos avós toda ação
e digo adeus porque não vejo redenção.

Minha mãe, adeus, eu não queria partir
a vida que me deste, aqui viver queria
há muito estão forçando minha partida

trinta anos lutei, e outros tantos lutaria
se acaso alma tivesse, minha alma daria
mas dentro de mim já está dada a saída.






































             A alcatéia e o alcatre

Um grupo aqui te diz "não", outro ali "não"
um grupo aí adiante te diz outra vez "não"
e, no silêncio que te espreita, ouves "não"
e, de onde menos esperavas, ouves "não".

Tantas portas e corações já se fecharam
a tantas portas e corações tu te fechaste
tu te fechaste a tantas paredes e cações
a tantas paredes e canções tu te fechaste.

Nesse império do não, teu sim se perdeu
teu sim se perdeu nesse império do não:
bom teria sido poderes trabalhar em paz
mas teu trabalho tiraram, tua paz tiraram.

Como um viralata segues por São Paulo
um cão a catar lixos, desprezados restos
um cão sem ninguém para abanar o rabo
um lobo a uivar para salões em festança.

Olha em frente, companheiro, em frente
te inventa uma alcatéia, com força e fé
ilustrando crânios e trilhas pelos matos:
mas tu, viralata, és da alcatéia o alcatre.















                    Hiper-romântico

Nessa hora em que tua testa se apóia na palma da mão
e o espírito pende ao vento como as palmas da palmeira
grave ressoa a voz de um órgão pela catedral do nada...

Do alto dum rochedo, a contemplar pictóreo mar em fúria
um vulto incerto evolui pelo azul cinzento do horizonte
e mais uma vez ressoa um órgão pela catedral do nada.

O nada te estende a flor do fracasso, o espinho do Não
semeia amarguras pelos canteiros sem flor do passado
recolhe a certeza da grande ausência chamada futuro.

Aprende, ó coração amargurado, a recolher a doçura
uma imensa doçura que viste palpitar num par de olhos
a doçura que tremula em teu silêncio, bandeira segura.

Não, não aprendes, teu esforço é vão, ninguém te ouve
tuas noites de vigília, o esforço além da hora, a doação
tudo foi inútil, outros colhem teu pão, aqui lutas em vão.

Aprende agora a conhecer os ventos, não é sem tempo
não colhas apenas fel ao vento, não dês só fel ao vento
busca outro país, a fel aqui te arranca a pele lento-lento.

Mesmo assim, vê o que a mão do vento ora te estende:
não uma flor perfumada nem mesmo uma taça de vinho
apenas uma nuvem incerta e uma runa de um adivinho.

"Pára" ‒ é o que te grita uma voz oculta na escrivaninha
"cala" -‒ é o que te impõe uma sombra que te estrangula
"fora" ‒ é o que te aponta a espada que ora te expulsa!

Recolhe tudo isso em teu canteiro interior tão pisoteado
tritura essa mistura de fel, silêncio e lixo, aduba a terra
e, cantando como um campônio, embala o teu filhinho.
               



          O audaz remador

Tu te puseste num pequeno barco a remo
e remaste da África até o teu remoto Brasil.

Tu remaste como se houvesse uma pátria
um lugar para onde remar, pátria de pária.

Em meio à noite acordaste, sem acreditar
que ainda eram de fora os ruídos no casco.

Um espectro rondava teu sono e teu sonho
um espectro te vestia de escravo bisonho.

Quem foi teu cruel feitor, ó pobre escravo,
que te amarrou a esse barco tão solitário?

Tu não sabes que é toda escura a tua pele
não tens um espelho, e olhos tu não tens?

Se conseguires remar por todo o Atlântico
pensas que no Brasil hás de ficar branco?

Ora, em meio à noite escura, são tubarões
tubarões que estão trincando o teu casco!

Soltam crustráceos como se fossem iscas
chamando salmões, dourados: tu és bisca?

Vamos dormir, meu irmão, é mais que hora
são apenas tubarões que rondam lá fora...

Que eles te possam comer as três pernas
ou essa mão pendente, qual a diferença?

Essa mão pendente, Klinck, nunca foi tua
e pernas tuas não tens, apenas um barco.

Meu irmão, dorme agora, dorme ó irmão
a meio palmo de ti é apenas um tubarão.

Eu estou aqui em São Paulo, fora d'água

ferinos fantasmas rondam minha mágoa.

Vou cantar para nós uma canção de ninar
vou embalar tubarões com nossa cantiga.

Minha voz será como a voz das sereias
minha voz nos dará logo brancas areias.

Dorme tu no embalo das ondas, tranqüilo
estrelas há, praia existe, escuta a cantiga.

Eles não têm pernas, esses teus tubarões
não são como os que me impõem senões.

Não estás tão perto quanto eu dos recifes
eu não terei porto em Goiânia ou Recife.

Dorme em sossego, dorme sem espantos
teu anjo voa a teu lado a cantar acalantos.




















          O indesejado das gentes

Onde está aquele teu tão ousado nariz
agora que tanto se recurva a tua cerviz?

Por que sempre de novo entregar o ouro
para quem te trata como cristão a mouro?

Não podes tratar como se fosse o teu pai
esse bandido que da tua estrada não sai!

Por que tu fincar pé aqui não aprendes
nessa terra que tem dono e que te tem?

Olha pro vento que sopra por esse canal
vê que é apenas um vento, não vendaval!

Não basta ter apenas mão e ter enxada:
tu precisas dos pés, precisas de estrada.

Não basta apenas ver a foice mais feroz
na dança da foice no escuro perdes voz.

Mais que foices e mais que mil traidores
eles têm tanques de guerra para as dores.

Aproveita que o vento ora parece amainar
toma o caminho do mar, busca outro lugar.

Mesmo não tendo sentido o mínimo herói
sangue move a história, ossos teus já mói.










          Dor de cotovelo II

Tristeza infinita o teu peito invade
ontem perdeste a mulher amada
aquela que com a negra melena
invadiu tua cidade como Helena
enfeitiçou tua barba de São João
fez de ti um deus, fez de ti um cão.

Rios de sangue, lodo e tristeza vil
navegam em teu corpo já extinto
arrastam o cadáver do que serias
como se nas noites do teu outono
pudesse ainda haver luar e sonho
pudesse haver prata em tua lagoa.


























          SP - 85

Eu vi o caixão de Tancredo Neves
passando pelas ruas de São Paulo.
Eu vi o povo parado e chorando
ao longo das ruas de São Paulo.
Quilômetros e quilômetros de gente
milhões de gentes à beira das ruas
todas em silêncio, todas chorando
enquanto passava a perdida esperança
como se esse morto fosse a esperança
como se a deusa pudesse ser cadáver
como se a deusa pudesse ser enterrada.
Eu sabia que tinha de sair da cidade
e ninguém chorava aí a minha saída.
Eu também era um cadáver a chorar
era um cadáver a olhar outro cadáver
e ninguém via em mim uma esperança.
Invejei o morto, cuspi na metáfora
mas era o mesmo Brasil que morríamos
era a mesma perdida esperança que
víamos todos passando num caixão.



















          Vai, lavrador

Vai, ó lavrador, arar o teu campo,
à moda antiga, atrás dos cavalos;
tu não tens trator, trator não terás:
come desse pó, bebe do teu suor.

Nesse campo tens sepulcro e lar
dia após dia, até tudo se acabar;
cede lento à passagem do tempo,
pede o pé ao grão, espiga ao pé.

Ano após ano rolando essa terra,
nela te enrola, ela é teu cobertor;
a pé e a cavalo destrói a tua dor,
o milho mói o cavalo, mói teu pé.

Uma dia alguém tomará teu lugar,
alguém fará tudo o que ora fazes:
outro será pó ao pé do pé de milho,
outro irá sorrir nessa mesma trilha.

Mais que tua hora, agora é tua vez,
ora, o mais difícil é sempre o agora:
mas já tens campo, cavalo já tens,
é tua a tua sede, o milho e teu suor.

Em tua miséria sorrindo, alto, claro
sem dentes, tua escolha no agora:
mas ora tu já és teu próprio cavalo,
ara teu campo, teu sangue e suor.










               Na trincheira
Tenho um par de filhos que me sustentam
acima desse mar de errâncias e amarguras;
elas brincam comigo como se fosse ventura
ter um pai que apanha onde se apresenta...

Sei que os sorrisos deles são ainda faceiros
quando à tardinha nos reunimos fagueiros;
sei que nossos sonhos não estão enterrados
por causa desses filhos pequenos, adorados.

Sei ‒ isso de perder emprego após emprego
isso de ser xingado pelas costas e por jornais
isso de ouvir ameaças dia e noite em segredo
é repressão que fere e não nos intimida mais.

E um dia nós ainda vamos conseguir reunir
as duas pontas dessa vida partida, criar juízo
voar na estreita nave de nosso primevo povo
encontrar no seu olho o ovo, no velho o novo.

Meus filhos, perdoai o que ora convosco faço
fazendo-vos sofrer sem mover um só braço
fazendo-vos sentir da repressão o duro aço
perdoai, meus filhos, não sou só eu que faço.

Vigio agora o vosso sono, já deu meia-noite
noite adentro revejo as linhas do liso açoite
incauto me lancei em linhas inimigas, avanço
vencido sempre, Brummer, sem descanso.

Quero saudar aqui remoto e improvável dia
quando um de vós ler essas parcas linhas
para pedir compreensão ao anjo da profecia
do passado para o futuro: saudades minhas.

Sei que ‒ com razão? ‒ o sistema me maldiz
sei que não lhe serve o que esse pobre diz
mas sei que tenho de batalhar por nosso pão
e sei que teria de acabar a atual exploração.

                    Salamandra

Enquanto labaredas consomem teu corpo e tua alma
no prédio que tua ilusão ergueu à beira do sol poente
amarraste a tua escrivaninha com o cadarço do acaso:
alguém pergunta antes de novo te arremessar pelo ar
quanto há de resistir essa tua carne tão frágil, tão fraca
quando ela há de tombar de suas tão frágeis pilastras?

Já está todo em chamas o teu apartamento paulistano
já se foram os teus livros, teus melhores companheiros
o piano em que dedilhaste dós e lás, mis-mês, sis e sês
já se foram as coisas tantas de que tanto carecemos cá
não há mais fogão, geladeira, prato, prata, copo, talher
o rato levou, o gato comeu, fumaça virou... a culpa é tua!

Já que tudo se consumiu, já que até os amigos se foram
tu precisas agora perguntar se ainda vale a pena salvar
desse naufrágio o tinteiro e a pena, a mão da amizade?
Tu perdeste o emprego, o projeto social, a esperança
nem mesmo um pai te restou para salvares dessa Tróia
contemplas antigos colegas a galgar postos, e tu bóias.

Ah, esse brutal cansaço que ora te consome e te devora
esse cheiro de carne gentia tostando na festa indígena
tu e mais alguns sendo devorados nas chamas do agora
até não te restar mais nada exceto uns dentes cariados
sorrindo em meio às cinzas, colares no peito do inimigo:
num sorriso tu hás de te devorar e sumir, gatão de Alice.












          Sub tegmini fagi

Não tens mais grande ansiedade, nenhuma
o que se puder fazer nesse dia, isto se fará
e o que não se puder fazer, isto não se fará.

Sub tegmini fagi, aí hás de tocar a tua flauta
apascentar teu gado, abolinar linda pastora
esperar o Messias, alardear quem te adora.

Não sei se um dia não hás de sair de baiana
cheio de babados, com a saia de uma saíra
para dançar no baile do emir, sem mais ira!

Com tua simples flauta de bambu, uma flauta
a sugerir rimas safadas, muito além da pauta
hás de passar teus dias, ó acomodado nauta!

Bucólico, hás de desprezar o escritor escroto
o que escreve louvando e ocultando o esgoto
crocitando com corvos como corujas no goto.

Hás de ficar no campo soprando o teu bambu
acompanhando no ar o vôo de um real urubu
como se derrubasse Mirages e teu negrume.
















               A opção

Não mais hei de comer da fascista farinha
não mais hei de recurvar a minha espinha
hei de comprar dez hectares de terra plana
lá terei liberdade, palácio, trabalho e cama.

Longe dessa louca São Paulo, bem longe
aqui só me resta escapar de ser explorado
para outros homens explorar, ser invejado:
louco estou eu por preferir vida de monge.

Mais uma vez sentir a garra da opressão
deixar-se impor a ganância a todo custo
aceitar a antiga lei do pirata e da piranha
ficar sempre quieto, dizer apenas mu-mu?

...

Não, nem no campo liberdade eu terei
também lá vou precisar de agulha e sal
hão lá de chegar os tentáculos do polvo
não terei paz, e netos meus nunca verei!

...

Só me resta ir embora do país, pra longe
para onde houver maior igualdade social
serei prisioneiro dessa estranha escolha
longe do povo, dos pais e amigos, longe.

Aqui, ah sim, o que resta aqui é lutar-lutar
é apanhar por todos os cantos do tablado
sem ter forças, hoje, para poder enfrentar
a dura garra da ganância, do lucro privado.

Esse povo teria muito ainda que aprender
mas não quer aprender sequer igualdade
não tem jeito de exercer maior liberdade:
o fantasma do medo faz-nos agora correr.

               Viravolta

Deixa-me esquecer que por tanto tempo te amei
deixa-me esquecer que tantas vezes em ti vibrei
deixa-me esquecer que nossos olhos se miraram
deixa-me descansar, talvez sob folhas de figueira.

Nunca mais quero lembrar que em ti eu me perdi
nunca mais quero passar noite em claro só por ti
nunca mais quero ter na carne o teu claro enigma
nunca mais quero decifrar o teu obscuro estigma!

Quero agora recolher os meus pedaços esparsos
como um tropeiro que recolhe seu gado no campo
quero apenas remontar o antigo quebra-cabeças
até encontrar novamente o meu coração em festa!

Canta, meu pobre coração, canta ó peito partido
melhor só do que mal acompanhado - dizem-te aí
melhor ficar se recompondo que se decompondo
melhor a cirurgia do que a permanente sangria!




















               O impasse

Três claras pancadas em teu peito de vampiro
e uma simples estaca de pau em teu coração:
já sucumbes, já te vais, já impera em ti o Não
já não poderás mais soltar esses teus suspiros
já não poderás mais sugar na vila as donzelas!

Ó vampiro secular, vai-te, não vales mais nada
o sangue de nós sugado é teu, já está perdido
mas tudo o que dele fizeste agora aqui acabou
não mais beijinhos na nuca, mordidas, êxtases
não mais longas loas nos jornais, ah não mais!

Com a mesma cruz que sacrificou seus filhos
esse nosso povo, com toda sua miséria e furor
com essa mesma cruz ele irá espetar o esperto
irá acabar com a tua raça e todo o teu séquito
irá te jogar sempre nas águas salobas do mar!

Triste sina a tua, vago vampiro, triste sina a tua
com tuas asas em delta, teus castelos e peões
triste sina a dos teus uivos em cio noite adentro
o povo campônio ainda olha fascinado o castelo
ainda bate palmas para o carro em que passas!

Triste sina tua, vampiro, com tuas asas ladinas
três tristes tigres jazem vidrados nessa neblina
as crianças tossem madrugadas sem carinhos
milhafres rondam os ares, te açoitam, tosquiam
mas essa terra não terás, e não as tuas cinzas!

Se essas linhas que a madrugada já desalinha
ao menos alimentassem esse povo tão pobre
para acabar com essa triste ladainha do agora
poderiam fazer da tua pele tamborim ou cuíca
e tu saberias, afinal, por que te supões vampiro!




               Festa paulista

Nos anos oitenta no salão Bandeirante do Hilton Hotel
grande festança em homenagem ao Senhor Lipphorn
por milhares de fiéis serviços prestados em São Paulo
para instalar indústrias alemãs e modernizar o país.
No peito a Grande Cruz do Mérito, para alguns o alvo
predileto alvo do chumbo vingador da teuta espoliação
abrigo de antigos nazistas, espaço de uma redenção.
Jornais presentes para entoar glórias ao empresário
capaz de arrancar o país do seu atraso pré-industrial.
Solícitos garçons a servir canapés ao som da orquestra
empresários nipos, americanos, artistas, governantes
mas o povo pobre não tinha aí nada a dizer ou fazer
também não o operário do ABC, sequer algum olhava
pelas portas de vidro para peixes de Proust no aquário.
Todos batiam palmas à palpável medalha num peito
na rua se arrastavam mendigos, ladrões, prostitutas:
tuas mãos impotentes, na direita um uísque com gelo
enquanto a esquerda no bolso sangrava tuas unhas
erro do conviva errado na festa errada em errado país.




















               Buscando paz

Quando nos converterem em meras resmas de papel
quando nossos amores e amoras forem apenas tinta
então... nem sequer então haverá paz para tais papéis
haverá apenas sufoco, silêncio forçado, cuspe, olvido.

Estás em oitenta e cinco sozinho pela dura São Paulo
sem ter ao certo onde começar o que quer que seja
depois de perder a venia legendi no público e privado
tendo de amparar filhos enquanto precisas de amparo.

Uma certa garra fascista ainda ronda por toda a parte
quem não serve ao Sistema não presta para mais nada
vira casca de amendoim, no chão jogada, depois pisada
até não saber mais pra quê existe, ingraçado Malazarte.

Escreves teus versos como outros beberiam sua pinga
a mão do Desespero te oferenda em concha sua pérola
prisioneiro do presente postergas parcos companheiros
não estavas pronto para tanta batalha, tamanha derrota.

Traços de mel lambuzados em pratos vazios, porcelana
cruzados armados jogam no chão ídolos do deus pagão
"vai-te embora" lês bem claro num sonho sem redenção
sangra no chão a porcelana quebrada de Copacabana.

Tu pensas que pilantras aparecem nas colunas sociais
mas teu futuro aponta para o nada ou páginas policiais
mendigas que um senhor te queira comprar bem barato
preço de refugo de mundo terceiro, quase nojento sapo.










               O inimigo em nós

Poema, ó consolo da tua impotência, ora eu te maldigo
não és pistola de certeira mira, não atiras como coronéis
não és pão de espiritual padaria, não alimentas irmãos
não garantes cartão de emprego na paulista academia.

Poema, se consolas, não és o lavolho de grã impotência
não és nenhuma vitória contra o garrote, a garra e o aço
um grito contra bandidos que ora te triturem e te açoitem
um sentido para quem como tu não tem sequer aonde ir.

Judeus também pensaram não haver gás nos banheiros
ou cantavam quando solenes para a morte caminhavam
e judeus foram expulsos em noventa e dois da Península
agora é a vez dos teutos na ibérica província brasiliense.

Perus desnuda um imenso cemitério de presos políticos
aviões militares jogavam corpos no mar, e teus poemas
eram impotentes então como serão impotentes amanhã
e hoje eles não resolvem teu desemprego nem tua fome.

Nada mais ocorre por acaso nessas vilas tão vãs, jamais
por trás de paredes outros já decidiram sobre teu destino
decretaram tua paranóia como consenso mínimo do real
és gado de corte, pela dor marcado, não te salva o poema.















          O passo possível

Eu faço o que posso
e o que posso — é tão pouco

mas feito um chafariz
que diz o que não quis

sempre foi mais que demais
o teu nariz entre sais e ais.































          História da carochinha

O Imperador de Boapinta descansava em seu castelo
de tanto nada fazer: daí soaram pancadas de martelo.

Dos lugares mais distantes vinham peões chegando
dizendo que tinham exigências para acabar o pranto.

Para o Imperador eram sevícias todas essas notícias
como podia o povo ser tão ingrato em eras propícias?

Não sabia o povo que por ele se preocupava o senhor
dia e noite, noite e dia, só por seu fiel e gratuito amor?

Houve exércitos derrotados, houve campos calcinados
e esposas e filhas a dormir com cortesãos malsinados.

Já se pode hoje saber o que será do país quando peão
deixar de ser peão e comandar o carnaval e a estação.

Não se terá pena do imperador despenado pela cidade
no império da necessidade não se tem mais dignidade.

Ele pode consolar-se com alguns amigos, bem poucos
ele pode escrever para o futuro uns fragmentos loucos.

Das amantes que o abandonarem, nenhuma saudade
eram amantes, não amadas, eram já passada verdade.

Quando ele souber que até o seu velho pai o despreza
não precisará mais lamentar o que o liberta dessa reza.

Já não saberá mais o que fazer com a sua própria vida
mas ela já era sempre inútil, só de ilusão não carecida.

Sem seus antigos aliados, não terá novos camaradas
no castelo interior da amargura há açoites às carradas.

Poderá até saudar em sua mão o brilho fatal do punhal
poderá preparar sua carne para um rubro e tinto sinal.

Se visse com fome a um antigo escravo, será que teria
mais que pelo filho à morte chorado, será que ele teria?

Fácil parecia o tempo em que o poeta pelo rei delirava
ainda mais fáceis os tempos em que o peão se cantava.

No Brasil se ouve do amo: é meu esse palácio, só meu
e noutro país: é só das mãos que o ergueram, não teu.

Eu te vi pelas ruas, com as mãos decepadas, sangue
semeando como se dele fossem guerreiros brotando.

Agora, cotos amarrados à enxada, batatas plantando
tu não és novo Aleijadinho, profetas de pedra armando.



























          De profundis clamabat

O Destino nos toma em suas mãos e nos arrasta
nos arrasta para onde não quisemos, queremos
e a esta estranha força do Fado, estranha força
a passar feito patrola em nossos sonhos de pobre
força que vem aflorando minas d'água no olhar
a essa estranha força chamamos aqui de Destino.

Mas será que se podem chorar plantas soterradas
ou será que se deve beber dessa água que escorre
das veias abertas que a terra nossa hoje escorrem?
Das plantas podres nada mais restará senão adubo
só assim elas ainda renascerão, só assim elas serão
mas será que só nos resta esperar como as plantas?

Será mais forte que tudo o impulso da ganância bruta
a percorrer indômito a ex-pátria nossa amada e gentil?
Como podemos dizer que vem apenas de fora a força
essa força que chamamos Destino... que chamávamos
e que agora talvez tenhamos de chamar... re-clamar...
Será que ainda veremos o Sim debaixo de tanto Não?

Nesses tempos de tamanhas tremendas carências
nesses tempos em que carecemos todos de carícias
nesses tempos de fome em que não se vende poesia
como há de se manter uma caneta em mão soterrada
como há de se manter aceso archote em mão cortada
como há de se caminhar em compassos tão trôpegos?

Nem mesmo sabemos ao certo o que ainda há de vir
não sabemos para onde irá essa força a se expandir
não sabemos sequer onde moram os botos dourados
e mesmo assim nos cabe iluminar esse nosso agora
confiar em mãos vindouras, re-pensar antigas feridas
ajudar a encontrar caminhos... ajudar a encaminhar?





               Faciebat

Se tu fosses pura ausência
     não sei se já seria presença
          isso que ora é abstinência.

Um piano consegue revoar
          dedos tateando sons pelo ar     
          como se sons houvesse para soar.

O negro Aparício trabalha
             dia após dia numa fornalha
          fazendo a sua própria mortalha.          

Sons de cristal cristalinos
     sons dos mais lindos hinos
                mudos como o pobre Aparício.

Será que tu, sombrio camarada
     ainda hás de escutar Sheherezade
          Villa, Chopin e o tom da amizade?

Ou será que bem antes tenho eu
     de aprender contigo o que é teu
          Pixinguinha e Zequinha de Abreu?

Aparício, negro bom e sem memória
     continua descendo a ladeira da história
          mas mora na pensão da Dona Glória!

Vamos nos sentar ao sol poente
     escutar um violão mansamente
          um chorinho a descalejar a mente.








               Halley 86

Luciferina flor tão longe lá fora
     por que te propões implantar auroras
          como se flores ferinas não fossem noites
               como se noites não anunciassem açoites?

Sabíamos todos, ó sim, sabíamos
     que um cometa luzente passaria
          pela noite passearia a cauda em fogo
               iluminando lunetas, curando como o lodo.

Um astro luminoso e todo contente
     reluziria na noite do nosso tempo
          enunciando a noite dos outros astros
               mostrando a rebeldia dos inversos mastros.

Mas bem pouca luz nele se anunciou
     bem pouco a nossa noite se iluminou
          bem parcos ficaram os nossos projetos
               mais parcos ainda nossos grandes trajetos.




















          Ronda

Boa-noite ao meu filho eu disse
     como se para sempre me despedisse.

Na cama ele dorme, loiro em azul
     tão provisória cama, tão parco azul.

Angústia terrível me aperta o peito
     me assusta essa vida tão sem jeito.

Olho a noite vazia, olha essa noite
     nas sombras da mata ronda o açoite.

Um pinheiro travesso corta a lua
     esperança nossa tão avessa e nua.

























     Norman tells a story
Descendo a rua da Consolação
lá vem o nosso amigo Zé Mané
valente e bigodudo português.

Isso não podia acontecer não:
ele ouvia um pé atrás do seu pé
passo atrás do passo toda vez!

"Só porque passei no cemitério
velho cemitério da Consolação
já me acontece tal despautério!"

E sabe você, meu amiguinho,
o que foi que Zé Mané escutou
passo a passo atrás do seu pé?

Não adivinhas qual o tal vizinho
que atrás dele andou e andou
como se fosse sombra ou chulé?

Pois é, meu, um enorme pingüim
um pingüim-rei, grandote assim
ia andando atrás do seu Zé Mané.

Zé Mané desceu a ladeira a pé
passou o viaduto, passou o posto
com o pingüim por detrás a gosto.

Na esquina da Avenida São Luís
Mané encontrou o guarda Assis
que com os braços abanava bis.

O guarda queria paquerar muié
mas o portuga tirou foi o boné
limpou a testa, disse: "Sou Mané,

sem meu sono todo eu não existo
sem o sono eu não sou ninguém
não dormi direito ontem, e insisto

não sei se é verdade, se é sonho
mas por favor, olha atrás de mim
vê se não está aí um big pingüim

todo de preto e pé de pato vestido
será isso quiçá gigante pingüim
ou apenas uma freirinha nanica?"

"Sim, disse o guarda, logo atrás
parlando com um casal de patos
um pingüim de fraque e sapatos."

"Seu guarda, isso não pode não
aqui em plena rua da Consolação
um pingüim parado na contramão?"

"Não está na contramão, pois afinal
eu multo todo o mundo nesse sinal
sou criado democrático, não liberal.

"E agora, seu guarda, o que eu faço
com esse pingüim caído do espaço
que já me seguiu por todo o pedaço?"

"Ah, portuga, parece mais lógico
você dar uma volta no zoológico
levar lá esse pingüim antológico."

O bom do português agradeceu
atravessou a faixa de pedestre
caminhou até o Mario's Museum.

O estranho e surrealista pingüim
despediu-se logo dos patos assim:
"O pobre está precisando de mim!"

Atravessou a faixa de pedestre
cruzou frente ao Mario's Museum
saudou a uma estátua eqüestre.

Desceram a Ladeira da Memória
entraram na estação do metrô
pagaram a catraca com um alô.

É, atrás do Mané seguia o bichão
entrando na mesma composição
e se sentando no mesmo vagão.

Todos olhavam de olho arregalado
jamais tinham ai no metrô avistado
um pingüim num banco assentado.

Teve até um enorme dum criolão
que se pôs a assobiar uma canção
para espantar essa assombração.

Mas era real o que todo mundo via
era um portuga em boa companhia
percorrendo a paulistana metrovia.

Na Sé tomaram o metrô Jabaquara
lado a lado, sem se olharem na cara
comuns se não fossem coisa rara.

Um que só via o pingüim de costas
logo pensou fazer novas apostas:
"É de criola que o português gosta".

...............................

Quatro horas depois o Mané voltou
e o guarda da São Luís encontrou
e este, lampeiro, o pingüim avistou.

"Ué, seu Mané, tentou o zoológico?"
"Pois pois, foi lá que eu fui, é lógico!"
"E agora, meu bom amigo ecológico?"

"Agora ao Play Center com ele vou!"
E num táxi que o guarda daí chamou
o portuga com o pingüim se mandou.

          Peregrinatio portucalensis

Eram três horas da tarde quando o velho Dom Nuno
Dom Nuno Álvares apeou do pétreo cavalo Nenhuno
e veio parlamentar com um pobre exilado brasileiro
perdido em Cascais, com mil cascavéis no trazeiro.
"Vós, com vossa vitória nos campos de Aljabarrota
determinásteis não só de Portugal toda a rota rota
mas até a língua da terra de nossa patente derrota.
Vou agora para um país, dizem, alemão e socialista
para a dupla desgraça, dizem, de teuto e comunista
como se na dupla negação se refugiasse a salvação
um recanto onde se pudesse não dar tanto na vista.
Afinal, nossa vista nua, espancada, virou vista roxa
mas no labirinto do hoje parece mui claro o caminho
parece e não é, enquanto nos varre imenso ancinho:
a carne queria ser pedra como tua carne já é pedra.
Ai, pobre de mim, fico aqui dos olhos rubis jorrando
enquanto até os mortos no Brasil vão se estrepando
enquanto a mó da estória segue sem dó atropelando.
Ainda ontem, em Fátima, vi os meus joelhos ateus
reunidos com joelhos miseráveis de todo o mundo
deles rezando para morrer em graça, meus apenas
querendo viver com um pouco menos de desgraça.
Que posso eu sassaricar diante da sarça de pedra?
Jacinto não sinto, Lúcia não reluz, a Senhora cala.
Não há céu nesse vale de lágrimas, locus a/mØnus.
As simples palavras em folhas de outono perdidas
não terão o poder de mentiras mil vezes repetidas.
Como não mais evocar aquelas princesas antigas
como propiciar com ventos maus novas partidas?
Em vão iremos depositar nas mais remotas geleiras
o favo e o mel de um testemunho já tão derradeiro.
Audazes guerreiros carneando mouros tamanhos
audazes navegantes dos tempos ora já antanhos
como erguer sem bronze monumentos estranhos
se não queremos um César da roça mas hermanos?"
Eis que a estátua de pedra falou ao teuto-brasileiro:
"Quem meu grito de guerra nesses campos ouviu
não ouviu apenas a liberdade da terra portuguesa
ouviu também a expulsão do mouro infiel, do judeu
viu o cruzado dos mares impondo a fé com espada

sendo crença apenas a nossa crença e nada mais
sendo lei nossa vontade e nosso império, não mais
com o braço e a lança, com o pinto e a esperteza
nós impusemos a nossa vontade na Colônia Brasil
só aceitamos conosco iguais a nós e servos nossos
não queremos o demônio da diferença, sua perfídia
queremos somente o que nós queremos, não mais.
Este teu pequeno gesto de encontrar companheiro
depois outro e mais outro, somar quarto ao terceiro
não vamos tolerar tal gesto que não seja só nosso
estamos prontos a carimbar com reforçado silêncio
quem quiser impôr diferença em nossa igualdade."



























          Mãos e promessas

Tuas mãos se erguem acima dos olhos
tuas mãos se erguem acima do tempo
mãos marcadas por cicatrizes antigas
mãos a perpetuar pendências perdidas
runas e ruínas de razões tão raivosas
carentes de carinhos, calos não calados
mãos a deplorar os pássaros perdidos
mãos se lamentando por todos os poros
enquanto esporos propõem promessas
pérolas e pérgolas de brilhos fatídicos
‒ será no fim monstruosa toda utopia? ‒
o mísero consolo dos nenhures tantos
razão nenhuma é tua última desrazão
caminhos de nuvens, vagos nenúfares.

























          Fragmento
...
     essa chama que teu peito habita
     é ouro de remota e ignota pepita
     é sol que em suja ribeira palpita
     é coisa em que só você acredita
                                   ...


































          Clareando caminhos

Aquela tua culpa não será jamais perdoada
     ela está em teu sangue, está em teu cérebro
          vem antes de ti, antes de tudo o que fizeste.

Eles te odeiam não só por possíveis ancestrais
     eles te odeiam mais por teus prováveis filhos
          e te fazem crer que és louco e não tens valor.

As rasteiras vão se somando, uma após a outra
     enquanto santos olhos ficam voltados pro céu
          sepulcros caiados a ocultar cadáveres ao léu.

E aos povos dessa América Latrina talvez só reste
     para arrancar uma promessa ao sol do amanhã
          assumir novo destino, romper o antigo chamã.
























               O artista da tortura

Com a torquês tocaste carícias na carne cansada do preso
depois do vivace do primeiro movimento dessa tua sonata
passaste para o adagio cantabile com toda paz e sossego
e por mais que te suplicasse o preso um prestissimo finale
tu passaste cada vez mais para um pianissimo ralentando
sem te importares com os prováveis ralhos dalgum capitão
incapaz de entender os sutis primores da tua arte e função.
Assim que podem, os presos caem no pecado do desmaio
de medo se enfiam no covarde abrigo da alienada loucura
da loucura calada, como se o silêncio fosse por eles falar...
E outros há que sonham poder um dia parar nessa prisão.
Um colega novato enfiou no preso o cabo duma vassoura
mesmo assim não ouviu nada que o capitão aproveitasse
berros e uivos nessas paredes não são mais que silêncio
paredes grossas, distantes, bem forradas e sem ouvidos.
Tu sabes que a tua arte tem séculos de uso por toda parte
mas parece que os míseros presos jamais irão entender
que aqui não faz diferença ficar calado ou de medo chorar.
Pouco importa que haja um povo que a bandeira empresta
para tanta infâmia e para tanta covardia: e importa o povo?
Tu sabes quanto vale esse povo e quanto valem os loucos
tu mesmo te crês o lado avesso e ignoto das fotos oficiais
na ciranda que dançam os enganos tantos de cada noite:
tu aprendeste a arte de bater na alma sem deixar rastros
mas aprendeste também a arrancar uma a uma as unhas
unhas de mãos que se dizem inocentes, mas garras são.
Dedilhar dedos em sangue com toques de mestre, isso já
exibiste nos palcos, mas é arte popular que tu desprezas.
Tens de manter firme a promessa de cultuares a tua arte
dando às gentes calvários para se iludirem com redenção.









          A Cristo no Horto das Oliveiras

De que adianta essa tua lenta agonia, ó Cristo no Horto
se tua agonia apenas facilita o trabalho pago do algoz
se teu pai já te abandonou, se teus discípulos dormem?

De que adianta agora essa tua agonia, antes da hora
se há horas tu já foste denunciado, se já foste vendido
e a dor da traição é bem menor que os trinta dinheiros?

De que adianta agora essa tua agonia se logo de manhã
hás de ver os rostos retorcidos dos que tanto te odeiam
a alegria nos olhares cheios de raiva, escárnio e rancor?

De que adianta apressar a agonia, antecipar-se ao algoz
pensar como será ser um rei, um rei coroado de espinhos
um rei a ser cuspido e surrado, um rei para ser renegado?

De que adianta essa tua agonia feita só de presságios
essa agonia feita só de pensamentos, justo nessa hora
quando já não precisas mais pensar, já pensaram por ti?

De que adianta agora tamanha agonia, se essa agonia
ó pobre cordeiro de deus, não há de trazer A Salvação
não há de redimir um mundo tão carente de Redenção?

Mesmo que fosses um deus - e não és um deus sequer -
toda essa tua agonia apenas do escravo um servo faria
e em teu santo nome quanto crime ainda se cometeria!?

De que adianta tanta agonia sem morro e sem oliveiras
se tivesse oliveiras poderias papar algumas boas olivas
se tivesses morro poderias avistar romanos guerreiros!

De que adianta essa tua lenta agonia, Cristo sem Horto
se tua agonia apenas antecipa em vão a tarefa do algoz
não redime a nossa falível carne, não torna vivo o morto.



               Temores e tremores

São tantas as cercas de xiquexique e arame farpado
são tantas as flechas e lanças fascistas apontadas
que é melhor a um boi de piranha catar outro lugar...

Confessa os teus tantos enganos, os filhos da fome
confessa que pensaste torto como é torta a tua vida
como é torta essa terra: mas é melhor o comer torta.

Bem que eu gostaria, logo agora, de me ir embora
mas como levar todas essas loiras e mulatas daqui
se elas não cabem num avião e eu não tenho avião?

Não podes sair deixando aqui o teu pinto perdido
a caminhar pelas ruas, a namorar donzelas na praia
como se não fosse comê-lo qualquer cusco faminto!

Ficar jogado de costas em serras, costas, encostas     
contar ao Leo as estrelas do céu, virar constelação
virar santo de pau oco, não dizer palavra, palavrão.

Quem sabe um dia me perdoam, me deixam voltar
na casa do pai entrar, deixar o filho pródigo festejar
como se, capado, pudesse ainda os convivas olhar.

Se no caminho fosse encontrar uma linda morena
da morena eu só ia querer mesmo a Pinga Morena
a morena do paladar, do bar, não a morena serena.

E se no caminho fosse encontrar uma lindosa loira
só poderia ainda amar as lindas loiras sem corpo
as loiras do copo, frígidas teutas, em copo teúdas.

Viraste constelação, santo de cueca samba-canção
santo de pau-oco e sem pau, um santo bem pagão
um santo que não se encontra em igreja de cristão.





               Galinha cega

Eu também quis colocar um tapete na sala
regar as plantas em vasos postos na janela
dar de comer a peixes coloridos no aquário
eu também já quis ser um cidadão normal
já quis que o meu trabalho fosse respeitado
mas obedeci a uma lei que não era do dono
e as forças digamos fascistas disseram Não
eu virei um idiota, uma galinha cega, besta.

Existe um bicho de casco, cheiro de enxofre
um bicho danado, antigo, rabudo e chifrudo
bicho que chega de chofre e mora comigo
tanto mora que já não sei mais bem agora
se ele já veio assim ou ficou assim comigo
se eu me tornei como ele, rabudo e peludo!

Ó Deus do céu, será que essa gente não vê
que reina o maior banzé em nosso bangüê
será que toda a gente ignora o que ocorre
será que todo o mundo está tonto há horas
não vê mais nada, exceto o que diz a tevê?

Que vida essa, ó povo, nesse canto da terra
quando tanto povo já não tem mais miséria
quando já podem conviver o lobo e a lebre
quando operário já pode até gozar férias?!

Para sempre estarei a teu lado, meu amigo
e do teu lado ficou, sim, mas do lado de trás
na maciota, e a tua honra mais que a perigo.

Tentaste acertar, mas só acertaste por acaso
já viraram tantos pelo avesso, bicho de casco.

Crês que ainda haverá veredas de salvação?




               Para os pósteros

Quando alguém cai e cai, rejeitado pelo sistema
pode ficar louco e furioso, ir contra as paredes
com vergonha de parecer fraco diante dos filhos
daí berrar com eles, por se sentir no íntimo falido.

Deixo aqui tão prosaico registro para que um dia
quando esses pequenos, que ora sofrem agonia
possam talvez entender e perdoar do pai a falha
sem reproduzir no lar a canalha tortura da malha.






























               Sulcos na mão

Enquanto miramos estranhos sulcos lavrados na mão
tentando decifrar os obscuros percursos da negação
prenunciam-se no Brasil anos de sufoco e repressão
como se a história fosse muda e não houvesse razão.

O pior é que sabemos que no globo em outra região
já se vive agora da história uma bem melhor estação
coisa que nós não viveremos nesta pseudo-nação
por mais que esfalfemos nosso peito e nossa mão.

Sulcos da minha mão, por que ter de ver em vós
apenas regos de lágrimas e latrinas da tanta dor
como se não pudésseis ser trilhas da esperança
e, mais que trincheiras, traços de boa mudança?

Sulcos da minha mão, por que só esperar em vão
por que só avistar na pétala da flor palor e ilusão
por que tornar ainda mais amarga a atual solidão
por que continuar aqui sem arte nem disposição?




















          Cotidiano operário

Dia após dia vejo meus dias levados por patrões
como se a minha vida não fosse vida nem minha!
Não, não é vida nem minha, espera sem espinha
esse rastejar comandado por duros espertalhões!

Não, não me faças pensar agora no adeus à terra
é tanta a tristeza, temo que exploda meu coração!
Não sei mais o que faria sem essas praias e serras
já é tanta a tristeza, não explodas o meu coração!






























          Os maus também morrem

Sim, os maus também morrem: nos faroestes.
Aqui surgem e ressurgem mais que as balas
no revólver do mocinho, até mais que as asas
nos volejantes moinhos e mais que as garras
dos monstros seriados dos matinês já fanados!

Ah, que podemos nós fazer com nossas mãos
diante de bandidos com disfarce de mocinho
nós com as nossas minúsculas mãos de anões
anões incapazes de escalar altas montanhas
nós que somos suspeitos de sermos bandidos!

Moemos e remoemos nas mãos a impotência
enquanto os dedos cavam e escavam a mina:
nosso pensamento lava em tinta tanto sangue
ressurge em roxo, vibras nas cores flamengas
se ilude com o riso do palhaço no circo em fogo.

Um palhaço empalhado, um palhaço empalado
um espectro de palha já pronto para queimar
tão só tristezas de um povo faminto e atrasado
rindo enquanto a pobreza lhe deforma o rosto
rindo enquanto olhos alheios flexionam o fogo.

Ai mãos, tão impotentes nesse picadeiro atroz
como encontrar caminhos para o nosso acaso
como fazer soar na platéia uma promissora voz
como não ser apenas um palhaço feito de palha
um palhaço sem aço, chama no ar, partida noz?

Duras vozes do caos, onde a duradoura doçura
onde transcender enfim a lei feroz do faroeste
onde não compactuar com uma ordem bandida
onde acalentar em paz uma voz já não banida
como dar a todos nós uma existência mais pura?




          Dependência e morte
Um farrapo de gente drapeja seus trapos
pelas avenidas de uma capital brasileira
desfila na carrocinha de papel e papelão
ele é seu burro, seu cavalo, sua bandeira.

Passamos indiferentes aí, como em férias
sujos trapos cobrem este ser já em trapos
para nós ele é a causa dessa sua miséria
ele mesmo é culpado por ser só farrapos.

De que adianta apenas uns poucos de nós
termos um fiapo de luz às cinco da tarde
se estão todos tão cansados, tristes e sós
tão esfarrapados, numa espera bastarda?

É sexta-feira, véspera de sete de setembro
o povo pingente vai em ônibus mambembes
enquanto os patrões descansam nas praias
repousam nos sítios, cuidam filhos e saias.

Após passarem a semana gerindo com arte
tiraram os ternos, são para a família ternos
podem escutar Bach e Vivaldi, ler um Sartre
podem ser liberais, salvadores dos infernos.

Nós arrastamos correntes por essas pistas
não temos tempo para sermos humanistas
estamos todos tão sujos, tão em farrapos
que até a alma é apenas fuligem e trapos.

De que adianta ter as mãos mais inocentes
se mãos inocentes são apenas impotentes
mãos que se sujam em papéis tão limpos
manetas e garras ocultas em luvas lindas?

Escorrem fiapos d'alma nas ruas da cidade
como se já houvesse nesta selva civilidade
como se misericórdia fosse a plena solução
como se houvesse redenção nesta geração.

               A fala e o falo

Tantas vezes te cortam a palavra, tantas tantas
que até te acostumas, que agora até já aceitas
quando um amigo te corta apenas três receitas.

É tanta coisa que aqui ainda não se pode dizer
que não seria exagero, não seria uma hipérbole
vermos aqui a strange people without memory.

Estenderam nossa língua ao sol sobre a pedra
puxaram uma faca afiada, a brilhar no arrebol
e com ela cortaram a nossa alma e a luz do sol.

Depois de um tal berro ninguém se manifesta
rápido se aprende que se capa quem protesta
os carrascos podem agora continuar sua festa.

Entre nós falam tantos malandros, santos calam
arrancaram as orelhas e as línguas encarnadas
nós mesmos já dissemos tantas coisas erradas.

Mastigamos o coto de língua que na boca pousa
foi mais que a língua que te cortaram na pedra
resta a perna e o pé, a estrada longe, peregrino.
















               É luxo só?

Tu cultivas uns pequenos cuidados, luxos congeniais
tu te entregas ao ranço de pensar problemas morais
tu pesas e pensas em tuas mãos teu frágil passado
tu acalentas o sangue que açoites ao vento levaram
tu pões na balança da dor cabelos há horas perdidos
tu cultivas pequenos cuidados: luxos no meio do lixo.

Talvez chegue uma hora ainda pior que esse agora
uma hora que o teu coração não mais há de saudar
uma hora em que mãos ostentarão mais que bisturi
cortando carne sem anestesia, recortando os ossos
cortando a tua ligação com a pátria amada e gentil
recortando o que já suportou tantos e tantos golpes.

Digas à tua carne, mesmo que ouvidos ela não tenha
digas à tua carne que é hora de agüentar tais golpes
digas à tua carne que ainda terá uma hora muito pior
ela não verá no Brasil os sonhos sociais de teus avós
não digas a ela que ainda haverá aqui terra de Canaã
não digas que um Maomé alcançará aqui a montanha.

No entanto não abandones a ilusão da esperança não
a esperança é agora o último resto que ainda te resta
nessa hora tão fora de hora, quando tanto já bateram
nessa hora em que o povo anda de cabeça tão baixa
nessa hora em que bandidos tantas vezes imperam
nessa hora não deixes a esperança na inimiga mão.












               São João Batista

Quando João batizava em terras de outro senhor
pregando o advento dum novo tempo e lenhador
a esperança flutuava no ar parado da sua manhã
com olhos alegres se mirava o pássaro cantador
uma criança batia palmas e sorria para sua mãe.

Hoje, irmãos paramentados em torno dum altar,
nós aqui reverenciamos nosso santo-padroeiro
mas nossas mãos precisam de luvas bem alvas
alvas luvas para encobrir mãos tintas de sangue
mãos mergulhadas na carne dum povo exangue.

Como se poderão perdoar os crimes sem nome
se não é com duas horas de palavras só faladas
que se há de abrir no país o portal da igualdade
que se há de abrir para esse povo o novo tempo
que se há de fazer do Brasil um grande templo?

Do escravo se fez o servo, do servo o operário
não sei se deste há de se fazer o pedreiro-livre
mas qual é a pedra que assentamos no templo?
Da fala de João se fez lúbrica dança em palácio
na farra de uns poucos se enterrou a promissão!

Já trocaram a tua cabeça por um par de pernas
trocaram alegres tua alta fala por um falo ereto
nessa dança tu imóvel no calabouço dançaste
alta noite foi o carrasco procurar-te na tua cela
e a tua cabeça foi servida em bandeja na festa!

Tua língua já não poderá mais a ninguém falar
ouviremos labaremos dançantes em teu olhar
e nos novos palácios, tu pintado pelas paredes
serás traído em teu nome, como agora traímos
enquanto alçamos alvas mãos aos altos cimos!




                Baile de máscaras

Nossas vísceras não têm ouvidos para ouvir
mas ouvem os inaudíveis tiros da guerra civil
e torturam com enfartes e colites espásticas
como se a tua alma fosse de matéria plástica.

Sabemos coisas que jornais não irão publicar
e no essencial procuram antes calar que falar
nos ocultamos em maníacas gavetas solitárias
mudas páginas d'amargo consolo, áridas árias.

Tarefa ingrata a da poesia desse nosso tempo
ao invés de erguermos um primoroso templo
ficamos presos à tarefa de sonhar e de resistir
sabendo que resistir não é andar, não é partir.

Os melhores, perseguidos; piores, promovidos
jornais cheios de mentiras por money movidas
tantos sepulcros caiados se movem aos pares
os gritos sufocados não se ouvem nesses ares.

Crânios estão cobertos por máscaras de ferro
parafusos apertam dedos em piques de berros
mas berros não se ouvem além desses muros
há tanta gente enterrada em pulcros sepulcros.

Berros não se ouvem nos mercados do prazer
onde nós estamos, nada mais há para se ver
num mundo inverso, nós somos os perversos
viramos mascarados, nada podem os versos.

Olhamos pela estreita janela da nossa prisão
as grades recortam no ar ausência e solidão
nem filhos teremos para uma espera franca
mas zumbe no ar a ameaça de Água Branca.

Frias pedras da prisão, tateio tuas paredes
minha língua sedenta percorre o limo verde
buscando como se já se pudesse cá buscar

como se soubéssemos o que há por esse ar.

Nossas unhas tateiam nas muradas paredes
riscamos orelhas em nuas paredes de pedra
a lepra corrói a pedra de estação em estação
as vísceras já ouvem, paredes ainda ouvirão.



































               Pendurado no pincel

A única escada que te resta agora são parcos versos
te penduras nesse pincel como se escada houvesse
como se risco em parede de hospício sustento desse.

Políticos já cantam agora mil loas a todo esse inferno
nós é que somos os traidores nessa tão ingrata hora
e depois estaremos ainda mais calados do que agora.

Será que há um caminho no além dessa encruzilhada
será que se pode encontrar de novo aqui uma estrada
marcada com cruzes, estrada popular feita à porrada?

O que vês é uma capoeira com pedras e pedregulhos
uma pseudo-estrada cheia de bandoleiros e bagulhos
safados de santo vestidos, replenos de fitas e entulhos.

É proibido crer que haja hoje tanta e tamanha incúria
um atropelo tão grande da razão mais razoável e pura
mas a tragédia segunda é fazer de tragédia literatura.

Nós pedimos apenas tolerância e uma estrada cordial
mas ganhamos um fascismo barato, para muitos fatal
como se não pudesse haver um caminho menos banal.

A única escada que ora tens são teus precários versos
como se eles fossem pontes sobre abismos perversos
como se riscos pintados fossem deuses bem diversos.












      Nova alegoria da primavera

Um deus esverdeado, de cinzas coberto
sopra por entre as folhagens da floresta
seu hálito frio, hábito da presente festa.

Gostaríamos de ver na dança das horas
surgir algum deus melhor no mostrador
um deus que soprasse igualdade, amor.

Se ao menos não fosse tão real o algoz
se ao menos fosse tépido o sopro atroz
se fosse mais doce da era o porta-voz!

Quatro deuses há no Uffizi de Florenza
mas não tivemos quatro companheiros
outono e inverno, qual o outro parceiro?

É um deus que tem um escudo no ombro
tem um brilho sombrio no olho, assombra
portador de espada, deus dos escombros.

Esse deus não deixa pedra sobre pedra
esse deus semeia sangue sem piedade
esse deus faz brilhar a espada macabra.

E o deus da primavera, deus do espanto?
Será que estará oculto em rubro manto?
Onde estará a estação do nosso encanto?

Que tenham piedade da nosso confraria
e se dela puderem ter piedade algum dia
teremos sido mutilados semeando alegria!

Um deus esverdeado, de cinzas coberto
sopra por entre as folhagens da floresta
sopra como se o sopro seu já fosse festa.




          Ciências

Tu disseste o nome
      mas o nome era tabu

tu pediste perdão
      mas perdão não havia

conselho de caçador:
      mata quantos puderes.































          Exílio interior

Na palma de tuas mãos brilha estranha luz
e onde quer que andes contigo vai e reluz
e ainda que entre os Andes andarilho fujas
ainda que recues para nordestino mar azul
essa luz ilumina em teu rosto rebelde ruga.

A essa luz podes confiar teu cansado corpo
com essa luz, ainda que ora cuspam todos,
podes esculpir em papel estranho rosto roto
na ruína ainda há de brilhar da runa o broto
na cicatriz ainda há de brilhar o alegre porto.

Rubra luz de tanto poente já falido-perdido
a iluminar ainda teus olhos gastos e garços
como se azul e verde tivessem em ti luxúria:
sempre do outro lado é que irá nascer o sol
prometendo resgates à alma quase fanada!

Exilado em tua pátria amada, já rechaçado
não te deixam ter nela um emprego decente
não sabes ao certo como pagar tuas contas
ainda que te esforces, nada mais encontras
tu tens mesmo de ver nas mãos o sol poente.
















          Mozart e Pixinguinha

Mozart, tu que nos ouviste demais, ouve isso:
foi um danado azar ter na guerra fria surgido
mas, para ouvir-te, valeu a pena ter nascido.
De tuas mãos brotaram harmonias tão exatas
paraísos se fizeram presentes, pontes postas
avançando para o além, homens sendo anjos.
De ti nasceu Pixinguinha, mas o nosso povo
ah, esse povo tem tão pouco da sua perfeição!
Hoje tocamos suas melodias singelas e claras
sons a ensinar soluções para nossos soluços
em meio à tristeza da miséria brasileira soam
e escutamos como se fossem possíveis aqui
como se o Mozart tivesse nascido em Parati.
Ó, será que vós melhorásteis a fera perversa
se feras fascistas vos escutam com encanto?
Trilhas luminosas brilham em meio ao lodaçal
nenúferes crescem entre águas do pântano:
será que te consolam tais clichês da poesia?
Ele optou pelos pobres, a morte veio a cavalo.
Uma planta distende ao sol a sua flor azulada
um gato distende as patas ao sol da manhã...
da tensão tens distensões em todos tendões.
O Inigualável queria igualdade para a gente
servo e prisioneiro dos reis, queria liberdade
e num tempo de guerra, queria fraternidade.
Sabemos que muito sangue ainda vai correr
pelas ruas e sarjetas das nossas metrópoles
na terra de Pixinguinha alguns ouvem Mozart
é terra sua também, seria terra de seus ideais
mas o seu povo faminto não escuta nada não.
Nos botecos de sábado não se escuta Mozart
já isso é razão para Pixinguinha Mozart tocar!







                    Retiro

Temos de nos preparar, desde agora, para aquela hora
em que o sangue há de escorrer por ruas e mondongos
em que ouviremos gemidos mais altos que os de agora
em que andaremos pelas sombras como camundongos.

Enquanto ora tudo vai se vestindo com celofane e ilusão
podemos cheirar de longe a gangrena do corpo caduco
podemos apalpar seus vermes festejando feito malucos
mas há de chegar a hora do corte e da grande purgação.

Olho para crianças sorrindo em jardins com altos muros
vejo namorados encaminhando de mãos dadas sua vida
vejo anciãos sentados na praça a conversar com ternura
mas quem se anuncia redentor antes parece um bisturi.

Tu mesmo pareces ser o verme, gangrena a ser curada
tantas vezes profere ameaças o telefone na madrugada
há um silêncio de espreita que não sabes no que vai dar
tu olhas teus filhos, tens de calar, ver para onde escapar.

As placas das ruas te impõem tantos tiranos do passado
mil mentiras se propagam pelos jornais, tevês e escolas
tanto nome safado comanda esse pseudo-país tomado
mas o povo famélico e mal formado aceita botas e solas.

Esse povo nunca soube certo o que é seu e o que não é
não serás tu quem há de fazer a redenção do rapado pé
enquanto a África ronda tua miséria, devora teu cuidado
só em filme se vê como se vive melhor, em país civilizado.










               Amores vãos

Ouço em mim a tua voz, e contigo quero estar
nós nos telefonamos, nos damos um lar no ar
porém uma filha pequena reclama ao teu lado
enquanto meu filho me mira e olha espantado.

Cenas tão surreais vão se anunciando triviais
há meses arrastamos um amor desencontrado
no entanto sabes que no país não viverei mais
tenho de ir para longe, o nosso lar está gorado.

Eu não quero forçar-te a uma espécie de exílio
me bastam esses anos tantos de interno exílio
tentei abrir estradas, encontrei apenas muros
agora vou embora, aqui não estamos seguros.

Sabemos que tudo muda com os anos tantos
mas são demais os anos, demais a desgraça
é vida demenos para tão espalhados prantos
me doutrinaste: não pertenço à brasileira raça.




















               Barraca

Com o lençol da cama fizemos uma barraca
nossos corpos nus se espiaram nessa mata
nossas mãos tatearam ternura bem safada.

Sabíamos que nosso mundo era provisório
nossos corpos não continham nossos ossos
tu eras a minha saudade, o meu ostensório.

Eu tinha de sair para uma viagem sem volta
tu tinhas tua filha, tua irmã, teu laboratório
meus ombros eram frágeis demais para nós.

Sabemos que aqui manda selvagem capital
nada nos resolve essa intolerância nacional
eu me perdi enquanto buscava estrada total.

Poderia tentar cuspir no que tinha pensado
poderia reconhecer os meus tantos enganos
poderia assumir um emprego só pro ganho.

Poderia entender que não valho meu sonho
sequer entendo o diabo que ronda meu sono
apenas participei em muito engano bisonho.

Melhor seria poder tanta miséria e erro olvidar
de mim não olvidarão porque não irão lembrar
ah, se essa barraca fosse a pátria, fosse o lar!












          Tempos "heróicos"

Sentei na beira do mato, me pus a cantar
como se o meu canto pudesse ajudar a...
mas o que é mesmo que queremos ajudar?

Medo, sonho, esperança ‒ palavras nossas
prisão, tortura, cassação ‒ tupis arqui-fatos
que aos poucos se tornam meras palavras.

Assobiando tentamos espantar serpentes
tentamos fugir das onças engravatadas
tentamos sobreviver na floresta de pedra.

Passaram as palavras, o canto e o assobio
não chegou ainda o tempo de poder pensar
sentado à beira do mato, pensei em chorar...

Crescem as fortunas, cresce aqui a miséria
não se salva uma alma num barco de papel
na beira do mato a fogo-apagou canta séria.

Não mais cá soltaremos nossas pipas reais
apenas sombras de gestos ínvios demais
um assobio sem som, eiras e fetiches fatais.
















               Convocação

Um dia ouviste alguém tão perto de ti falar assim:

"Companheiros, nesse momento em que a pátria
vê nela marchando oportunistas e mercenários
e quando tantos ajudam a revendê-la tão barato
entregando-a nos mercados do além do prazer
brasileiros, nesse momento do baixo-meretrício
nesse momento temos de ver com toda clareza
o sonho nosso de fraterna igualdade e liberdade!

Cada um terá de cumprir a sua sagrada tarefa
assim como o inimigo comanda em seus birôs
nós somos poucos, de fato somos tantos tantos
há inimigos a espreitar por soturnos caminhos
já espreitam a noite com fuzis infra-vermelhos
prontos a fazer uma limpeza bem humanitária
prontos a impor a sua ordem e seu progresso!

Companheiros, não temos promessa de glória
quando já é heróico conseguir aqui sobreviver
mas apenas sobreviver não nos basta agora
há uma dura tarefa, tão maior que nossa força
dar uma vida melhor para um povo tão carente
essa tarefa dá sentido a nossas vidas hodidas
não podemos vacilar, temos de nos sacrificar!"

O que podemos nós saber do vôo do pássaro
se não sabemos nós mesmos também voar?
A cenoura e o chicote ensinam, mas o burro
ah, o burro continua sendo apenas um burro.
O que pode um peixe nos ares senão voltar,
senão procurar de novo o mar de onde veio?
Mas minha mão se estende à tua mão, irmão.






          Derradeiros dias

Hoje pude brincar e rolar com meus filhos
pela sala montamos cavalinho, e voamos
fomos trapezistas pelos ares do mundo
fomos risos, risadas e boas gargalhadas
fomos tudo o que fascistas não queriam.

Sim, hoje eu pude brincar e rolar na sala
embora negra asa ronde nosso encanto
claro augúrio: dentro de poucos meses
não teremos mais sala nem alegria aqui
emprego não tenho, carência nos ronda.

Se emprego tiver, será bem longe daqui
posto em macabra lista dos macartistas
olho para as minhas mãos desajeitadas
não vejo nelas talento para meu sustento
planto palavras como sementes ao vento.

Olho para calo antigo no indicador direito
um calo feito de tanto segurar caneta Pic
olho para a mesa e o teclado da máquina
mas não consigo ser camelô de palavras
não consigo escrever algo que se venda.

Procurei juntar as palavras mais corretas
só não conseguem alimentar meus filhos.
Podem meus cabelos já estarem caindo
no entanto não sei como alimentar crias:
por toda parte muros, paredes e grades.

Alguma lista secreta circula entre "liberais"
o que produzes não tem ciência nem arte
longe e perto academias e universidades
não têm lugar para quem pensa como tu
talvez não tenhas nunca pensado direito.

Por toda parte uma obscura intolerância
ninguém há de pagar para tu pensares:

leio em raro devaneio tomos de filosofia
terei saudades desses livros e estantes

terei saudade dessa hora do desencanto.

Qual é o segredo que tens em ti guardado
que procuram matar em ti e tu não sabes
aquilo que restou de tanta seita esotérica
aquilo que faz de ti um aglomerado raro
que não tem valor e parece tão precioso?































               Devaneios
Alguma coisa há nesse ar que respiramos
alguma coisa nessa emanação dos corpos
alguma coisa que revoa sem fazer alarde
alguma coisa que destoa sem dar alarme.

Isso penetra e percorre poros sensíveis
perpassa por nós como se estivéssemos...
sim, presos e amarrados a uma cadeira...
uma cadeia de estranhos influxos febris...

Já não se sabe mais o que se faz por aqui
nessa cidade onde se corre, buzina, berra
como se correr, buzinar e berrar já fosse
mais que vestir-se de lata: humanizar-se...

Refugiar-se à sombra das pereiras em flor
deitar-se debaixo de árvores lá do interior
ouvir cantar os pássaros, cuidar dos patos
tudo isso parece melhor do que ser de lata.

Sonhamos tanto com violinos laqueados
violinos a sussurrar motivos bem suaves
não violinos a serem tocados com serrote
não sons de martelo, metralha ou garrote!

No entanto essa vida que levamos, gente
essa vida não é vida, não é vida de gente!
Se sabe disso no hemisfério sul, calamos
que se há de fazer, se se morre por nada?

Quando ouvimos música de Pixinguinha
aprendemos até a morrer mais depressa
lembramos: podíamos ter sido humanos
a pétala no chão relembra tua promessa.

Os nossos devaneios de párias do agora
vão fazendo em nós o jogo do noves-fora
vem uma donzela, cabelo envolto em flor
flor de laranjeira, lábios cantando o amor.

          Combate nas trevas

Mefisto, já que invadiste o íntimo do meu corpo
e instalaste o teu inferno bem cá dentro de mim
já que tomaste minha alma sem pedir nem pagar
já que nem sequer um pacto mínimo propuseste
que ao menos viessem versos em troca da dor...

Afinal, Mefisto, é preciso que tu não esqueças
que já não vivemos mais tempos tão medievais
hoje vivemos na economia (social) de mercado
e se alugaste meu corpo também tens de pagar
enfiar em mim espeto de pau também tem preço!

Não sei se posso ditar leis de igualdade no trato:
houve um castelo cercado, por tropa tua tomado
eu vi as mulheres e as crianças serem sorteadas
eu vi homens serem degolados, outros torrados
alguns sonhavam na prisão, outros com servidão.

Os libertos servem à mesa com grande gratidão
sei que é política a lei que impões à nossa fome
pairamos demais entre nada e coisa nenhuma
teus soldados e teu povo querem o nosso trigo
temos a alma fraca, temos o corpo corrompido.

Mefisto, tu bem sabes onde queríamos chegar
um pouco mais de igualdade, livre fraternidade
mas tu fazes o que podes para nos atrapalhar
talvez contenha um monstrengo nossa utopia
mas monstruoso é o solo que a gera: reino teu.

Nós não temos melhores caminhos, tu és dono
tu és o senhor de todos os caminhos e recantos
nós apenas pendemos nossa mão sobre a areia
arriscamos algumas parcas palavras no cerrado
o caminho que seguirmos: será sempre o errado.




               Dança macabra

Será que estamos vivos? Ou sequer nascemos?
Nesse hemisfério sul, mortos estarão os deuses.
Há tempos já cruzaste os mais sombrios portais
os estranhos portais tão temidos pelos mortais...

É da outra margem do Letes que ora contemplas
os teus filhos brincando tranqüilos com sua mãe
os amigos batendo longo papo na mesa dum bar
um cemitério todo de sonhos perdidos, sem altar.

Revês Caronte carregando almas fetais na barca
ouves sufocados gemidos catando parca piedade
de cócoras brincas com um galho dentro da água
como se pudesses sondar assim o grave mistério.

Atrás de ti se estende um longo e penoso deserto
percurso teu, mais longe morros se acotovelam
sonhas verdes penumbras, em névoas cobertas
e a ti restam apenas remotas covas de serpentes.

Vê aqueles que hão de sobrevir, pósteros amados
mas vê também verdes tropas desfilando armadas
brinca aí n'água, de cócoras, com esse galho seco
como se brincar n'água pudesse tudo reverdecer.

Nas ínfimas borbulhas dessa precária água suja
dançam tantos fantasmas, zumbis, vivos defuntos
erguem as suas saias misses caquéticas, bruxas
pululam gordos esqueletos se fingindo de lúcidos.

Quanto mais festejam, menos o quarup avança
mais nos tornamos um tosco tronco mal pintado
um mero tronco a balizar uma estrangeira dança
macabra dança a revolver o pobre corpo dobrado.

Será que ainda vale ora verter uma única lágrima
uma lágrima que possa aumentar do rio as águas
uma lágrima que busque estender ponte perversa

uma ponte que possa buscar a margem fronteira?

Não deixem morrer o deus interior, não deixem
há longos caminhos a percorrer em seu reino
há muitos mortos ilustres com ele a conversar
há muito bisneto querendo lá gente se tornar...



































               Sabá
Enquanto rolamos na lama e no esterco
uma lua toda suja nos olha zombeteira
piscando seu olho de antiga sapiência.

Sardônico olho num céu de iníquo azul
nos chafurdamos no esterco e na lama
redoando hematomas mil ao teu olhar.

Medievos demônios de longos espetos
passam voando entre nuvens e névoas
caldeirões em chama de dragão fervem.

Soturnos sabás de tão obscuras danças
estendidos na lama nós contemplamos
mil volteios dos feitiços e dos fantasmas.

Longe ecoam ruídos de aviões e carros
bondes passam passeando lembranças
fogosas prosseguem as míseras danças.

Nós nem sequer nos abraçamos direito:
é tanta agora a lama, é tanto o esterco
nossos corpos já não mais se estreitam.

Já nem sequer ousamos mais respirar
nessa noite com tanto enxofre pelo ar
já não ousamos mais do demônio falar.

Perplexos assistimos ao não-sonhado
um pesadelo jamais por nós desejado
estamos todos totalmente enlameados.

Não é só o corpo que se cobre de lama
na lama e no esterco chafurda a alma
sem ter esperança de um dia ser salva.

Ah, povo brasileiro, cuidado e cuidado
não deixe perdurar esse fascista sabá
faça surgir aqui uma grande alvorada!

               The birds

Pássaros do além rondam a tua cabeça
com gritos obscuros e gestos obscenos.

O que ontem fizeram excelsos deuses
hoje revoa a teu redor em gritos negros.

Não sabes o que aí se propõe de ponte
são rumores bem além desse horizonte.

Há uns poucos pontos obscuros e falhos
depois gritos mais gritos como de gralhas.

Pássaros pretos surgem em teus enredos
mas que são esses pássaros, tão pretos?

De tão escuros tu já não consegues lê-lo
e aos poucos vão te arrancandos os pêlos.

Já poderias notar que sangue te escorre
na tua pele vão pintando gotas grossas.

Ainda não sabes que doas o teu sangue
não sabes por que estás tu tão exangue.

A teu redor ainda há sorrisos e palavras
a umas paixões se submetem escravas.

Sangue empapa a tua roupa, o teu tênis
com certeza já capa também o teu pênis.

Não vêem mais que pássaros a revoar
como se só eles estivessem aqui pelo ar.

O teu parco sangue se inscreve na terra
letras estranhas escreve como em guerra.

Não sabes ler o que escreve o teu corpo
tuas entranhas não lêem, não tens porto.

Tentas decifrar o obscuro, cifras erradas
feres desconhecidos, perdes teus aliados.

Ó esperto, pensas que é amigo o inimigo
não vês que te devora enquanto te sorri!

Na letra do sangue esparso aprende a ler
pássaros de bico vermelho hás tu de ver!

































               A guerra dos tinteiros

Esses grandes sabichões que pontificam nas cátedras
esses grandes escribas que enchem não só os jornais
esses grandes sabonetes que iluminam os televisores
- ai santo Deus, quase não acreditas no que aqui vês! -
eles te dão às vezes vontade de vomitar até as tripas.

Tu já não agüentas mais tanta sabujice nojenta junta
dói-te ver teu povo enganado por tão safados pulhas
te queima nas veias o veneno que babam das canetas
tens vontade de sacudir ombros e chacoalhar cabeças
mas tu mesmo é que estás excluído do posto do saber!

Eles reinam lá do alto de santas poltronas e cátedras
só eles têm o direito de escrever nos grandes jornais
só eles têm espaço nos vídeos nossos de cada noite
só eles sabem das coisas,eles têm talento e vocação:
tu só tens desequilíbrio, já perdeste a razão normal...

De mãos nos bolsos segues assobiando pelas ruas
teus dedos contam dátilos, mas sem tinta nem papel
teu parco assobio se perde na barulheira dos carros:
tu não mereceste decerto lugar melhor que a calçada
não mereces gabinete e não deves formar gerações...

Todos sabem que agora se vive aqui uma democracia
tempos em que imaculadas mãos do saber no poder
democraticamente impõem silêncio ao conceito podre:
repensa os passos que te afastam do grande senhor
vê que tu mesmo estás podre, envenado, cheio de azia.










               Brasil, nunca mais

De olhos abertos, olhos de peixe morto, fixos no céu
de boca aberta, dentes rilhando, rebrilhando ao sol
costelas à mostra, corpo em esqueleto, viva caveira
a tribo com fome, uma lança nas costas: teu arrebol.

Tempos de seca, acasos fatais, cinzas pelos campos
na seca a sede de sangue, dedos em garra, vampiros
rebanhos de gente, cérebros encolhidos em cerebelo
gados de corte a comer cactos, reino do sonho morto.

E ainda perguntas por que sair desse Brasil-caatinga?
Podes sonhar com verdes, amenos, bucólicos prados
podes esperar as bênçãos das nuvens, poços de luz
como se pudesses plantar a esperança com tua mão!

A história de hoje e amanhã é o enterro da tua utopia
teus braços quiseram abraçar nuvens longes demais
tuas pernas não mais irão percorrer as colinas infantis
o céu mergulha em teus olhos rotos, olhos tão cegos...




















               Nota

Aqueles que espezinham esse povo
                                eles têm nome
                                   endereço
                                   ocupação.

Não podes comprar uma arma
não podes arranjar uma bomba
não podes aquecer as palavras
                                podes fazê-los parar?

Será que podes ter o know-how
será que podes arranjar partido
será que podes olvidar pancadas
                               podes inverter história?

Aqueles que espezinham esse povo
                               têm o teu nome
                                   endereço
                                   ocupação.




















          Megalomania

Meu irmão, tu imaginas que és rei
te vês levado em altos palanquins
multidão se curvando ao passares
(deve estar mesmo difícil tua vida
para te sonhares desse jeito real!).

Por toda parte propaganda adula
podes sonhar ser grande imortal
um anjo além desse podre agora
(do presente que não presenteia).

Mas todos os imortais já morreram
é apenas papel o que deles tu lês
(teu clarim de prata não tem prata).

Apenas os teus lábios vais morder
(com teus dentes a tiritar de medo).

Teu sonho tem monstros (avessos).




















          Palavras de mãe

Meu filho, o teu espírito está tão cansado
mas a gaivota bate asa bem perto d'água.

Se eu ainda pudesse carregar-te no seio
não sei mais como calar meu tanto receio.

Foram tantas as feridas que nos fizeram
nossos corações estão fartos de baterem.

Não nos basta apenas de rastros cá ficar
sermos só vegetais, não podermos pular.

A gaivota cansada pousa n'água, repousa
tu não podes gritar o que até bentevi ousa?

Joãos-de-barro dançam em álacre gritaria
e o pio da marreca bem longe se anuncia.






















          Na hora do pega

Duras palavras feriram o teu peito
teus olhos estão plenos de neblina.

Tu te recolhes em ti como estátua
o tempo te esconde sob fria pátina.

Uma preá foge assustada do fogo
um pingo relincha e corre fogoso.

Um vaqueiro recolhe sua tropilha
uma jararaca percorreu tua trilha.

Um joão-de-barro dança no ninho
e ao longe o fogo devora o capim.

Salve-se quem puder, ó natureza
aqui só rege mesmo é a esperteza.

Se não sabes driblar tempestades
não restará de ti sequer saudades.



















     Chlebnikov


Eu
     borboleta
          revoando vim
     para dentro da saleta
          da humana vida.


Desse meu pó
          preciso deixar
     na janela e na gruta
          um raro rastro:
     de um prisioneiro
               a assinatura.

























          Da janela do hospital

Fraco soçobra o sol entre desnudos galhos
despede-se o outono em Rostock.

Da janela do hospital eu contemplo o parque
folhas e folhas mortas em estoque.

Abandonei antiga vila dos meus pais e avós
depois para sempre vivi no exílio.

Saudade tenho, sim, uma saudade até atroz
com teve um Gonzaga de Marília.

Também no exílio se esvaiu o poeta Gonzaga
mas dele ainda restou a semente.

Já vejo o inverno nas negras penas da gralha
digo adeus a projetos em mente.

Entre pedras foi que caíu tua parca semente
só espinhos e abrolhos colheste.

Tu não sabes escrever na língua dessa gente
em vão sangue e suor vendeste.

Tua amiga não vem, não tens mesmo alguém
te acende uma vela no escuro.

Tão longe está o tal Brasil, perdeste teu tempo
ora pára de apostar no futuro.










Despedida

Tu propões aos deuses do agora
àqueles que amanhã serão lembrados
os teus pecados e a tua salvação:
mas os deuses nem sequer te ouvem
teus pecados não têm a forma certa
não sabem sequer ser um alerta
(se te ouvem, são outras suas palavras
e tens de repensar teus pensamentos).
Assim te calas enquanto suspiras
assim falas demais enquanto calas
enquanto acumulas pilhas de papel
rabiscadas com tinta azul ou preta
como se pudesses ter nelas salvação
e não estivesse a caminho o carrasco.
Tu és o prazer dos pequenos coveiros
daqueles que farão o teu sutil enterro
que irão entoar alguns cantos para ti
(...“adeus, querido irmão, adeus"...)
que porão pedras e flores em teu túmulo:
algumas pedras para não poderes fugir
umas flores para não apareceres mais.
(Ou, quem sabe, subirás tu aos céus
em urubus que limparam teus ossos?
- Não. Será com um aperto de mãos
que irão te enviar de volta aos infernos.)
A tristeza te invade feito um chuvisco
tua alma repousa em sua paz possível:
a teu ignoto leitor importa apenas o texto
e tu sequer sabes como poderás comer.










Desordem e regresso

Este é o progresso que vieram anunciar
este é o progresso que nós vamos legar
esta é a era de um império que não era.

Eu sou aquele que se deixou enganar
aquele que beijou a boca da traição
acreditou na clareza duns olhos anis.

Suspiros do verão, não vos renego não
para desperdiçar não há mais coração
os corações tidos já estão carcomidos.

Nada restou, restou sequer o olvido
tu ao relento soltas plumas ao vento
como se plumas fossem asas de anjos.

Cai a chuva, vai-se a pluma, velame
perdido, mera matéria disforme, vã
sujeira na grama, não um anjo no ar.

Apenas em antigos quadros europeus
ainda vais ver um anjo com um lírio
anunciar à Virgem vindouro Messias.

Digas a teu filho, vai viver na Europa
sai do Brasil, esta terra não será tua
despreza os passos de avós e bisavós.












               Um chileno em Berlim

Assumes o exílio, deixas cair as folhas do verão
não pretendes tu levar água ao moinho adverso
não vais te refugiar no regato de árcade pastor
não vais querer chorar outra derrota em versos!

Estás no exílio, sim, tu nada negas nem renegas.
não acabou ainda a tua munição nessa tua luta:
escondido em Berlim, grave escreves, escreves
como se as palavras tivessem alguma salvação.

Teu corpo ferido ainda pôde se arrastar na lama
disposto a disparar o fuzil onde sombras visse
(como se sombras pudessem ser transpassadas
como se tu nessa lama ainda pudesses rastejar).

Não queres levar água ao moinho fascista, dizes,
não queres regredir ao regato do árcade pastor:
no entanto lamentas a derrota, o destino do povo
e escreves os teus ais na beira do cais de Berlim.

Que te sejam propícios os deuses vindouros, digo
que possas ver uma estrada à beira do alpendre
que águas desse moinho sirvam a outros moinhos
que nos cabelos brancos haja lã e abrigo, ó amigo!

Estás a pescar no cais, à beira do Boden Museum:
atirado como peteca, viste companheiros mortos
em mãos enluvadas viste sangue, tortura, prisão:
olha ao redor as marcas das balas da Guerra Dois!

Naves antanhas perpassam em brancas nuvens
alvas formas, alvéolos do nada, olhares alhures
alguma coisa há de pintar no horizonte, tu crês,
digo-te adeus, me afundo nas águas que tu vês.





          À beira da Spree

Eles cuspiram e, mais que cuspiram,
eles prenderam, torturaram, mataram
mas continuam nos gabinetes do poder.
Cemitérios clandestinos de São Paulo
quais os sonhos em vós enterrados?
E quantos amigos tiveram de partir
sair para sempre da América Latina?

Tardes do verão, não vos renego não.

Parca e longínqua melodia, devaneio
avesso desse exílio, valhacouto pagão
pesca à beira da Spree uma parca paz.
O gato se lambe, vomita o perdido pêlo.
À beira do regato de tuas recordações
tu procuras olvido no brilho cristalino
enquanto os peixes temem teu anzol.

Tardes do verão, não vos renego não.    

Outros exílios se repõem, se impõem
tua companheira cansada do desprezo
partiu para sempre, deixou-te mais só.
Gestos antanhos, punhais da memória
sombras luzentes a escorrer na sarjeta
tarjetas de sonhos da tua adolescência
enquanto sargentos sujavam a história.

Tardes do verão, não vos renego não.

A bordo de um avião, voaste a Berlim
voaste como se te fosse possível voar
voaste como se Panair ainda houvesse
saíste como se saída houvesse, e aviões.
Aviões há, voam pelos ares, aeroportos,
avencas balançam na casa que perdeste:
tu não tens porto, paz não tens, não vôo.

Tardes do verão, não vos renego não.

Balançam avencas nos ares do outono
ao sopro de invisíveis ventos balançam
ventoinhas a aventar antanhas vestais
aventais a volejar interditas volúpias.
Ventoinhas do verão, toinhas do outono
não foi nessa Spree que flutuou a Sau
não foi aí que jogaram seo Liebknecht!

Tardes do verão, não vos renego não.

À beira do campo, à beira da floresta,
à beira, à beira da beira, bailam ramos
balançam rameiras em tua recordação
beiras tu, beira ele, beiramos todos nós
beijas a sombra do acaso que te salvou
beijamos nós esses nossos perfis tão vis
mas não beijam eles teu retorno à pátria.

Tardes do verão, não vos renego não.

Bicamos as beiras do acaso, do vento
bichos do estio, em tempos sombrios
bichos a tecer vida na colcha do acaso
bilros bichados, biblioquês sem Bíblia
a dançar nas garras do vento, ó bichos
folhas do outono a sonhar primaveras
há tantos cemitérios clandestinos no ar!

Tardes do verão, não vos renego não.

Esses tempos de vidas desperdiçadas
fontes do teu nada e de coisa nenhuma
pontifícias catedrais a pontilhar vidas
com muitos bemóis e sem sustenidos:
e tu ainda tentas, aí na beira da Spree
pescar o canto das sereias, ó pescador
quando sirenes gritam ataques aéreos!

Tardes do verão, não vos renego não.

          A jardineira do outono

Assume o exílio, deixa cair as folhas do verão
a jardineira já está a caminho com seu ancinho
ela há de formar um monte, há de atear fogo
de tudo restará apenas fumaça, fedor e olvido.

Lembras dos desenhos do teu tio, esquecidos?
Não mais incenso, aras santas, apenas folhas
folhas e mais folhas riscadas de negro e azul
como se assim pudesses encontrar salvação!

Aceita a paz da prisão, a cela imensa do exílio
fantasma a perpassar a noite latino-americana
a exibir do poder a garra, intimidando tantos
a fazer da tua vida uma vida perdida, sacana.

Coronéis e sargentos decidiram o que serias
decidiram acabar com o pensamento adverso
repetiram o gesto que construiu a tua pátria:
que podes fazer tu, ignaro e de parco verso?

Não te imagines no Cáucaso, novo Prometeu
não pretendas escrever constelações no céu
não te tortures com o gesto que impôs o déu
faz da escrita a graça do instante do adeus.















               O carcará do caos

Te acostuma à derrota, te acostuma ao fracasso
deixa correrem os anos, crescer o cabelo branco
ainda há de vir o dia da vingança - ou não vir -
se não vier, saberás depois o que se há de saber
ou saberás que não há nada a saber sem poder.

Tanto ora faz a vingança vir, não vir, tanto faz.
No presente, parece lepra o que tens na alma.
Não hás de desfilar essa tua lepra pelos salões.
Talvez queiras escondê-la em roupas da moda.
O horror agora nos domina, sufoca e perverte.

Tu procuras a tua imagem num espelho vazio
não sabes que apenas vampiros são espelhados
não os que querem caçar os dentados deitados:
tantas donzelas cantam pelas estradas do verão
tantos pescoços gostosos esperam o seu dente!

A fina incisão do dente na veia do verão alheio
o suave sangue que se suga como se fosse mel
o lenitivo de quem tem a eternidade e a noite
de quem dorme sobre a terra e tem tua pátria:
ó tu, paralítico do horror, sifilítico da castidade!

Donzelas do verão, onde está vossa contramão?
Onde a mão, onde? - Castidade não há mais não.
Doces donzelas a cantar por veredas de Portugal
requintes dos quintos, os tão benquistos quistos
vejo vampiros voando colados a alvos pescoços!

Suspiros de deuses antanhos, mordidas na nuca
caramanchões do outono, tão carentes carcaças
carcases do caos, carcarás sangrentos do ocaso
a carregar desconsolos dementes, cães do acaso
perspicazes profetas dos teus diversos pecados.

Extensos desertos de poeira e pedra, tua solidão
ou pássaros a revoar, mil gaivotas ao entardecer

peixes em cardumes, teus filhos a sorrir ao sol
petiscos e os mais lindos poemas a voar pelo ar
paisagens do verão, nuvens brancas, tua nudez.






































               Interdito

Por quanto tempo pretendes ainda esperar
diante dessa porta que não se abrirá mais?
Passa um dia, passa outro dia, passa a vida
mas tu não passas por essa porta interdita.
Nunca se abriu essa porta, nunca se abriu:
apenas tu sonhaste ao acaso com tua porta.
Não é porta, nunca foi porta, não será porta
tua vida perderás diante da parede do não.
Não mais te seduzam as promessas do verão
não pode ainda a procura de paz repousar.





























               O azul dos olhos teus

Nessa manhã azul de domingo passeias teu filho
pelas alamedas de tempos vindouros, carregando
contudo nas costas cansadas todo o teu passado.
Seria tão bom poderes decepar toda essa cacunda
deixá-la nalgum terreno baldio, numa lata de lixo
pedir que a recolham os calados lixeiros da cidade
dá-la de pasto para os urubus que tudo sobrevoam
que miram em ti a promessa de um cadáver adiado.
Seria tão bom poder voar por um céu ensolarado,
céu que existe no alto e não chega à terra do Brasil
carcarás patrulham o céu azul, o azul desse teu céu
te obrigam a voar para não te tornares todo pasto.
Podes separar o azul dos carcarás e o dos urubus?
Não vês o risco da espada no ar, a bala traiçoeira?

Nessa manhã de domingo, passeias com teu adeus
pelas alamedas dos tempos vindouros, fora do país.
Protege o teu corpo da lepra que percorre o Brasil
procura para teus filhos um céu sem tanto carcará.
Será que tens ânimo para sustentar por toda a vida
os perfis ousados em meio a tantos ocultos punhais?
Tens condições de ainda aceitar tua perene punição?

Cultiva a parca semente de uma estranha esperança:
há outros céus azuis, outros jardins, outras alamedas.














               Vai e vem

Uma carta que entra, outra carta que sai
mão que te acena, mão que já te destrói
onda que vai, onda que vem, vai e vem
dos filhos os passos a repetir compassos
dos teus pais os braços sem mais abraços.

Uma cidade se faz, ora um amor se desfaz
numa tarde de domingo, um imenso tédio
olhos se arregalam, bocas amigas se calam
beijos do verão, recantos do teu inverno
uns doces braços se tornando poeira e pó.

Teus olhares incertos percorrem avenidas
tu plantas árvores em alamedas perdidas
teus sonhos percorrem imensos desertos
planta aqui a tua saudade e tua ausência
planta esse resto que de ti ainda restou…

Vê se para a carcaça de um velho navio
após tantos mares e tanta falta de porto
ainda se abrirá um mini-golfo qualquer
para ele que já não pode mais navegar
e o fundo do mar não quer atravancar…

Se já não tens mais mares para navegar
se já não és mais um pássaro desse ar
se não queres ficar só entalado na areia
negra carcaça de um navio naufragado
procura a sereia que te há de destruir!

O sonho de encontrares um dia a sereia
uma sereia que faça de ti um náufrago
que te faça repousar em praia qualquer
que faça cessar a busca e o desencanto
este sonho te salva, e te mata o canto.

O que poderá fazer no entanto a sereia
com um navio tão pequeno e estragado
tão pleno de fantasmas e urnas vazias
tão repleno de catervas, crateras, cáries
tão vazio de bússolas, prumos e nortes?

Apenas o silêncio da sereia se inscreve
nessa negra carcaça que já na praia jaz
como costela de algum monstro ignoto
batida pelas areias, batida pelas ondas
só não pouso das gaivotas e dos ventos.

Das navegações grandes que se fizeram
que ainda se fazem nos barcos ao longe
outros são os canhões que agora atiram
outras as pimentas que nos porões vão
outras as porcelanas, vestes, mentiras.

Sossega, meu filho, sossega desde agora
nas ondas que vão, nas ondas que vem
tu já navegaste o teu próprio naufrágio
e se uma gaivota em tua carcaça pousar
somente com alva bosta ela irá te pintar.





















          O estigma no ar

Para o nosso amor um perene tormento
                essa distância
     entre os olhos teus e meus
faz estremecerem de frio nossos corpos.

Asas vou criar, vais criar, vamos criar
                e no azul do céu
     vamos dançar com andorinhas
até fazermos o verão com ninho e não.

Teu peito sangra tuas perdas passadas
                como cirurgião
     vamos extirpar nossos estigmas
e pincelar no azul a nossa pura paixão.

Eu suspiro, tu suspiras, eles não suspiram
                em horas incertas
     a decantar a fel desse tempo
nos alambiques lambidos pelo fogo feroz.

No peito se acena outra pedra perversa
                ó sagrado cirurgião
     onde estão tuas mãos de sangue
onde estará a luz da sarça mais ardente?















          Brecht em Roliúdi

Tu não irás a cada manhã, ou noite,
vender-te no mercado das ilusões:
ninguém te quer comprar, ninguém.

Talvez se vendam doces ou laranjas
talvez se vendam inclusive ilusões:
a tua virtude não compra ninguém.

No mercado persa do prazer pesa
mais quem pesa ou pensa menos
quem compensa o que se perdeu.

A dor que te devora, ó marginal,
essa não quer comprar ninguém
somente se quer algum melhoral.
























               Desterrado

Das terras mais belas tu foste desterrado
tu foste desterrado das terras mais belas.
Ou serão mais belas aquelas terras agora
só porque delas estás tão longe, sem terra?

Olha a terra que em torno aqui se estende
vê que nela há verdes, há frutos, há rios
nela podes contemplar uma flor no campo
retira dos olhos a grande ausência, fatídica.

Sossega, pois, essa tua tão tola inquietação
esquece amigos, amadas, amoras, amantes
esquece também teu pai, tua mãe, a irmã
deixa implantar nos olhos esse novo azul.

Vai depois ao mercado da ilusão, vender
vender sonhos que ninguém quer para si;
e sem o salário do mês logo vais aprender:
a tua pátria será onde estiver teu salário.




















               Achados e perdidos

Onde está o teu verão, onde a primavera?
Nada poderás replantar nessa nova terra?
Como podes sentir frio se calor já não há?

Lá longe estão todos os teus mortos, só lá
não aqui onde arrastas teus ossos cansados
como se já fosses a véspera do teu cadáver.

Lá não te quiseram, e não te querem mais
teus pais tu perdeste, teus irmãos perdeste
e ora parvo te arrastas por incertos lugares.

Se não tens o que comer na América Latina
faz a tua latrina em algum outro continente
teu verso vale o mugido de um boi no pasto.

Entre a morte do corpo e a morte da alma
podes decidir conforme decidas o teu país
enquanto contemplas paredes paralisadas.

Apenas o pão que os teus filhos precisam
decide apagar a letargia da tua alma letal
mover o teu corpo carente de fêmea fatal.

No frio calabouço d'alma, o corpo desnudo
fantasma da tua esperança morta e torta
o silêncio se faz, sem pássaros nem capela.

Palavras proferidas do púlpito alto e atroz
ressoam nas paredes replenas de ausência
pingam do teto da prisão que ora te alberga.








               Destino

Não há mais voz em tua garganta?
O que tens a dizer não se ouve mais?
Cala-te então, escuta obscura cotovia,
não tens aqui bentevi e sabiá fatais.

Escuta as flores, escuta a rasa grama
escuta estrelas, formigas a laborar
asculta o que rasteiro aí se estende
vê onde caíste, ninguém a te escutar.

Assume essa solidão da periferia
tu que perdeste a voz por falares
a língua te arrancaram, a fala dos
teus avós te roubaram, proibiram.

Projeto de um coração amargurado
a catar fragmentos de velhos destinos
impondo à pauta do teu peito ferido
outras terras, outros tons, outros sais.




















               Trio em lá menor

                    H= Homem; M = Mulher; C = Coro

H     Vem até aqui, amada minha, vem
     Vem até à parede do nosso tempo
     É hora desse amor morrer, é hora.

M     Nós somos hoje o que éramos ontem
     Nós somos hoje o afeto que nos reúne
     Nada mais somos sem a nossa paixão.

C     Perversa paixão, amor desencontrado
     A brotar onde não deveria ter brotado
     A provocar encontros sem ter direito.

H     Se eu sou casado e tenho dois filhos
     Se ela foi casada e teve já uma filha
     Nada disso impede um novo encontro.

M     Foi um raro sonho de adolescentes
     Acreditamos na paixão que se impôs
     Mesmo não querendo que existisse.

C     Um velho tema tão banal, tão fatal
     Desculpa de quem pula para o mal
     Transpassa a cerca portando punhal.

H      Não foi calculado, não foi planejado
     Brotou do acaso, em terreno fértil
     Como semente que teve a sua chuva.

M     Brincamos com fogo, sem bombeiros
     Nossos corpos já se tornaram um só
     Nenhuma distância pode nos separar.

C      Não há outra lei maior que a lei jurada
     Não se pode jogar com outros destinos
     Não se corre impune o palácio do prazer.


H     Não sou mais o mesmo desde que a vi
     Já morreu em mim o pretérito cidadão
     Já é outro aquele que nasceu das cinzas.

M     Nessas paredes onde o poder nos coloca
     Nesses muros onde já estive e já passei
     Nesses paredões não se amarra a alma.

C     Verme da terra tão pequeno e tão tolo
     Não há alma que sobreviva sem notas
     Isto sabe o carrasco das almas, o santo.

H     Tão simples o gesto, tantas vezes feito:
     Casa com a amante, descasa da esposa
     Recomeça a vida como se vida houvesse.

M     Por que a nós exigir mais que a outros?
     Por que não ser banal, happy e comum?
     Por que sempre adotar a pior solução?

C     Oh bicho da terra tão pequeno e tão tolo
     Olha quanto destróis tendo tanto a fazer
     Olha a alegria que já esvoa pela janela!

H     Sou um covarde, não assumo uma decisão
     Qualquer caminho logo se perde no ignoto
     Coragem é sustentar o silêncio dia após dia.

M     Tu, amado amante, não me amaste bastante
     Para fazer de nós mais que breve encontro
     Para seguir caminho junto depois do motel.

C     Para sempre juntos seguiriam, dizem agora
     Não o fariam na hora fatídica do sacrifício
     Na hora de imolar os sonhos mais prezados.

H     Acabam todas as palavras, não há salvação
     Ora mereço o desprezo dos olhos da amada
     Envolto em lençol mortuário irei pelas ruas.

M     De mim ele ainda espera ternura e consolo
     Enquanto se abriga nos abraços dos filhos
     E eu sigo pelas ruas solitária e amargurada.

C     Disparam os olhos da amada e os dos filhos
     Ouvem-se salvas de tiros como sua salvação
     Caem os corpos, cai o pano, caninos saúdam.



































               Pastoral

Aqui no meio do vale entre montanhas
contemplo ao redor as verdes florestas.
O sol da alegre manhã retumba o brilho
apascento na alma rebanhos em festas.

Estou à beira da água, longe das lágrimas
estou ao largo do fogo de qualquer paixão
sentado à beira do lago apascento ovelhas
com o cajado do pastor e a lei do silêncio.

Sei que há salões cheios de luz e panteras
desfilando lantejoulas em longos vestidos
cavalheiros em fraques negros como eles
brilham e rebrilham dentes em más feras.

Sozinho, à beira do lago, apascento solidão
guardo o bornal todo repleno de ausências
e abrigo no chapéu as brisas mais ligeiras
deixando flutuar ao vento a pluma prevista.

Doce pastora não alegra essa minha manhã
uma fome antiga percorre o corpo cansado
o idílio da solidão não amargura ninguém
sem louros nem palmas, procuro palomas.

Ao abrigo do vento, vou lançar o meu anzol
pedindo perdão ao peixe que irei devorar
feito uma fera enquanto suave contemplo
faíscas de luz nas leves ondulações da água.

Minhas botas repousam em folhas mortas
enquanto reúno galhos secos da figueira
esperando fazer brotar rubra, viva chama
como se houvesse alternativa à podridão.

Não cabe ao galho perguntar aos estalos
perguntar a esse vento frio que ora sopra
o que será do inseto que corrói a sua casca

se a seiva já se foi, a podridão se anunciou!

As folhas mortas já sabem a sua resposta
não gritam mais ao verde suave da manhã
abrigam essa serpente que ainda as busca
louvam a sua cor, estalam às suas costelas.



































               Consolo do frio

Nessa fria manhã está contido o consolo
não importa o teu queixo a tiritar de frio
deixa o teu corpo pintar-se de azul e roxo
talvez consigas assim aquecer a tua alma.

Aquece o teu corpo, esquece a tua alma
agora não há mais nada a fazer, a falar
agora é apenas hora de calar até calhar
tens no frio da manhã o calor dessa era.

Na beira do rio, na beira de remota fonte
num rio de muita água e nenhuma ponte
recorda teus enganos, vê como aves bebem
pobre mendigo do interior, não te querem.

Por que ficar à porta da catedral do saber?
Mendigar junto às portas da elite nacional
com olhos chorosos e mãos em rara súplica
se eles não querem reconhecer o teu deus?

Arrastas atrás de ti uma carroça de trastes
repleta de tralhas da tua ciência européia:
desconfiam de ti os sábios da terra Brasil
assobia, com a mão no bolso, tua melodia.















               Soneto dissonante

Deixaste a melhor amante, ora choras Sião
deixaste longe o prazer, cumpriste o dever
lamentas Sião como para a lua uiva um cão
no entanto cospe o monge com todo prazer.

Que fazer desse mundo sem deusa nem cão?
Quando procuraste o caminho na floresta,
encontraste o lobo, encontraste a perdição,
não encontraste Robin Hood fazendo festa.

Queres xingar o grande bruto e o camaleão?
Tão parca é a alegria, tanto abundam as pedras,
por que procurar sempre de novo o senão?

Vai pintar de roxo o sol que tudo governa,
contempla o dourado da nuvem da estação,
dança um frevo rasgado no reino de Eterna.






















          Mensagens ao mar

Contemplas a tua filha que dorme
               (suave encanto do outono)
     mas ela tosse, tosse e retosse
               arrancando pedaços da tua alma.

Lembras agora o seu doce sorriso
               (quando via a folha volejar)
     enquanto o mundo ronda negócios
               e a ti rondam desemprego e fome.

Lobos famintos espreitam ovelhas
               (tu tentas reter o vento)
     não sabes como defender o sorriso
               folhas se acumulam aos teus pés.

Tu te sentes um trânsfuga, um refugo
               (na gota de orvalho a floresta)
     pobres restos, restolhos de todos nós
               tubarões percorrem a tua noite.

Tosse a tua filha, oscilam as tuas paredes
               (na folha morta desfaz-se a planta)
     tuas mãos se erguem em prece ao céu
               querendo calar os raios e os ventos.

Na soleira do tempo sombrio que viveste
               (na folha inventas a planta refeita)
     sonhos perdidos recurvam a tua espinha
               não te permites chorar em seu limiar.

Como um náufrago em uma ilha perdida
               (na nervura da folha a runa ignota)
     jogas garrafas ao mar com palavras de apelo
               é inútil o soluço quando ruge o mar.     





     Aventura noturna

Uma coisa muito engraçada
com o meu filho aconteceu:
foi mijar lá pela madrugada
mas a mãe dele é que fedeu.



































          Cerrado cerrado

Não mais se move a tua mão, não mais:
cansou do trabalho sem sentido, cansou
tão desacertados são os tantos caminhos
daquilo que se faz e se deixa de fazer:
tua mão se estende pelo cerrado goiano
por essa secura sem árvore nem pássaro
e tu te perguntas como vieste parar aí.
Cada letra é uma gota de sangue da mão
cada leitura é um adeus à passada ilusão
na mão uma flor se estende à tua filha
um sorriso acolhe e consola teu desterro.
Tu lembras aqueles que te repeliram
nas terras gaúchas impediram emprego
te obrigaram a sair, tuas idéias erradas
teu excesso de talento a lançar sombras
tua origem alemã, o atraso lá do interior.
Garças em V estendem irônica vitória
num céu seco, horrível anil, todo calor
onde estendes teu vazio e tua ausência.
Aguarda agora a nova hora, desaguarda
apronta as tuas malas, parte do Brasil
põe a tua esperança no planeta avesso.
Onde foi que te perdeste, ó filho meu?
















     O emigrante

Do avô que tu ontem ainda vias
escovar seus dentes junto à pia
agora não guarda esse espelho
mais que o olho do neto parelho.

Nesses olhos que ora te reolham
dança ligeira tua própria morte:
será que o neto terá outra sorte
verá o neto do neto outro norte?

Já dança no crânio a tua caveira
dá porém para tua companheira
a esperança de algum outro país
com menos porretes, mais Paris.

























     Saudades do matão

Lá vai ela saracoteando pela estrada:
De quem a vitória, de quem a derrota?
Nessa lama em que ora nadas, nessa
Não há vencedor, há apenas vencidos.
E quem mais parece derrotado, esse
É quem menos pensa que perdeu, ah…
Não há terra, não há linde, só há lida
Somente lida existe nessa linda terra.
Para ti muros por toda parte, paredes.
Músculos e ossos moídos, não grites:
Retornes aos campos antanhos do Sul
Procures as praias perdidas, o pampa
Nalgum lugar estará o teu sambaqui
Onde perenes irão sambar teus ossos
Os teus ossos ora soterrados na carne
Carne que apanha nesse país não teu:
Nele nasceste, nele morres, não é teu.
Esse país tem dono, dono dele não és.
Queres agora descontar a tua agrura?
Queres contar ainda a antiga tortura?
Pensas poder em poucos, pari passos
Ver do ovo um pinto nascer, pensas?!
Essa é a terra da pobreza e da tortura
Só o carrasco antigo está na poltrona
Bebendo do melhor uísque, contente.
Navega em tua amargura, e naufraga:
O sambaqui é teu samba aqui, gatão
Tu já sambaste com os teus bisavós
Condenado antes mesmo de nasceres
Estigma no peito, no olhar, no cabelo
Estigma no pensamento impensável
Tua auto-estima não terá auto algum
Eles negam, tu afirmas, eles renegam
No entanto a pobreza é geral, general.
Minha terra tem palomas e palmares
Minha terra não é minha, tenho ares
Restam alguns penhoares na saudade
As asas da Panair, as asas da vontade.

               Balanço

Na mesa de operações de um hospital
um corte cata as pedras de um baço
a dor te envolve o braço e antebraço:
a tua saudade está agora anestesiada.

Não sei onde encontre mais azul o céu
céu mais azul do que o desse deserto:
teus filhos brincam na areia do tempo
teus avós se esvaem na área do templo.

Nas águas do teu olhar, barco perdido
percorre o coração da matéria, saudade
saudade do bem imenso que se finou
no balanço do amor teu corpo soçobrou.

Nesse porto confluem todos teus barcos
os dedos sangram pelas pontas partidas
põe um band-aid, uma gaze, uma gazua
quebra as pedras de tua alma toda nua.

Na balança do amor o balanço do corpo
no balaço do azar o teu baço a sangrar
no bagaço do braço o teu peito de aço
na bagagem do agora tu nove vezes fora.















     Saudades paulistas

Tu viste o teu corpo sendo triturado
na máquina paulistana de moer carne
teus braços, teu ventre, tudo tu viste
ser moído na máquina de moer gente.

O diabo tocava a manivela do acaso
escorria o lucro do patrão americano
o lucro do patrão alemão ou italiano
pior de todos era o patrão brasileiro.

No horrendo túnel do tempo tão atroz
o diabo a se lamber de tanto prazer
tu dia após dia na fumaça, tu sem voz
eras o rato dos ratos, nada havia a ver.

Tu ouviste corpos sendo aí torturados
tu não vias mais veredas da salvação:
agora na masmorra cultivas o teu não
em breve serás dos anjos bem-amado.




















No reino do faz de conta

Vamos apenas fazer de conta
que tudo ganhamos na derrota
toda a terra está à nossa frente
ainda que o rabo nos arda atrás:
no lindo reino do fazer de conta
vamos descontar nossos débitos
vamos catar os nossos créditos.

Nós somos hoje os derrotados
aqueles que tiveram de partir
procurar terras bem distantes
enquanto abutres se fartavam
gaviões caçavam seus pombos
e sapos nos campos coaxavam.

Amanhã a vitória não interessa
nossos túmulos estarão distantes
longe demais das flores dos pais
e nossos filhos irão se acasalar
com mulheres de estranho falar.

Aqueles que perderam, somos
nossas bandeiras não desfilam
pelas ruas das nossas capitais.
Nem vingança nossa há de vir.

Apenas a derrota é nossa rota
deixem que eles nos extirpem
calados contemplamos o ocaso.

Quiseram nos ver pelas costas
pelas costas todos irão nos ver.

Perdemos tudo, tudo é ganho.





          Também és 300

Tu jogaste pedaços teus pela janela
como se nessa rua ninguém pisasse.
Tu ris daqueles que nela caminham
pisando sobre pedaços teus no chão.
Na calçada caminha sozinha a perna
sobre os cinco dedos caminha a mão.
Tu ris em tua ausência, de ti ausente
teu corpo tão pelado de pele, de tudo.
Do resto que de ti ainda resta, tu ris
como se não sangrasse o teu riso, ris.
Pedaços teus espalhados pelas ruas
pisados por pés e botas, entre papéis.
Entre as cascas, os papéis e as bostas
espalhados pelas ruas paulistas: ó tu.
Na próxima tempestade espera calado
também tu serás engolido pelo ladrão.























     Tu és pó e     

O homem, do barro feito
faz de barro sua moradia.
O amor, feito aos berros
faz do barro sua tratoria.
A mulher, de afeto feita
faz no feto sua moradia.
O homem, do barro feito
do barro não sai, não sai.































               Meditação sem ti nem tê

São poucos, bem poucos os corações que te esperam.
Tu és cada vez mais apenas ausência, uma leve brisa
que invisível perpassa seu medo nas folhas da pátria
tangendo o que parece tangível, tilintando os brincos
de princesa, as bocas de leão, os amores perfeitos, os…
Teu coração todo feito de ausências, pois bem sabes
que o amor maior, o mais perfeito, aqui não será feito.
Um dever te assume, e ele é bem maior que tu, maior
que esse amor impossível, esse amor todo imperfeito.
Poucos lembram de ti, e todos são apenas ausências.
Tu não queres voltar aos infernos da selva de pedra
tu não queres mais voltar aos pesadelos pretéritos
não abandonas os sonhos de maior igualdade social:
depõe agora essa clava que em teu peito se encrava
cultiva e curte o sorriso nos lábios, a doçura no olhar
ainda que te doa a nuca de tanto trabalhar toda noite
tuas mãos se erguem em prece até … onde não sabes.
A vida é curta demais para tanta perda tão depressa
teu corpo na curva dos quarenta já treme em agonia
como se essa não viesse por si, mais dia, menos dia.
Deus depõe o diapasão dos justos, desiste do planeta
recolhe-se ao alto céu, desiste de consertar o teu país
no entanto as nossas mãos ainda se erguem em prece
a um Deus todo ausente, a um Deus que nunca existiu.
Pelo pó da estrada se arrastam os nossos pés de barro
nossas mãos se erguem com tantas mãos espalhadas
esparsas por tantos países, tão plenas de boa vontade.
Entre os dedos escorre a lama do tempo, faz bonecos
desenha no barro as nuvens do céu, os dotes do acaso.
Tu mesmo já não sabes mais por onde andas ou vais
nessas poças rubras do chão tu tropeças, tu patinas
sabendo que à esquerda está uma escarpa inacessível
e à direita tens o espaço infinito, aberto do precipício.
Vinte palmos enxergas à frente, até a próxima curva
depois nada mais sabes, mas acreditas que haja rua
se é rua isso que perpassa entre morros e precipícios
caminho de tantos milhões de descamisados do país
sendeiro de roça, com marcas no chão, no barro seco.

Um anjo ainda te acompanha, translúcido a volejar
de mil ausências feito, varejeira a farejar maldades.
O teu amor tomou o bonde mais distante, mais tardio
seguiu para terras além dessa terra, deixou-te o lodo
entre os dedos do pé a lama espirra, propõe-te o novo.
Um coração vagabundo te acena e te adeja um adeus
um pé cheio de lama acompanha outro pé enlameado
ninguém te chama, ninguém te acompanha, és livre
como o pássaro que voa solitário em busca do verão:
caminha, pois, pela estrada de lama, faz teus bonecos
sente como em toda essa lama resplandece a tua alma
aquilo que de tua alma restou, restolho do acaso atroz
restaura restaurantes como se a natureza fosse mais
que um imenso restaurante, guia de tua alma perdida.
Curva a tua cerviz, cautela, muito touro já foi castrado
puxa o teu carro, puxa a tua carroça, corre a capoeira
ouve o pássaro que ainda canta no bosque, apesar de,
espia o lagarto que corre a poeira, escorre na capoeira
espera o aguilhão que fere o couro e trespassa o casco.
Tu não sabes, saber não podes, nem pode um boi zebu
saber o que querem tais homens montados em cavalos
o que eles ensinam a teu couro com o aguilhão na mão
o caminho a seguir, o passo a dar, pensamento a evitar.
Não precisas temer só por teus belos, tortuosos chifres
as bolas já se foram, foram fritas numa tarde de verão
larga agora o teu coração pela estrada, busca salvação
pela estranha estrada do destino, a que chamas destino
não tens deus nem destinatário, sequer destinação, não
tens apenas os teus músculos de velho, parcamente tu.












              Ode ao 25 de Julho

Tão precária a vida única, tão desperdiçada.
Das navegações grandes que já se fizeram
tantos sonhos dourados, tanto barco a pique.
A todo momento vigiamos o sextante, o mar
vigiamos as ondas e os ventos, estrelas e sol
temendo ver brotar de repente um monstro
no entanto nos perdemos, ó homens ao mar.

Das navegações grandes que já nos fizeram
nem um rastro vimos nas águas dos mares
sustos estultos, sobressaltos e soluços tantos
como se tudo tivesse mais sentido que sulcos
do arado no chão para a força do boi forçado.

É apenas o aguilhão que agora ainda nos move
é apenas o vazio à nossa frente, a cabeça caída
enquanto a baba escorre de nossa boca porosa
o suor recobre o nosso couro, tambor do relho
com o rabo espalhamos as moscas do remorso.

Triste sina nossa, bois no arado, não pássaros
não gaúchos dispostos a correr pelas coxilhas:
sob o jugo do couro, do chicote, da fome, do sul
nada mais resta nessa estrada sem sol nem sal
exceto olhos nos sulcos do arado, sulcos no mar
perdidos e desperdiçados, enganos da história
cerviz curvada, à espera da espada, rememória.












               Ilusão

Quando tudo tiver passado desse agora
quando não houver mais essa poeira
de paixões, de postos e discriminações
a devorar nosso dia a dia, a nossa vida
talvez valha mais o que ora vale menos
essas letras esparsas, sonhos ignorados
registros rápidos em meio à luta atroz
à miséria tanta que nos rodeia e torra.

O que vês agora nesse dia que te devora?
Tu vês agora o melhor dos teus esforços
ser roubado, ser deturpado, ser devorado
pela ganância de tubarões em escritórios.
Tu vês o teu povo se revolvendo no lixo
enquanto uns poucos nadam no lato luxo
e tudo o que tentas fazer se torna ameaça.

E agora José? E agora quem não é um José?
O que podes tu ainda fazer nessa má-hora?
Será que deves desistir de tudo, sair daqui
ou deves abrigar-te no amor da tua mulher
esquecer que nasceste e viveste nesse país
e que não podes mudar nada, nada e nada?

E agora Joseph, tu que não queres ser José?
De leve desconfias, entre brumas e névoas
não ser esta a resposta última que te resta
ainda que tudo agora nesse país te indicie
não haver saída para tanta mísera apatia.

Enquanto o teu corpo geme sob o esforço
teu cérebro aprende não ser teu esse país.
Dói-te o braço, mais te doem mil recusas
mil barreiras que contra teutos deparaste.

Encerra agora o teu tempo de encarcerado
nesse país da liberdade e do tanto futuro:
sai desse país como quem sai da miséria…

Nele a luta continua, mas a luta não é tua
esse país tem dono, tu nele nem povo és.

Joseph, Joseph, não aceites ser outro José.





































          Pecado original

Se ao menos uma cabeça pudesse
ver contigo um pouco mais claro,
se ao menos uma ainda pudesse
agir contigo um pouco no prumo!

Talvez pudesses então sossegar
achar que o teu esforço de agora
não seja apenas dura penitência
pelo perene pecado de tua origem.

De que importa o mais correto agir
se Cristo se tornou uma Inquisição
se o Terror foi filho da Revolução
se monstros são cria de toda utopia?

Olha, no entanto, a face da pobreza
dessa pobreza que vês por todo país
espalhada há séculos e sem solução:
desiste de tal povo, não tem saída.

O paredão é pouco para a ganância
mas cada qual procura sua salvação
quando não se vê uma alternância
quando não se encaminha redenção.

Podre como a tua empobrecida voz
é a mão que tem o porre e o porrete
é o peito acostumado a dar porradas
mas não te salva a fraqueza do algoz.










     Dos preconceitos

O que ensinaste, foi deturpado
(de fato nada tinhas a ensinar),
o que escreveste, foi deturpado
(de fato já tinha em si errância).
Tua palavra se foi como a folha
que crê ter abrigo na terra fria.
Na palavra não havia salvação
como no ato não havia redenção.
Estranha lepra devora tua alma
como se a roesse um anjo sutil.
Teus mestres não te quiseram
foram bem mais sábios que tu.
Abençoa o silêncio, recolhe-te
ninguém quer mesmo te ouvir.
Esquece a dor, mira as plantas
és herdeiro de erros antanhos.
Se tudo é noite, outro será o sol
que poderá acordar-te amanhã.
Curva tua cerviz, servo do acaso
não há mais decisão a postergar.
Agradece às parcas teu desterro
a diferença mata, futuro não há.

















               Os ex-mártires

Tu ousaste gritar: e viva a revolução!
Não te queixes se te ferraram o olhão.

Não sabes onde ir nessa hora sombria
da derrota, hora em que é noite o dia…

Não esperes o favor do grande senhor
com prazer come a tua carne e tua dor.

Tardes fagueiras à sombra dos laranjais
não tens agora, e não terás nunca mais.

Cometeste teus tantos erros, cometeste
carregar esse que bate não acrescentes.

























          Trajeto sem jeito     

Sob um lago azulado e à luz dos astros
se a coruja sussurra suave para a lua
juncos imersos murmuram sua melodia
enquanto capoeiras sacodem as crinas.

Do imenso cosmos o peso em teu peito
explode enquanto perpassam angústias
despejando esperanças no pobre peixe
depondo certeza na incerteza no barco.

De repente todo te investes de solidão
com a pele do dia te revestes de noite
e queres crer que astros brilham em ti
quando na água o chapéu de palha cai.

Da mão pende frouxa a cânula cativa:
de que adiantam outros anos de luta
ante o curto giro dessa nossa história
mais rápida que a queda do asteróide?

Da margem sopram estranha aragem:
os chorões reclinam os braços pênseis
uma garça medita no espelho da água
um bentevi contempla fugaz alimento.

Sob as águas tremulam gélidas estrelas:
mas de que serve pôr a mão no queixo
pitar um cigarro, ouvir o cri de cigarras
se são tantas na noite as escusas garras?

Sob luz de estrelas, sobre o lodo do lago
suaves melodias resguardadas no junco
ressonam entre as crinas das capoeiras:
solidão americana, meia-noite européia.




               Persistência

Lá estão eles, na Província São Paulo, a festejar
a festejar os seus novos vice-reis, governadores
a falar somente o banal, como se ele fosse fatal.
Enquanto isso, o povo geme, e ninguém diz nada
calados ficam todos os que deveriam fazer algo.
Assim gira esse país como se certo fosse assim
a luta continua, ainda que tu tenhas te cansado.
Miséria, miséria e luxo, por toda parte, e tu só
caminhando à margem do Tietê, que fede, fede.































               Desenganos

Tanto tempo perdeste nas coisas mais tortas.
Ora, de que adiantou o esforço, a sobre-hora?
Descansa à beira da praia, à beira das águas.
Tudo o que fizeste, tudo logo há de perecer…
De que adianta o esforço, ora, e a sobre-hora
se ninguém te paga, a não ser com pauladas?
O que te parece mais correto, é apenas utopia
no entanto por toda a parte vês luxo/miséria.
À beira do asfalto, à beira desse tempo atroz
tu contemplas a dor de antigos companheiros
daqueles que tentaram construir aqui o país:
não vês mais que miséria tanta aumentando.
Que faz da gente mais que um ser para morte
se por toda a parte visível aids marca a todos?
Tu pensas que podes te olhar no espelho, não?
Não há salvação em ti, salvação não no agora
talvez seja um erro cristão pensar na salvação
quando todo caminho conduz à falta de saída...
À beira do mundo, um protesto tímido, e nada
nada mais se fazendo exceto uma vida perdida
enquanto os bobos alegres festejam, festejam…


















                    O dragão

De que adianta conciliar com o grande dragão
aquele que tem o fogo, a fome, a garra, o não?
Tentaste te iludir quando tentaste o dialogar
tentaste fazer tanta concessão e reconciliação
até estuprar o teu corpo, estuprar a tua alma.
Larga a tentação, percebe a dor em teu peito
nas sombras do lago os rubros olhos do jacaré
a contemplar teus juncos e chorões do outono.
Bem raras são as alianças possíveis nessa hora
e, antes de toda a metafísica, pesa a patafísica.
Mas o resto, resto não é, nele restas, repousas
procuras a identidade que à força foi roubada.
Na beira do caminho, te assentas numa pedra
na sombra da figueira, enxugas teu rosto roído
nas águas do regato, estendes os pés inchados:
contempla a estrada que resta - onde o ânimo?
Entre morros, pó e poeira serpenteia a estrada
bandidos de renome rindo assaltam o teu povo
roubam-lhe a bolsa, roubam-lhe a alma e a dor
nem podes lembrar que houve dor e uma alma:
vês o teu povo pobre, e rindo o seu pardo algoz.
Ruga em rosto cansado - o que de ti resta rapaz
e uns fios de cabelo na cativa caverna da mente
enquanto a caterva compondo vai o catecúmeno:
da pedra fendida faz brotar a fonte mais fremida.














                      Impasse

Nas palavras do profundo amor, a perda
na mais próxima amizade, o fosso total
no querer bem do dia a dia, pó e pedra
e no entanto continuar e mais continuar
sem dar ao olho o direito a uma lágrima
sem dar à garganta o direito a um soluço
sem dar ao peito o direito a um suspiro.
































                    O inútil

Com fervor resististe, com ferro foste ferido.
«Minha é a vingança», disse um certo Senhor.
O preço pago pelo sorriso dos filhos - viste
em teu braço paralisado de dor, sangrando.
O crime da ausência, da clara ausentificação
daquele cuja palavra desperta ódio e fúria
já que a sua palavra porta, propõe verdades,
e com estranha força atesta tantas carências
que seu destino acaba sendo o silêncio total.
Gélidas paisagens de bruma e neve se calam
se encravam em teus olhos tão mal-feridos
como se teu penúltimo destino fosse o exílio
antes do silêncio que já ora em ti se instalou.


























               Alternativas

Outras vidas tu poderias ter vivido
se não tivesses nascido na pobreza
não fosses não-latino sul-americano
se fosse outra tua íntima disposição.

Outras vidas que poderias ter vivido
além daquelas que tu desperdiçaste
que tu espantaste como corças ariscas
e ora lastimas com seu corpo no colo.

Elas já se esvaíram como relâmpagos
como traços pincelados na escuridão
errâncias de um barco na tempestade
solidão de quem não viu companheiro.

Intangíveis filmes de encanto e horror
disparam seus arcos de luz e sombras
enquanto se come pipoca e bebe coca:
saiotes decotados no drive-in da vida.

Máquinas moem as melhores ilusões
errâncias dos mil percursos perdidos
duros tendões dos tensos presentes
sempre errônea a alternativa vivida.

Come-se a carne agora aí triturada?
O que se faz dos papéis que pintaste?
Doces encantos do tempo da infância
refrigério do adulto, castelo ao vento.









                O lenore de Leonor

Uns galhos secos se estendem no azul do céu goiá
um pássaro põe-se a navegar em busca de insetos
um touro ataca furioso com chifres antes cortados
um pequeno inseto se debate sem cura num bico
plácida manhã se estende por todo o ralo cerrado.

Das navegações grandes que se fizeram, uns rastos
ralos restos que rastejam por raras praias perdidas
os ovos das tracajás devorados por gentes famintas
os olhos da tortura desovados sem grande amanhã
uma criança tua brinca na areia da praia de Aruanã.

Uma canoa deslisa suave pelo teu penúltimo igarapé
verdes folhagens perpassam por cabeças descobertas
músicas de Miller e Sinatra zumbem pelo ar da mata
tu estendes sobre ti o azul lençol do céu desse Brasil
tu encobres de verde o coração marcado de Araguaia.

Nada mais tens a fazer aqui senão retirar-te amanhã
retirar daqui todos os teus pés, braços e até corações
buscar de novo a civilização européia, livros, teatros
se não esse cerrado e essa mata irão devorar-te todo
deixar de ti apenas o lenore do pasto, o já condenado.

Das navegações grandes que te fizeram desde outrora
resta agora, além desse rastro de ruínas e restos de ti,
o suave contorno de um sonho que tens de repor além
o resto de uma runa que nem tu nem eu já deciframos
terra da promissão que nosso andar não fará alcançar.

No entanto, em quarenta anos andando nesse deserto
nós não abandonamos jamais a promessa dessa terra
nós não esquecemos jamais de buscar o antanho sonho
ainda que a arca da aliança esteja replena de podridão
ainda que a batalha de Josué tenha tanto sangue e dor.

Não somos um povo eleito, somos um povo condenado
fazemos disso a nossa avessa eleição, o nosso caminho
fazemos do trabalho forçado nossa livre tarefa e opção

fazemos do sacrifício a nossa alegria santa e abençoada
apostamos na vinda do Messias, que não vem, não vem.

Uma doce menina brinca na branca areia do Araguaia
um pedaço de pau é sua boneca, filha dileta, predileta
precisa ser envolta em fraldas de folhas e verde musgo
precisa ser posta a dormir na cama do mais suave abril
como se ainda houvesse futuro a embalar no sonho senil.

Um pássaro põe-se a navegar na busca feroz de insetos
um boto ostenta o seu dorso negro em rapina elegante
um inseto se debate sem cura num bico que tanto canta
um peixe debate sua incúria nos nobres dentes do boto
e uma loira menina brinca na branca areia da praia suja.





















          





         O colono

Sobreviver foi, naquela ocasião,
a lei mais forte, atroz lei do cão
destino feroz do bisavô alemão.

O que tinha a boca fazia a mão.
Colono posto no fundo do matão
sua filosofia era comer cada dia.

De Kant, Hegel, Marx, nada via
existia apenas o que real existia
a noite era guardada à fantasia.

Na mata não o ouvia ninguém
não estava aí o sino de Belém
sua solidão é a nossa também.

Pela manhã saía para sua roça
à tarde o suor dele fazia troça
preparava assim a nova bossa.

Senhor não tinha, escravo não
a ação diária era sua subversão
sobreviver era fazer revolução.















Na Casa dos Contos
Tu seguias sozinho o teu caminho
semeando erros a ti e teu vizinho
erros que tu te pintavas errâncias
caminhos inevitáveis do humano.

Enquanto isso na Casa dos Contos
que fica em BH, em outros pontos
o teu colega, menos que tu afoito
enchia a cara, via, varava a noite.

Ele te lembrava da bela mineira
que tu amaste e viste tão faceira
a morena que era poeta e sabida
aquela que tu perdeste à partida.

Em tardes fagueiras, sob laranjais
acendes fogueiras, soltas os teus ais
mas essa morena tu não tens mais
já não vives mais em Minas Gerais.

Já não sabes mais para onde seguir
apenas sabes de onde deves partir:
ao invés de mais, menos, e bigodões
não te resolvem os ais nem senões.

Não escutaste o conselho da amiga
topaste a loucura paulista, a espiga
a vida é um longo suicídio, ó Vieira
sem contar a bala a vir da capoeira.

Do fogo das tardes, o que ora resta
é o sopro quente, ausência de festa
é um abismo que te atrai e te abala
onde o resto que ti resta já resvala.

Curas do passado a incurável incúria
cuidas preencher ainda toda lacuna:
no entanto tu mesmo escavas a cova
onde pousarão teus restos como ova.


O carvoeiro escultor

Ora já te despedes do teu ex-país
vais embora do que foi tua terra
aqui deixas teus pais e os amigos
aqui deixas o coração e a miséria.

Esta é a pátria em que tu nasceste
mas não é tua terra, terra não tens
tem essa pátria quem tem a terra
e não terá terra quem aqui berra.

Nos porões leprosos em que vives
tens de recolher restos de comida
tentas fazer esculturas de carvão
como se elas não queimassem não.

Das negras jóias fazes o teu altar
como se fossem ouvidas pelo mar
nos fundos porões do raro, ignoto
propões o silêncio da fala, remoto.

Nos fundos da mata de pedra, lei
lei não há, apenas vontade de rei
e rei tu não és, rei tu nunca serás
lei sem rei nessa mata não verás.

Nas invisíveis asas de tua canção
não voas e não tens nova estação
pensas fugir para a frente, ó não
quando te comem cano e canhão!

Por que seguir aí sempre avante
quando o caminho é atrás, ante
não um raro caminho adelante
carinho além de Porto Mariante?





         O cimbório

Devo ter um irmão mais novo
mas que não sabe quem sou
tem a vida que vou morrendo.

Do teu sangue tu fazes tinta
inventas nele um raro rubi
guardado no cálice do olvido.

Mais que uma gota de sangue
em cada poema, em cada canção
e ainda tens uma caneta na mão!

Num altar de pedra ou papel
resguardas o sangue ressecado
como se fosse o corpo do Cristo.

Às vezes ressoam campainhas
em manhãs de viúvas velhinhas
e crês reviver em mágicos ritos.

No meio do mármore do altar
se esconde um cofre sem jaça
onde se põe o cálice do sangue.

No entanto do papel o pedaço
onde guardas palavra e sangue
não tem cimbório, não tem altar.

Tem apenas o passado, o olvido
tem apenas o consolo do já sido
tem por função manter-te vivo.








          Beterrabas

Tentamos uma transfusão de sangue
quando vampiros à beira da estrada
se engordam em rubros banquetes.

No entanto, não pareces tão anêmico
meu irmão, ou comes tu beterrabas
como se fossem o sangue da terra?

Tentamos asfaltar com rubra tinta
um caminho da terra até um paraíso
para poder levar a cicatriz a ferida.

Motos a ostentar as suas bandeiras
em descargas do motor em rotação
proclamam a sua ruidosa revolução.

O sol armazenado no rubi do cálice
ergues à sombra do tempo fagueiro
enquanto assam bruxas em fogueira.

Bicho da terra tão pequeno, da terra
tão pequena, já tão vazia de bichos,
já tão bichada, a perder a paciência.
















          Partilhas

Deste o teu óbulo de homem partido
como se comprasses a tua consciência
eles que façam com o pobre dinheiro
o que pareça ter salvação, ter sentido.

Sabes que bem pouco se pode lograr
com esse pouco que tu aí podes doar;
anos depois percebes que foi engano
engano teu, e acabou causando dano.

Tu compraste parca e provisória paz
para depois erícneas te embalarem;
tu, escriba do livro não-consagrado
teu texto jamais será texto de Jeová.

Jogaste fora bem mais que dinheiro
preparaste tua cama no espinheiro;
com razão espreitaram teus passos
olvido serão todos teus compassos.

Tu és inútil, sentido tu já não tens
podes ensacar teus trecos e trens:
talvez melhor assim do que querer
salvar esse mundo com o teu fazer.















          Zumbi

Quando, forçado por fascistas fuzis
tiveste de enterrar os teus sonhos,
descobriste enterrado a ti mesmo:
só o teu fantasma andava a esmo
por ruas a cada dia mais desertas.

Acabaste fazendo o que ordenavam
acabaste sendo teu próprio inimigo
acabaste sendo igual ao teu inimigo
acabaste sendo amigo do teu inimigo
acabaste tendo no amigo um inimigo.

Agora que carne e razão já se foram
agora que já és apenas uma pauta
translúcida pauta só feita de pausas
não podes ter saudade das batalhas
voa pelo ar feito um pedaço de papel.

Tu sujas no entanto o campo dos vivos
perturbas o verdor da paz proclamada
não percebes que tua luta já é passada
apenas percorres no silêncio do sonho
o olvido de quem está enterrado vivo.
















        Tristes trópicos

Às vezes tu te perguntas como é possível
que o touro não muja e a vaca não paste
que o sabiá não voe nem saiba cantar.

Mas se olhas entre as sombras do dia
talvez vejas na gaiola apenas alpiste
touro sem escrotos, vaca no garrote.

Mesmo assim, cabe ao touro mugir
à vaca tugir, ao sabiá voar, cantar
assim o querem os deuses maiores.

Fácil é assim falar pelas esquinas
fácil é assim flautear aos ventos
fácil é dizer no papel que é fácil.

Tu, sabiá, tu te debateste em vão
quando duas mãos te encobriram
te sufocaram num poder absoluto.

Tu, touro, tremeste à hora o corte
depois te submeteste ao monjolo
dizendo adeus às vacas do antanho.

Na calma calmaria desses trópicos
o calango se encanta enquanto cantas
ainda que sejas apenas sangue e tristeza.












          Gota

Sentiste o cheiro do enxofre
sentiste a ferrada do chifre
sentiste o chicote das cifras
sentiste as sombras em luta
sem saber certo o que fazias.

Teu corpo todo se retorceu
tua mão em curva se fechou
era a gota, de gota em gota,
a exibir o veneno expandido
garra a te rasgar por dentro.

Da gota serena o descanso
a sombria paz da cegueira
da gota o veneno encorpado
das bruxas a dança festiva
e do carrasco o sorriso feliz.






















Morituri

Ai, meu filho, doei-te a morte
assim como a vida te dei, dei…
Não tens só mesmas fraquezas
miopia, alergias, impaciências
tu tens também a minha morte
e a herança do terceiro mundo.
Somos tão precários, tão frágeis
não sabemos se sobreviveremos
aos perigos da próxima esquina.
Em mim a morte será a higiene
uma necessária higiene do podre:
em ti, no entanto, se resguardam
as promessas da maior esperança.
O duro percurso da última agonia
terei de passar sozinho e solitário
pedindo piedade e inconsciência:
o caminhão de lixo da madrugada
há de carregar a minha podridão.
Inconformado, eu posso entender
a necessidade da minha ausência,
mas não posso aceitar, não posso,
que eu tenha te dado tal destino.
Não há deuses a culpar ou apelar
não há destino, não há divindade
e no entanto passamos sem rastos
(se rastos deixamos, parecem ser
antes sujeiras à beira da estrada,
não ponto de encontro das almas).
Ai, meu filho, perdoa essa morte
que te doei com minhas fraquezas
como se o ridículo gesto da piedade
pudesse trazer a menor salvação.







          Redemunho

De bem longe eu vos vejo, de tão longe
que sequer sei se vos vejo, ou sombras
pequenos pontos perdidos pelo espaço.
Não sei se ora é dia, não sei, apenas sei
que lá fora um sol brilha num céu azul.
Pássaros cantam em galhos, em gaiolas
até em gaiolas eles cantam, os pássaros
como se houvesse razão de ainda cantar
como se o canto fosse consolo da gaiola.
Tu passas teus dias compondo melodias
suando e sonhando utopias vãs e vazias.
Carregas balaios balofos pelas caatingas
cantarolando cantigas sem eco nenhum
mais duram nos pássaros as plumagens
que a canção onde revestes tuas penas.
Nesse cerrado onde estamos, onde nós
supomos estar, supomos estar vivendo
olhamos no espelho das águas ausentes
nos perguntando o que estamos a fazer.
Apenas sobreviver, somente sobreviver
para algumas linhas ao olvido escrever?
Mãos desnudas e trêmulas oferendam
ao sol impiedoso do cerrado que habitas
a caatinga que te habita o peito partido:
das mãos te brotam umas folhas verdes
como se ainda pairasse uma esperança
como se tu pudesses fixar raízes no país
como se não fosse mais forte o vendaval.











     Negrinho do pastoreio

Quando o teu corpo nu uivava de prazer
cada poro transformado em boca aberta
tu te olvidaste dos dias e noites da fome
tu te olvidaste das crianças nuas na rua.

Imensa paz percorre o teu corpo cansado
repousa em ti o olvido, tu és a tua campa
com a noite há de brotar uma chama azul
que irá percorrer os campos do pastoreio.

Tu és o negrinho do avesso, aquele posto
sobre ninho de formigas depois do açoite
aquele que buscava uns cavalos perdidos
aquele cuja história te deu tua liberdade.

Lembra, lembra sempre, e lembra agora
o pobre menino negro e os seus cavalos
percorrendo o pampa gaúcho e sua noite
acendendo a cada pata de cavalo uma luz.




















          Vindoura luz

Agora que perdeste teus sonhos e pedaços de ti
agora que te recolheste ao olvido, à beira de tudo
agora que à pátria renunciaste e amores perdeste
agora que o que era tua casa já se tornou tapera
e o que era pele, sorriso e encanto se tornou cinza
agora que tudo perdeste exceto o coração a pulsar
talvez tu ainda possas dizer o que se deveria dizer
palavras como o pó que bruxas despejam das asas.

Tu sabes onde estão inimigos do teu povo perdido
tu sabes como é ser o rato da lata de lixo brasileira
tu sabes qual é o caminho para bem longe de tudo
não foi em vão que te ensinaram a não viver aqui.
Mas tu não sabes como mostrar o mar ao inimigo
não sabes como acabar com seu engodo, seu perigo
não sabes como limpar a imensa lata de lixo Brasil:
tu mesmo sais, tu deixas sentigo o país mais limpo.






















          Balancete

Lá fora gritam contra ti até pelos jornais
murmuram pelos acadêmicos corredores
até mesmo alguns companheiros xingam
não são amigos que ocupam as cátedras
eles não estão nos pódios e altos prédios.
Tu, impotente, solitário, remoes derrotas
surpreso por ver tanto teto do alto caído.
Tu bem sabes que o poema bem amargo
consola, alegra o coração do leitor ferido
mas um poema posto num livro não lido
é teu consolo apenas, bilhete de suicida.
No entanto escreves, nada mais te resta.
Procura fazer da matéria infecta do dia
da amargura imensa de teus naufrágios
se não uma saída ou solução, ao menos
ilusão de um consolo, luz da consciência
um bilhete numa garrafa jogada ao mar
pedaços de ti resguardados em vinagre
cadáver de papel em que te vês a salvo.
Adeus ó amigos, adeus ó companheiros
seria ótimo ter no percurso da derrota
os avessos do percurso da correta rota
mas nada afasta a garra do olvido atroz.
Bom seria ter o consolo da boa amizade
daqueles que ficaram na infância antiga
mas já te recobre a pátina de tua busca
como lágrimas que o teu corpo chorasse
anos perdidos, patena com podre hóstia
pátria, arte, ciência que pensaste servir
e que tudo te tiraram e pouco te deram.









     O teuto-brasileiro

Os grandes do país desfilam nos jornais
carregam nas costas cadáveres demais.
Não há tardes bastantes nesse veraneio
para olvidar crimes tantos no entremeio.

A ti, como teuto-brasileiro, até parece
que teu país é dominado por bandidos:
mas tu não tens país, o Brasil não é teu
o país tem dono, e tu nele estás perdido.

Tu não sabes por que há tanta pobreza
por que razão tu encontras tanta parede
por que tu não alcanças postos elevados
por que só te restam restos indesejados.

Tu não vês como eles te vêem, os outros
aqueles que são lusos, italianos, judeus
aqueles que não gostam dessa tua raça
aqueles que vêem em ti perigo nazista.

A eles não importa que teus tataravós
vieram ao Brasil com um sonho liberal
rompendo com senhores ainda feudais
construindo igualdade e boa irmandade.

A eles pouco importam sonhos secretos
a eles importa que trabalhes para eles
que sejas o seu servo humilde e servil
que cales a tua boca, e sigas comandos.

Se queres sobreviver, aprende a calar
aqui manda quem pode, obedece quem
não tem juízo demais, quem tem medo
quem experimentou o chicote e o relho.

Sirvo-te um punhado de areia deserta
do tempo que já perdeste nessa terra:
ao longe talvez enxergues uma árvore

nela poderás com ex-forço te enforcar.

Já estás morto, cá viver nunca pudeste
tu apenas pudeste tentar sobreviver:
ora contempla os teus últimos poentes
o teu corpo na corda balança, balança.
     


































     Destino

Para as coisas deste mundo
parece, foste inábil demais:
mesmo quando a boa sorte
bateu-te por acaso à porta
tu cuspiste, ai, em sua cara.
Agora te arrastas, perdido
agora vês o teu pobre filho
a se arrastar por aí contigo
vês tua mulher toda rugas
e já não podes mais apenas
lançar as culpas nos outros:
tu mesmo fechaste a porta
quando chuva caiu na horta.
À sombra do mundo errado
onde a gente devora gente
murmuraste o teu protesto
condenaste à merda os teus.
É melhor que te vás embora
para longe desse pobre país:
toda essa tua ânsia de morte
não mais redime a tua alma
não salva teu corpo tatuado.
Se abrisses tua porta à sorte
entraria em tua casa a morte:
com essa ou qualquer eleição
seria sempre futura perdição.













     Dialética do amor

É tamanho encanto contigo estar
é tanto o gozo do corpo no corpo
que chega a doer a tua ausência
que dói ni mim até tua presença.

Escapas entre as fímbrias da mão
como se fosses o cristal do verão:
teu corpo nos braços de um outro
teus lábios a beijar lábios de ouro.

Na terceira etapa do nosso amor
tu és apenas ausência, não és dor
tu és aquela que quero esquecer
sou quero-quero que mal-te-quer.

























     Cabeça de papel

Ter nascido no Brasil foi fatalidade
contra ela nada pudeste então fazer
no entanto por seus morros correste
e nos regatos banhaste com prazer!

Vê quanto trecho da vida perdeste
vê quanto potencial de humanidade
ficou perdido nesse mundo terceiro
no entanto amaste a tua fatalidade.

Tentaste fazer o que parecia correto
para deixar tocar a banda no coreto:
quem tocou foi a banda do quartel
foste soldado raso, cabeça de papel!

Agora vives fora, ninguém te escuta
estás perdido, mas já estavas antes:
não sabes onde ir, cessa toda busca
quem manda é castelo de Abrantes.




















     Tinta sangre

Com as tuas mãos rubras de tinta
derramada destruindo templários
tu te estendes no chão ante o altar
tu pedes perdão por teu sacerdócio
tiras tua mitra, despes tua túnica.
Contrito oras por todos teus erros
porque um dia pregaste a salvação
uma salvação futura e nessa terra
como se essa terra tivesse salvação.
Erras mais uma vez em tua oração
quando esperas que haja redenção
para algum alvo resto de tua alma:
não há retorno para quem inclina
sua cabeça ante a espada carrasca.

























     Beira de estrada

Sentados à beira da estrada, ficamos
olhando o cortejo de sangue desfilar
soprando suas fanfarras, dançando
entre cadáveres e feridos dançando
como se fosse as três graças gregas
a flutuar entre folhagens do verão:
as tuas mãos carnais se estendem
buscam as graças da nova estação
pedem a outros tempos presença
pedem a teu povo destino melhor.





























            Grossmutter

Minha Grossmutter era gorda e era fofa:
sentada no alpendre, descascava batatas
contava histórias para os netos em roda.

Enquanto a chuva caía no telhado seguro
histórias antigas nos levavam encantados
por reinos perdidos do nunca-nunca mais.

Havia tantas estradas no rosto em rugas
havia tanta meiguice no olhar soterrado
havia tanto carinho sem gesto nem voz…

Do castelo, da casa, dos reinos que foram
nada resta na família, nem umas pedras
nem uns velhos pedaços de pergaminho.

As batatas descascadas já foram comidas
as cascas foram devoradas por um porco
o porco foi devorado depois da engorda.

Nas noites de tempestade e assombração
almas penadas perpassavam os Platanen
sussurravam as nossas angústias tantas.

Se das palmas de nossas mãos pudessem
brotar de novo as vozes nelas escondidas
os rostos que um dia puderam acarinhar!












     Santa Cruz do Sul

Um rubi, com sua doida cor de sangue
brilhou no alto de um altar na floresta
enquanto fiapos dos sóis mais ausentes
trançavam linhas e pautas nas árvores.

Entre as pautas das luzes da floresta
uma criança escreve as suas melodias
a pássaros a trinar sentados em linha
enquanto a tribo tenta ouvir os deuses.

No templo das altas abóbadas verdes
um gamo percebe assustado esse povo
mas os homens vestidos de couro e lã
não atentam à caça que se apresenta.

Parecem que procuram nessa floresta
restos de azul entre os ramos verdes
lampejos entre as plúmbeas nuvens
como se esperança houvesse, e porvir.

Mas se o porvir não é essa criança, e o
gamo, esse gamo que passa assustado,
o que procuram entre as folhas esses
homens barbudos com suas mulheres?

Não há nenhum deus à vista, nenhum
no entanto eles todos, grandões, olham
por entre as árvores como se houvesse
mais que fiapos de luz, e sóis partidos.

Pássaros cantam nas pautas da floresta
nas pautas luminosas entre os verdes
e fantasmas que brotam do solo úmido
dançam, movem seus braços, volejam.

Por que apenas olham para o alto, eles
esses adultos tão replenos de planos?
Por que não olham o húmus da terra

o húmus dessa terra úmida e faceira?

Uma lagarta colorida e bem cabeluda
caminha suas patas sobre as folhagens
sobre paus podres caídos em ataúde
como se cem patas à pobre bastassem.

Cem patas tem também a nossa tribo
cem patas tem, sem poder por si voar:
nesse verde e azul, nas pautas de luz
um bico leva a lagarta, não-borboleta.

Do céu escorre sangue verde-amarelo
cai na mão da criança entre as folhas
propõe o abandono de toda esperança
no raio de sol do altar rebrilha o rubi.

























      Em lama e lodo
Se a bandidos de gravata tu sorriste
tens também em ti parte do bandido:
se fosse cortada cada mão que pecou
faltaria mão a cortar, faltaria coração .

Tentaste lavar tuas mãos impotentes
nas águas lustrais da infância, do lar:
tantos foram os teus erros e enganos
é melhor já teres sido calado há anos.

Mergulhado no lodo, tenta desaparecer
assim deixas o campo aberto, adubado:
do adubo poderá uma planta aí crescer
com novos encantos, bem novos cantos.

Tu és o palhaço, o judas, com a glória
de quinze minutos do desprezo geral:
depois o olvido até mesmo de amigos
não há na terra bastante água lustral.

Que se poderia agora esperar senão
que brutos mandem de relho na mão:
que tu mesmo te tornes outro bruto
nada a merecer senão exílio e prisão?

Tuas mãos inchadas da palmatória
teu peito lanhado, ausente de glória:
e teu povo com fome, sem tua ajuda
tu sem povo, prece calada ou muda.

Tanta alma em lama, fuga ao nirvana
na romaria a Trindade e Santa Maria:
na tua cama tantos irão dormir, mana
que em ti também se fará noite o dia!

Persiste nos versos pedindo perdão
jamais eles suficientes para ti serão:
sem uma perna caminhas, sem braço
acenas ausente mão, ausente abraço.

          O palhaço motorizado

Montado em um motociclo, e de palhaço vestido
percorres, em precário equilíbrio, ruas da cidade
de uma sombria cidade sem amada nem amigos.

O rosto enorme da mulher que aí tu mais amaste
te acompanha como lua toda nua pelas estradas
iluminando mil recantos de sombras e saudades.

Um cão passa trotando pela calçada cheia de pó
um gato mia à beira de um telhado bem remoto
uma criança chora em qualquer quarto ou sótão.

Nessa hora da dor e da ausência tu te despedes
para sempre tu ora te despedes da tua América
deixas tua amada rebolando sob corpo qualquer.

Por entre as mãos, por entre os dedos, te escorre
sem cessar escorre a límpida linfa dos noves fora
e tu estás fora, com as mãos limpas, sem história.

Um velho palhaço há de abraçar uma velha gorda
o seu beijo há de se perder no colarinho em folga
na barcaça do calçado puseste um pé fino demais.

Uma cratera se abre logo após a curva da estrada
tomba a roda, tomba a moto, tomba o teu palhaço
cerra-se a boca faminta, cortina no estreito palco.












        A moça do Bom Fim

Se tu tivesses estendido mais que a mão
se na tua mão houvesse também coração
naquela noite em que, juntos no cinema,
num velho cinema do bairro do Bom Fim
notaste uns olhos cheios de calor, súplica
notaste tuas mãos transpirando com frio:
quanta alegria no teu corpo ainda haveria
quanto espinho pela estrada tu evitarias
que lindas crianças terias tu nela parido
que belo futuro em Porto Alegre tu terias!

Um mar de lava e lama desce a montanha
sufoca as pequenas plantas pelas paredes
mas uma borboleta voa ainda os teus ares.
A tua moça do Bom Fim deve estar casada
deve ter dois, três filhos já bem crescidos
deve ter suas cunhadas e rugas pelo rosto:
a primavera que tu poderias ter anunciado
se não tremesse tanto a tua mão na ocasião
se não fosse tão medonha toda tua inibição
naquele velho cinema no bairro do Bom Fim.

A felicidade mora sempre onde não estamos
a felicidade está nos caminhos que perdemos
a sombria asa da dor perpassa em teu olhar:
antigas histórias pelo azar do agora ativadas
reatiçam uma antiga chama no carvão extinta
fazendo planar a alegria do possível perdido
sobre uma dor que agora não podes suportar:
uma ínfima ponte de cordas sobre o abismo
e já oscilas no ar perdendo o pouco que tens
o precário equilíbrio do quase-nada ao nada.







         A fogueira do pampa

Tu te pões de cócoras em frente à caverna
a soprar restos da fogueira de ante-ontem
cinzas e tocos extintos, tocados pela chuva:
teus olhos se enchem de cinzas e lágrimas
teus pulmões explodem as parcas paredes.

Tossindo e retossindo a tua alma em pauta
tu consegues afinal arrancar a parca chama
uma remota luz ao tronco escuro da noite:
tuas mãos rubras aquecem uma esperança
enquanto o corpo treme sua fome ao vento.

Felicidade foi se embora, e tu estás de fora
em teu peito ainda mora, ainda ainda mora
a saudade, a saudade da fogueira no pampa
da sanfona tocando, do chimarrão correndo
como se volta ainda pudesse haver para ti.

É preciso estar atento, forte, atento e forte
não temer a morte, não temer ir pro norte
o corpo sem cura padece, tua alma padece
nada importa, precisas estar atento e forte
norte hás de buscar, sem saber o que fazer.

Com a lâmpada na mão, em pleno meio-dia
busca Diógenes um Homem por São Paulo:
não há azeite bastante para iluminar o dia:
apenas uma geração em derrota, restolhos
esqueletos limpados por gordos paulistas.










     O retorno de Hans Staden     

Debaixo de todas essas ruínas está enterrada
la esperanza; no te parece, creo, tu no lo cres
pero hay esperanza, creo, esperanza perdida.

Te ensinaram a rastejar pelo fundo do fundo
como um verme tu te viste rastejar na lama
temeste a bota qualquer, o milhafre pelo ar.

Esse foi o mundo que te foi dado, te impuesto
tu, salamandra mirim posta na lama sem fim
uma estrela azul posta na mão mais inocente.

Uma estrela azul iluminava o teu louco olhar
a ilusão da salamandra no fogo a ressuscitar:
agora cala, nunca mais tu hás de lá retornar.
























Antropofagia paulista

Tanta esperança havia — no passado
e agora avistas apenas úmida areia
uma garrafa de água partida, parida
enquanto a garganta mais que seca
gera em anil do Brasil miragens mil.

Se lamberes essa úmida areia parida
hás de encher a tua boca de formiga
areia a percorrer as tuas entranhas
enquanto cantas uma ária qualquer
tentando pôr esperança nas orelhas.

Essa areia de arrabalde, arredio ruído
a te roer e corroer o coração cansado,
torna desertas as tuas mãos casadas
expõe ao relento teus filhos perdidos
aduba com tua carne entranhas índias.






















     A era das ratazanas

As ratazanas correm pelos corredores
corroem todas as melhores intenções
remoem com cal e calúnia os corações.

Falazes filhos do agora, te apavoram
esses ruídos tão arredios, bastidores
ratos e gatos a espreitar pelas covas.

Velhos galpões de milho carcomido
centros do saber, do saber enganar
saber do engodo, do saber engordar.

Tuas mãos, tão impotentes e parcas
ante os ratos a roer, a errar e coroar
os ruídos da tortura, horríveis risos!

Tu ergues um pequeno, obscuro altar
como se a vela acesa ante os santos
pudesse arder e iluminar ao vento.

As rubras mãos se põem a tremer
como se o tremular fosse bandeira
e meiga se pusesse a piar a cotovia.

Coriscos trespassam altivos a noite
como se pudessem estrelas acender
como se estrelas ainda houvessem.

Sem capote caminhas pelo campo
o rosto molhado da lua te aparece
a promessa da estrela te alimenta.

Caminhos não verás pelos campos
puxa o capote úmido contra o peito
fecha os olhos a toda antiga crença.

Deixa o galpão soturno aos ratões
também essa batalha tu perdeste

caminha pelo pampa até o seu fim.

Quando raiar o dia em algum capão
no remoto capão dum outro campo
deixa o teu corpo cansado no chão.

Segue depois pela primeira estrada
que aparecer após algumas cercas:
põe tuas botas a percorrer a lama.

Nas poças d'água suja dessa estrada
hás de ver restos dalgumas nuvens
fragmentos dum céu cheio de lama.

Frases perdidas a ressangrar feridas
olhos a contemplar enlameado céu
como se a estrada caminho já fosse.

Ou tu podes ficar deitado no galpão
tentando dormir em meio às palhas
enquanto lá fora soprar o minuano.




















Hans e os canibais

Feito um boneco de molas tu para eles dançaste
tu te sacudiste pelo palco, para todos os cantos
as tuas pernas subiram, os teus braços voaram
como se, por haver dança, esperança houvesse.

Não mais se ouvem, das palmas que não ouviste
as palmatórias que por todo o corpo tu sentiste
como se corças pudessem lá confiar sossegadas
como se, por haver palavra, confiança houvesse.

No outono do patriarca se põe aqui não só o sol
depõe-se também a espera e a esperança anciã
depõe-se a esfera e o compasso, a pá e o passo
pospõe-se a régua, o olho que vidente se cerra.

























           Saulo, Paulo

Não digas mais "eu": ele é falso e pouco importa.
Não digas mais "pátria": duas ou três já perdeste.
Cansado das cusparadas que levaste pelo rosto,
fica sentado na sombra, contempla a montanha,
deixa que os bandeirantes façam suas entradas.

Olha as tuas mãos calejadas, a carecer cuidados,
olha o inimigo a pontificar em cátedras de papel,
olha a traição a zunir de onde menos esperavas,
olha o teu esforço inútil em meio a esse matagal,
olha como se alegram devorando as tuas carnes.

Uma serpente imensa enrodilha aí dois corpos:
um, daquele que um dia já foste e que já se foi;
outro, daquele que poderias ser e nunca serás.
Uma boca imensa, dois dentes imensos à frente
prontos para te ferrarem, te tornarem carcaça.

Será que há de vir um anjo salvador até Saulo,
anunciar a ele que se torne Paulo, e São Paulo,
ou terá de vir um caçador com sua espingarda,
disposto a arrancar com chumbo esses dentes,
disposto a dar uma tumba ao corpo do morto?
















          De Berlim a Bertioga

A mil quilômetros de distância teu mundo se esvai
como a água entre os dedos, ele se escapa, vai e vai
enquanto no seco cerrado contemplas a ferida mão
tendo se evaporado para ti toda alegria e civilização.

Tu foste de Berlim a São Paulo, foste à pré-história
pensando encontrar nela uma civilização bem antiga
mas encontraste antropófagos que bem te trataram:
deram-te milho e mandioca, deram até suas cunhãs.

Tu pudeste correr por suas plagas, andar em pirogas
pudeste conversar com seus caciques, com seus togas
pudeste até mesmo entrar em ocas da selva de pedra
mas eles te cevavam para uma festança, tacape fatal.

Tu estavas condenado, ó Hans im Unglück, tu estavas
tua única chance de aí existires era a de seres cevado
para melhor te devorarem, os civilizados paulistanos
para terem na pança as tuas proteínas, os integrados.

Para escapar exibiste até às orelhas os teus venenos
mostraste a língua negra, tua boca cheia de espuma:
eles se riam do teu esforço vão, amaciavam a carne
depois pareciam esquecer-te pela carne dum puma.

Assim viveste um ano, outro ano, um terceiro ano
vendo como pouco a pouco te devoravam pedaços
escondendo no riso da pança a ferocidade do olhar
até que fugiste de São Paulo para um livro nos dar.










          Prometeu

Tu estás vendo o inimigo avançar
mesmo onde ele não parece estar:
ele vem marchando em uniforme
ele vem aplainando o inconforme.

Bandos de negras saúvas a saudar
o vôo da coruja e o açúcar incauto;
são bandos de ratazanas a corroer
nos corredores correias e correios.

Será que estás louco? Paranóico?
Bom seria se fosse tua a loucura
apenas tu terias de ser liquidado
apenas tu já serias toda a cura...

Mas não! Nas tardes desse verão
marcham e voam saúvas vorazes
a comer verde em hortas e olhos
a carcomer folhas, folhos e fólios.

Já se abate o abutre no penhasco
come teu fígado, come tua língua
come o cadáver dos teus bisavós
põe-se a devorar teu ex-coração.

Tu acenas duas mãos impotentes
não podes romper tuas algemas:
nada escuta o grito no penhasco
e o asco te torna bicho de casco.










     O alemucho

Tu foste exilado lá de Santa Cruz
tu já estavas exilado na tua terra
a mão direita estendeu-se, mas
não foi para desejar-te bom-dia
tu viste o não na palma da mão.

Agora tu estás de todos distante:
o que te resta nesse eterno exílio
enquanto o inimigo tudo pisoteia
senão o risco da caneta no papel
senão a calma da letra tão morta?

Tu ficas aqui no velório da ilusão
a velar a ilusão de que o defunto
tenha tido alguma alma, eterna,
que ele possa ressuscitar um dia
limpar os prédios de tanta perda.

Enquanto tua pequena filha fala
da morte da tua avó, sua bisavó
das mortas que ainda pôde velar
tu calas a dor de não teres podido
enterrar os parentes que amaste.

Tu mesmo hás de morrer sozinho
rodeado de vazio por todos lados
tu terás de arrastar o teu caixão
até o cemitério, fazer a tua cova
sem que uma lápide aí se ponha.

De que adianta estar à esquerda
do outro lado de toda esquerda
se já perdeste os teus parentes
se não tens pátria, és ninguém,
para nada melhor mais servires?

Ainda podes ouvir um pássaro
um bentevi a cantar só para ti

como se te amasse a natureza
como se ela quisesse te abrigar
berrando que bom que eu te vi!






































     Arrecifes do Recife

Teus dedos com sangue rabiscam
palavras na vidraça, na paisagem.
Tu atrapalhas nas parcas palavras
os pássaros nas árvores pousados.

Tu lambuzas a luz desse amanhã
como se teu rubro fosse o poente
como se teu leve traço na vidraça
fosse lido algum dia por tua raça.

Numa igreja barroca lá do Recife
uma orquestra de câmara ouviste
mais músicos do que povo havia:
e quem estava, bem pouco ouvia.

Esse povo já te pagou um salário
e tu só viste sangue na paisagem:
ora sonha nas pautas da melodia
esse povo louvará Mozart um dia.

Tenta lavar o rubro da paisagem
tenta encontrar nela a passagem
não haverá só gado na pastagem
não se terá de vender massagem.

Lava teus dedos ditos perversos
lava sangues e rubros em versos
vê se podes ser igual ao escravo
vê se louvas o dono de escravos.

O verde das árvores - tão rubro
e teu rubro não crê no Outubro:
no entanto é tamanha a pobreza
nos corpos e mentes das gentes.

Minh'alma, gentil, tu te partiste
tão cedo nessa vida descontente
pousa numa página tão precária
tenta ir longe de terra tão triste.

Se num assento tão pouco etéreo
memória dessa vida se consente
relembra um certo amor ardente
que em teu peito já teve império.




































     Pegadas de Anchieta
Essas palavras para ti tão essenciais
estão jogadas longe como os funerais
para elas não há lugar numa gráfica
após as eleições e mil versos sáficos.

Tu não pagaste pelas tuas palavras
tuas linhas ficarão sempre apagadas
como se não tivessem sido escritas
ou apenas fossem moinho de oração.

Sossega desse teu sonho-desespero
de crer que leões venham a chorar
que lobos possam parar de uivar e
que um novo tempo possa brotar.

Não sei onde estão as andorinhas
sei que com elas se esvai o verão
sei que buscam a melhor estação:
segue o caminho das andorinhas.

Aqui desfilam fascistas pelas ruas
e desfilam tantos carros de assalto
aqui as almas estão todas tão nuas
nosso destino passa pelo cadafalso.

É tanta aqui a miséria, tanto o luxo
miséria no corpo, miséria na mente
quem pensa é tratado como bruxo
rápido se escoam os restos de gente.

No sóbrio olvido de todas gráficas
fiquem versos só para ti essenciais:
tua palavra não é palavra sagrada
e nem pão tem a gente das gerais.

Pelas ruas, pelas praias de San Pablo
não se avistam poemas e promessas:
apenas pó, pedra e asfalto na cidade
restos de galinha e farofa nas areias.

        A caveira

De tua terra te sentiste exilado
a tua terra tu perdeste, outrora
quando ainda tinhas a quimera
de teres uma pátria, uma terra.

Essa terra tem dono, tua não é:
em cada curva de suas estradas
uma perda das mais desastradas
e não há piedade em seus astros...

Do alto do ripado ri-se a caveira
do teuto de sua última comilança:
também ri alegre a elite brasileira
arrotando carne branca na pança.

As vidas e os dentes que perdeste
quando dormiste entre os canibais
quando deitaste na rede as cunhãs
quando não leste os falsos sorrisos.

Perdido está o percurso impossível
os anos, antanhos que desperdiçaste
caminhando em meio a esses gentios
olhos vazios contemplam a taba tupi.















               Liberdades

Não há nada que recupere braços fendidos no passado
não há nada que traga de volta o que então foi perdido:
não só por maldade alheia é que se impôs a lei da areia
mas por erro teu, erro do teu avô e erro do teu bisavô
todos crendo que atrás do sorriso não houvesse inimigo.

Agora podes pedir desculpas por tu estares onde estás
podes culpar-te diante do espelho, espetar-te os olhos
podes tentar sair do país, podes largar qualquer pensar
dar aos teus filhos algum caminho que tenha salvação
mas podes também tremer, ficar, em poemas orar, orar.




























          Quem vai, quem fica

O teu lugar não é aqui, o teu lugar é lá longe
não é um lugar só na terra onde tu nasceste
é um lugar com história bem diversa da tua
é um lugar com um tempo que não foi o teu.

Agora, onde quer que andes, é exílio a terra
à beira do rio choras encruzilhadas perdidas
és carta estranha, fora do baralho da história
lixo a turvar o sono dos justos, dos ajustados.

Nada mais te restará, senão servir de ponte
precária ponte entre os abismos dos montes
para crianças em busca de novos horizontes.

Não tens mais doces, e não tens mais doçuras
não sei por que ainda ostentas tais amarguras
se aos mortos não se permitem mais canduras!






















          Terceiro mundo

Quando aprendeste a andar, os deuses te advertiram
     não pode o homem suportar a força do raio no ar...

Mas tu insististe em andar descoberto pelos morros
     um raio atravessou-te o corpo, e ora contemplas...

A tua fragmentação tu contemplas, pouco a pouco
     um dia te cai um pedaço, depois outro, e assim...

Assim vais, dia após dia, vendo pedaços teus a voar
     como se fosses brinquedo de molas a desmontar...

Enquanto no céu impera Zeus, montado sobre nuvens
     tu, pobre cachorro, caminhas rápido para o fim...

Por fim, nem na memória dos teus filhos terás tempo
     não pudeste ajudá-los a encontrar melhor lugar...






















          Gritos no ar

Onde estarão os nossos mortos?
     Voando nas asas desses pássaros pelo ar?

Gritando no bico dos anus pretos?
     Se escondendo nas palhas das capoeiras?

Catando não sei o quê nas macegas?
     Fazendo não sei o quê no ar do teu peito?































          O Progresso

Não importa quantas mortes isso custe
o que quero é que por um dia ao menos
o sol pare no ar, ilumine teu resplendor.

Que todas as gentes, que todos os povos
se curvem ao teu resplendor algum dia
por um dia ao menos, ao teu resplendor.

Tu és aquele deus grande e onipotente
a caminhar entre cadáveres ambulantes
a brilhar por cima dos mortos matados.

Os teus inimigos todos em doida fuga
contemplam a tua grandiosa ascensão
mas deles só ri o brilho dos teus olhos.

Ninguém mesmo pode mais do que tu
ninguém é mais lindo nem viverá mais
tu és um deus, tu és mais que imortal.

Tu és aquele que vive morrendo, ai, ai
tão eterno que ninguém há de perceber
os tantos cadáveres jogados pelos cantos.

Ninguém há de ver nas brancas túnicas
as manchas do sangue alheio, não verá:
é de cérebros moídos o néctar que bebes.

De homens matados, os cérebros moídos
mais um toque de canela, casca de limão
preparas o teu drinque, ó rei da estação!








                Cratera cativa

Essas mãos que em cálice erguem a nossa oferenda
buscando no azul o além que à pobreza nua atenda
essas mãos desnudas, replenas de caminhos e calos
mãos a oferendar o róseo do seu sangue sem saída
mãos a oferendar a alvura das buscas jamais feitas
essas mãos estendem águas a tantas fendas feridas
para descambarem, incertas, no regaço do cansaço...

Novamente se ergue o cálice tão vazio de oferendas
novamente mira esse azul tão ausente de respostas
para depor no pires do pobre a esmola do perdido
para depor o parco espírito de um país mal parido
para recompor a fenda feita na carne mais cansada
para apor asas nos braços em busca do alto empíreo
supondo que há de preencher o azul a cratera cativa.
























     Sem Caná, sem Canaã

Por todos os lados, o roubo, a mentira
até por dentro de ti, engodo e ausência.

Nas tarde do verão, o império da treva
pelos desertos teus, um javali a correr.

Sonetos da perdida esperança, por que
será que tudo é agora tão difícil para ti?

Mesmo o verso puro, o verso purificado
percorre a perversa máquina da miséria.

De que adianta fazeres calos nos dedos
pendurado à caneta, tábua da salvação?

A linda princesa não chorará a tua saída
no caminho das caravanas, água perdida.

Enquanto se erguem barracas na encosta
tu te estendes de borco na areia, e calas.

Deixa as trevas da noite correrem quietas
deixa o bandido festejar falácia no palácio.

Amanhã, quando o dia também não raiar
terás ainda um grande deserto a percorrer.

Tu és aquele que, sem povo consigo, não há
de ver a terra de Canaã, nem nela entrará...










        Calendas degradadas

Cantam os monges da abadia mais ausente
como se vozes sem corpo pudessem ressoar.

Pobres mãos, de tudo despojadas, repousam
no banco de madeira de uma igreja qualquer.

Um solista canta o seu solitário solo como se
a sua voz gregoriana ainda pudesse ressoar.

Alfarrábios antigos em vetustas bibliotecas
recolhem olhares saudosos de perdido saber.

Um monge copista caminha pelos corredores
repousa os olhos cansados na fonte do jardim.

Um canário cativo na gaiola de madeira azul
pula e canta como se alegria ainda houvesse.

Correm as folhas tantas dos teus calendários
como se dias houvesse na ausência de tempo.



















     Cicio de flechas em cio

Quanta alegria há na alma desse povão
quanta tristeza na pena do parvo poeta!
Orgulha-te dos teus inimigos, orgulha-te
e engulhos engole com a cara de pulha!

De que adianta luzir como um pássaro
pelas campinas do cerrado mais vazio
se tantos dedos te acusam de maldito
semeador de gelos em campo tão frio?

Ninguém mais sabe em quantas tardes
hás de poder requentar a alma sozinha
hás de poder tocar dedos duma vizinha
hás de tratar bem amores tão tardios...

Tu despertas o ódio que dormia à soleira
e aqueles anjos que caminham para o rio
põem-se a catar seus arcos e suas anjas
para soltarem as flechas de fogo em cio...




















          Na lata de lixo

A sujeira de um
          e a sujeira de todos
                    dão-se as mãos...

Dançam a ciranda
          dos monstros de lodo
                    pelas poças de lama.

Deitada na grama
          olha uma criança
                    das nuvens a dança .

Passa um camelo
          passa uma girafa
                    passa-passa gavião.

Na beira desse rio
          tem água e tem jacaré
                    tem peixe e tem muié.

Eu estou pervertido
          tu estás pervertido
                    nós estamos pervertidos.

Eu minto, tu mentes
          nós e vós mentimos
                    pureza não houve, não há.

Um aperto de mãos
          tornou-se impossível
                    tornou-se contágio.

Fala-se mal de um
          fala-se mal de outro
                    fala-se mal de todos.

Razão há para falar
          mal de um, mal de todos
                    razão não houve, não há.

A cabeça se inclina
          a gota saloba escorre
                    mais um dia transcorre.





































     Vale do amanhecer
O que fazer com esses pobres deuses
incapazes de resistir a novos tempos?

Deixá-los pousar em peso, enterrados
vivos no fundo dos maiores templos?

Uma andorinha insiste, tão sozinha
em fazer o verão, insiste com outras.

Façam essas andorinhas andarilhas
o verão da terra sem outra estação!

Brasília, alva capital do teu ex-país
onde está em ti saída para teu povo?

Passo por corredores cheios de lama
é difícil não se cair em chão tão liso!

Corre solta a língua mais viperina
pouco se vê de uma asa alta a voar.

São tantas as saudades aí esparsas
do que poderia ter sido e jamais foi!

Tu caíste na armadilha dos índios
de uma cidade sem tanta esquina!

São tantas dos zulus as armadilhas
ó andorinha do inverno andarilha!

De que adianta ergueres a tua casa
se nela a verme sujo vai se abrigar?

Posto contra a parede, prisioneiro,
tu próprio és verme, companheiro.

De que vale um vale do amanhecer
se lá não há futuro para se prever?


     Buritis da ausência

Tu não tens o direito de existir
é isso que te dita o teu inimigo.

Ele consegue sufocar a tua voz
tu evolas do planalto, inexistes.

Mesmo assim insistes em existir
queres que tua voz se faça ouvir.

Entre os teus olhos arregalados
amontoam-se montes de ruínas.

A tua cerviz se dobra de cansaço
trôpego tentas um novo arremate.

Das mil feridas de setas ligeiras
esvai-se o sangue na rubra areia.

Na calada da noite te perguntas
se é só tua tamanha maldade, tua.

De novo te calas, vês a palmeira
liso tronco, e no alto a cumieira.

Buritis de tanta tanta ausência
nada consola, não há paciência.

Da palmeira a magra elegância
do pinheiro, saudade, errância.










Mezzo del camin

Eu aqui ora me sentencio
a trabalhar nesse campo;
eu aqui ora me penitencio
trabalhando nesse campo.

Que os meses e anos passem
que passem as aves do país
e passem pais, passem avós
e não se cumpra a promessa.

Nas tardes dum outro verão
nas noites de outro inferno
não se ouça aqui lamentação
aqui não se conhece perdão.

Tu, en el mezzo del camin
pintas los lábios de carmim
tua rota está toda perdida
vai tu ser palhaço na vida.




















          Subdesarollo

Tantas e tantas horas, ai, tu já nisso ficaste
que ora te perguntas se nisso não te finaste.

Ó amigos que longe estais, ó meus amigos,
será o mundo melhor com tantos inimigos?

Não vamos andar por aí pedindo esmolas
vamos viver o exílio que não nos consola.

Ai, ó passos trôpegos, perdidos, passivos
onde estarão os caminhos menos cativos?

Agora a tua vida já se perdeu, sem volta,
e mesmo assim o teu peito abriga revolta?

Tu não tens mais projeto algum, nenhum
tu és apenas o resto do latino probandum.

Tu nasceste no país e tempo mais errado
tu já nasceste com a marca do desgraçado.

Tu rezaste para os deuses mais errados
deuses falsos, os deuses mais castrados...

Agora não há mais nada a se fazer, nada
trata apenas de ir pra cama com a amada.

Abandona as letras, as estradas de todo
caminha só na lama, te arrasta no lodo.










      Duras ditas

A profissão que um dia se perdeu
o emprego que um dia se perdeu
a vida que desde então se perdeu:
perdida também está a outra vida
a vida alternativa que daí se viveu.

Olha para os teus filhos, olha agora
brinca com eles, sorri para eles, vê,
mesmo que vejas caveiras no riso,
não foi culpa de todos o já perdido
há miragens num espelho partido.

Podes tentar recompor teus passos
mas, a vida perdida, perdida está
para sempre e sempre foi perdida
não há perdão que a traga de volta
e jamais será punido o teu inimigo.






















          Medéia

Medéia, onde estão os teus filhos?
Foi bom ter-se vingado em Jasão?
Essas crianças com a marca do pai
devem elas ter o mesmo destino?

No punhal que tu ergues, Medéia,
na pele e na carne que perfuras
tu furas tua pele, furas tua carne
tu derramas um cálice consagrado
tu apagas a rubra chama do altar!

Por que não gritas o teu grande ódio
para dentro da noite, dentro do mar:
podes perder os teus grandes gritos
perder não precisas tuas lindas crias!

-     -     -     -     -     -

Pouco resta nas mãos amarguradas
envolvo a tua cintura com ternura
abrigo o triste sorriso que acenas
colho o brilho que há em teu olhar
plena ausência traça a tua figura.

Tu és feita de ausências, de lutos
tentaste lutar no país impossível
a espada posta no prato da balança
pesou contra ti, cortou-te o peito:
caminho contigo pelo Pelourinho.










     Destino americano

De que adiantam os anos de percurso
se ora não tens, na estrada, a coragem
para mover a espada contra o homem
que te impede o destino, que é destino?

Ele quis te matar, como antes matou
teus irmãos, e voltou sempre a matar:
assim é a lei do seu mundo, a sua lei,
a lei que ele impôs a ti, a toda a grei.

Os teus filhos irão contra as muralhas
contra os tiranos, os muros, as tralhas
e seus corpos insepultos hão de ficar
sendo devorados por aves de carniça!

Triste destino, a piedade na insciência
eu quero é Hoto-Sana, gorducho buda
sorrindo alegre, com sorriso oriental:
braços para o alto, vamos nós dançar!




















         Édipo e o poeta

Os teus versos não geram mais-valia
os teus versos não valorizam o capital
os teus versos não valem nada, nada
ainda que neles o teu sangue escorra.

Eu perdi o meu relógio, perdi o tempo
escrevendo versos de paixão perversa
no reverso da rota certa, na derrota
não há para nós um mundo ou porvir.

Nesse país insano, são era ficar louco
loucura seria não ficar louco também
loucura seria não escrever só tristeza
fazer versos mais tristes que a noite.

De que adianta tu escreveres versos
se pessoa alguma ainda há de lê-los
se teus filhos já passam necessidade
e ninguém compra livros de poesia?

Não, de nada adianta fazeres versos
não adianta sanar assim tua loucura
fazer o único que pensas que sabes
esses versos tristes, versos da noite.

Uma vida inteira se perde a ganhar
a ganhar seu pão nosso de cada dia:
nos parcos anos que ainda te restam
pouco de ti resta para se aproveitar!

De que te adianta escrever ensaios
se a cada linha cerras outra porta
se só te pagam para que traduzas
a palavra alheia, a que não é tua?

Tu podias dar-te um tiro, ó filho
um tiro podias te dar, meu filho
tudo te convida, comanda ao tiro

um tiro é tudo que te resta, tudo.

Tu adias o tiro na testa, covarde
e continuas a escrever os versos
como se agora tu ainda pudesses
ter na mão tuas vidas já perdidas!

Teus filhos estão te suplicando pão
e tu escreves versos como solução:
tu és criminoso, tu não tens perdão
eles têm direito a mais do que pão.

O roubo já se tornou aqui esperteza
inteligência só vale como esperteza:
tu vês tua vida toda se desperdiçar
pelas ruas de uma cidade sem mar.

Navegações grandes não se fazem
tu não sabes mais por que estás aí:
tu és aquele que não é, nunca será
tu és o que não presta, o estouvado.

Tu não soubeste matar esse homem
que se atravessou em teu caminho:
tu não foste rei, foste o perturbado
versos a escrever em teu cantinho.

Tu não tiveste jeito para essa vida
não sabias andar com arma na mão
não ousaste matar o teu pseudo-pai
aceitaste tua morte em teu coração.

Tu aceitaste o destino do teu irmão
a ti não chegaste, aquém tu ficaste:
não tem direito a versos da esfinge
quem as mãos de sangue não tinge.





     No meio do caminho

De quem é esse rosto, cheio de sombras
rosto de meia-noite, vulto que assombra?
Dizem os espíritos que ele seria o teu pai
não creias em tanto espírito, andando vai.

Havia um pai no meio do caminho, havia
no meio do caminho havia um pai, havia
nessa tua vida de retinas tão recansadas
um pai de pedra impedia o teu caminho.

Tantas voltas deste, tantas tantas voltas
sem saber que terias vida tão cansativa
e não era pai quem pai do país se dizia:
havia pedra e meia no meio do caminho.

Ah, como foi difícil para ti descobrires
o rosto que no vulto em sombras havia
rosto de quem pai se dizia e pai não era
um rosto de atravancador de caminhos!

Não foi ele quem quis antes a tua morte
não foi ele quem chorou os teus irmãos
não foi ele quem apenas pensou em si
não foi ele quem deixou solta a esfinge?

Tu não dormiste com uma gregária mãe
tu não te acasalaste com a viúva-rainha
tu não tinhas nenhum trono à tua espera
e a esfinge - contigo - nem quis conversa.

No entanto, teus filhos jazem ao relento
pasto para os urubus, defuntos ao vento
e se não matares o tal vulto ensombrado
não haverá filhos, nem sequer tu haverá.





     O navio fantasma

Sobes num navio que já partiu
e nele navegas por vinte anos:
há muito já te afogaste no cais
mas fazes de conta que viajas.

Difícil saber por que nós ainda
não enfiamos a bala na pinha:
ora mais difícil saber por que
esquecemos a hora da partida...

Nada mais há aqui a esperar
de vidas já tão desperdiçadas
nunca houve nada a esperar
tudo sempre esteve perdido.

À margem canhota da história
nada mais procuras no agora:
não respondes ao aceno alheio
não abraças sedosas mulheres.

Tu estás longe de tudo daqui
estás num navio que já partiu
navegas em mares distantes
num navio que sem ti partiu.

Nele navegas a pura ausência
e pura ausência navega em ti
ausência enche tua existência
conspurca o possível não feito.

Amigos, não tens, e nem agora
colegas tu não queres nem ver
discípulos não te são confiados
de amadas achas grande graça.

Um navio-fantasma ora navega
por remotos mares das brumas:
nele comanda o capitão Nenhum

em sua busca de coisa nenhuma.

Nada abriga esse cais já decaído
esse porto onde ninguém atraca
onde todos os navios já partiram
onde só existe a minha matraca.



































Consolação
A vida está boa, está tranqüila
mas tu... só sabes viver no Não:
não desesperes na vida tranqüila
logo virão as cheias da estação.

Por todos esses anos de ausência
por essa vida que jamais foi tua
pelo inferno que quis tua demência
não lamentes tanto, segue sem rua.

Teu inimigo não merece o teu sofrer
ainda há vida, muita vida a perder
alguma coisa até tu já aprendeste:
alguma coisa ainda se poderá fazer.

Os mortos caminham por essas ruas
daqueles que não aprenderam a odiar
dos que jamais aprenderão a se virar
e nunca hão de ver verão na estação.

Nos verões de tamanho desatino
tu te perguntas por teu destino:
tira do peito do pé o espinho
tira do pé e do peito o espinho.

Há melodias nas tardes de amores
há pássaros a cantarolar pelo ar
há alegrias nas abelhas e flores
há viços e verdes palmas no lar.

O melhor amigo encontrou santa paz
descansa agora em um campo santo
e tu dedilhas Bach no velho piano
um terceiro não seria bom parceiro.

A tua filha iria brincar com água
o teu filho decifraria um livro:
no espelho de uma vida impossível
mira o teu rosto com menos mágoa.

          Miserabile

Meu filho, quantos ossos te partiram
quantas manchas roxas tens pelo corpo
e quantos fiapos ficaram em tua alma
em quantos pedaços tu já te partiste?

Podes tentar morder as tuas orelhas
tentar marcar a fuça de teus algozes
cortar os bagos dos grandes tiranos:
tu és pequeno e fraco, e vais perder.

Eu já perdi, perderam meu pai e avô
não tiveram mais coragem e nem força
queriam só um pouco de devaneio e paz
mas, feito cusco sarnento, apanharam.

Tenho vergonha de lembrar seus olhos
vergonha de me ver em seu cristalino
não tenho mais onde ficar nem onde ir
mas lamento ter repassado a má vida.

A parca nossa de cada dia nos dai hoje
ela é imposta a cada dia, a cada noite
não nos perdoam os credores lá de fora
e não nos pagam devedores cá de dentro.















          O rosto reposto

Em tuas mãos o rosto roto de teu filho
recostado no canto, és apenas um tronco:
pernas perdidas percorrem um passadiço.

Tu acalentaste uma cabeça, ela não era
tu acarinhaste um rosto teu conhecido
gotas salobas pingaram, levaram a dor.

Embalaste em teus braços esses restos,
trapos que restaram do filho bem-amado:
no espelho dos olhos baços, o teu brado.

Dedos trêmulos percorreram teu ouvido:
eram teus os dedos, nem isso tu sabias
pernas não mais haviam, apenas olvido.

Esperança não há mais, nem muletas:
tu condenaste teu filho à tua morte
a essa morte em vida: mundo terceiro.

Se o bandido que deu o tiro e daí fugiu
soubesse da tua dor, mais risadas daria:
contempla agora os olhos baços do filho.

Não há mais o que possas fazer, não há:
não adianta quereres viver na Europa
ninguém te quer lá e sequer no Canadá.

Sul-americano na Europa não tem alma
ela fica afogada no meio do Atlântico
tu és apenas um bicho, animal de carga.

Não sei quanto tempo de vida te resta
sei que já morreu para ti a esperança:
põe-te a domar mais uma nova potranca.




Ana Maria do Bom Fim

Na tela do velho Cine Paramount
sangue de touro escorria na areia
e na tua mão escorria suor frio
com medo de tocar em Ana Maria.

Ela hoje nem mais se lembra de ti
mas se a tua mão em sua pousasse
teus lábios teriam tremido sempre
lá pelos escurinhos do Bom Fim.

Querias a mão e toda a Ana Maria
mas ela se refugiou lá pela Bahia
não viste alegria em Porto Alegre
não viste porto onde porto havia.

Ficaste olhando o sangue na areia
não viste na espada ousada alegria
não soubeste sob o manto encarnado
admirar um nobre gesto, envenenado.

Corre corre, carrilhão, corre corre
não seria sangue o que escorreria
na amora que de ti um homem faria
chora agora a vida perdida, e morre.















     O cristão e o sacristão

Contabilizas as tuas tantas mortes
que sangram teus dedos em segredo:
elas te ferem bem mais que as chagas
de um Cristo virtual na cruz pregado.

Pretendes que eu me ponha mais uma vez
a adorar-te como se sacra fosse a cruz
ou que eu adore em uma parede qualquer
o teu retrato em sangue, espinho e luz?

Depois de já ter vivido tantas maldades
ora estendidas como tapetes a meus passos
tu queres que eu me humilhe de quatro
para a tua glória no Domingo de Ramos?

























                Chita

O levita já quer levitar do tamborete
quer dar uma surra de corda no templo
expulsar os vendilhões, impor o exemplo!

Tu queres mais que isso: queres espremer
mil soldados romanos, e fazê-los correr
como se fosses um dopado Asterix gaulês!

Queres jogar todos ao mar feito piratas
mas não encontras do espinafre as latas
dizes Shazam, e não viras sequer Tarzã!

Como queres pegar então os teus algozes
os capitães do mato com as longas lanças
se não és Quixote e sequer Sancho Pança?

Olvidas os banqueiros e seus dinheiros
dinheiros não tens, vives nos banheiros
como se piriris salvassem pífios meeiros!




















               Decadência

Um pássaro cerra as asas e se deixa tombar
parecendo falecer, de repente, em pleno ar:
não é um gavião que súbito cai sobre a presa:
tu foste jogado do alto da muralha do castelo
sobre as rochas do mar: elas buscam tua boca.

O teu coração em pânico está cansado demais
também ele cerrou as asas, encerrou seu vôo
não quer mais continuar lutando pelo castelo
ele já se deixa tombar, tombar em vida tumular
deixa os outros celebrar suas fúteis vitórias.

Do lugar onde nasceste, foste expulso, banido
nunca mais pudeste voltar a teu ninho perdido
tu foste tratado como se fosses o pior bandido
tu nunca mais viste a dúzia de pseudo-irmãos
contentes estão por te verem longe da herança.

Pássaro sem pouso nem repouso, pássaro ao léu
cais sobre recifes do mar feito pedra do céu
polido pelos ínvios caminhos do acaso, decais
sem ter na pedra, que te abriga, porto ou cais
sem ter no percurso até as grotas brilho ou paz.
















          Brasil, ai Brasil

Tu já sentes tanta vergonha de ti mesmo
mais vergonha do que poderias suportar
tu queres te enfiar sob um imenso tapete
para não te veres mais em algum espelho
para não teres de mirar mais uma derrota.

Pelas ruas continuam andando os famintos
escolas precárias ostentam lúbrica pobreza
olhas as bocas sem dentes, os olhos vazios
a idiotice caminhando pelas salas e ruas
e a miséria se multiplicando ao infinito.

Isso é Brasil, tua pátria tão mal amada
a terra que escolheram os teus bisavós
a terra a que te condenaram teus avós
a terra que te desrecomendaram os pais
a terra a que condenas netos, bisnetos.

Aprende, contudo, com os ricos da Bahia
a viver bem às custas da miséria do peão
a declamar santa igualdade e democracia
praticando o conforto só teu a cada dia:
não têm jeito o pobre e o rico desse chão.

Recolhe tua palavra, tu não podes falar
em nome da riqueze e nem no da pobreza:
não és aquele que sabe o que é realeza
tu és aquele que ficou sem um caminho:
num país sem saída, um tipo sem ninho.

Já pudeste escapar do latino continente
mas não encontraste um emprego decente
não soubeste encontrar um job e ser Bob
não conseguiste dar à tua família abrigo:
não queiras então governar o mundo, amigo.




          Venerável Vênus

Tu és um louco, e em louco não se confia
tu tanto chafurdaste na lama noite e dia
não conseguiste estender a mão ao amigo
te desperdiçaste por caminhos perdidos:
teus amigos pagam por teus desserviços.

Não inventes inimigos pra poderes culpar:
tu és teu maior inimigo, o único inimigo;
se as tuas pernas feridas ainda caminham
imagina o quanto poderias ter caminhado
sem carregar estátuas lotadas de vazios.

Havia uma santa mãe, mãe da misericórdia
santa esperança plantada em teu coração
uma deusa como nas mulheres não se via:
ela te fez venerar santa virgem no templo
e te impede o advento no tempo da fêmea.






















      Um vampiro decadente

Como um vampiro tu carregas contigo
um pouco da terra do paraíso perdido:
tu foste expulso da tua Transilvânia
só a donzela predileta te acompanha:
o sangue cansado que na veia escorre
é sangue que em antigos livros corre.

Quando penetrar luz em tua sepultura
hão de descobrir o pó que te tornaste:
somente alguns pergaminhos rabiscados
velhos e virginais como freira invicta:
ignotos pós, inocentes de toda leitura
sequer a sustentar dos ratos a crítica.


























Açoites da infância

Ó Édipo, tu mataste o teu pai
e ele era o teu melhor aliado:
seria melhor tu não teres nascido
não terias doado a tua desgraça.

Éramos crianças pobres, fracas
incapazes de erguer uma espada
contra aqueles que nos batiam,
contra a esfinge que devorava.

Só nossos braços bracejavam
e as pernas nuas esperneavam
enquanto a garra da crueldade
açoitava a carne de sua carne.

Perdemos o riso e nossa terra
tentamos encontrar siso no além:
porém mais que a pele marcada
era a alma por lepra devorada.




















          Silésios-gaúchos

Quanto mais tu avanças em anos
tanto menos enxergas na estrada
tanto mais te oprime o passado.

Tu revês no monitor do teu coração
cenas que decidiram a destinação:
és herdeiro de dupla condenação.

No lado de cá e de lá do oceano
tu e teus avós fostes condenados:
abscessos, desarmados desamados.

Não adianta ao leite aditar açúcar:
a lágrima à beira da calçada suja
nada lava, a nada leva, nada conduz.

És fragmento de uma raça em extinção
não haverá para teus netos salvação:
no Rio dessas Mortes bracejas em vão.




















          Batismo

Enquanto percorres a trilha do lobo
e do teu acaso cais no fundo do poço
desmascara da tragédia o imenso lodo.

Trinta anos depois do teu retorno
de uma estranha viagem pela Europa
tu vês tua terra toda fora de rota.

Toma essa máscara, remove a tua lama
move para cima os cantos dos lábios
obriga ao riso a face que quer chorar.

Em meio à lama e à chuva pelo chão
reluz o sangue dos dedos sem luvas:
é vão teu esforço de viver no desvão.

Promete pássaros ao pé peregrino
promete repouso ao peito inquieto
promete alento à lâmpada solitária.

Seria bom se resposta já houvesse
seria Natal se Papai Noel viesse
serias feliz se um lar te tivesse.

Caminha na estrada da tua solidão
inventa qualquer meta, uma função
deixa a chuva lavar a lama da mão.

Perdeste teus empregos, a tua opção
latejam pus e pedras em teu coração:
como esperar da água a purificação?








     O louro e a chave
Um papagaio carrega no bico
a chave dourada duma utopia:
nas águas ralas do seco rio
botos festejam o último dia.

Das grandes navegações feitas
sabe o boto por onde já passou
sabe da rede que já o prendeu
sabe do mercúrio que o marcou.

Mãos que fingiram dar-te ajuda
mãos que impuseram sua falsa paz
gravatas que vigiaram no escuro
armas prontas a disparar por trás.

Bates à porta do palácio imperial:
ninguém há de abrir a porta larga
não para ti, que não és ninguém
não para um fantasma sem um além.

Diante do palácio dispara um tiro
na tua cabeça ou na do imperador
talvez assim alguém escute a dor
talvez façam um soneto liro-liro.

Recorda as águas sujas do rio Guaíba
com tantos rios que nele se minguam:
em suas águas tu não tiveste abrigo
só teu cadáver abrigar elas queriam.

Mira do fundo do Guaíba que não tens
a clave do papagaio de bico dourado;
mira de fora dos lá muitos ninguéns
o fulgor do teu palácio encantado.

Repassa na farinha o perdido Natal
frita bolinhos, tu frita-bolinhos:
janeiro há de plantar-te no hospital
fevereiro não irá te dar ao Guaíba.

           Memento mortui
Não há lugar em que se possa ter paz:
uma janela que se abre para um gramado
e o verás a lutar com raízes de árvores
(a guerra é o deus onipresente, total).

Por toda parte está ele que tudo destrói
o deus que nada sabe, mas tudo arruína:
com tuas mãos construíste as muralhas
(que ora te prendem distante das gentes).

Tu pedias aos deuses um posto na pátria
nos domínios da terra silésia ou gaúcha
mas os deuses não viram os teus fumos
(ou quando viram, fogo não mais havia).

Proclamas correndo em sermões soturnos
em paredes de catedrais editos fixados
tu encaminhas teu susto ante emblemas
(a pátria é tua prisão, engodo herdado).

Queres tu ficar apenas à beira do tempo
à beira da janela vendo correr as águas
vendo espólios e náufragos na torrente
(como a sair da raiz usando a enchente)?

Ai flores do verde pinho, meus espinhos
vós nos deixásteis expulsos, sozinhos
tão longe de nossos avós e dos bisavós
(diálogo não reconhecem vossas corolas)!

De tua vó restaram uns móveis antigos
tralhas carcomidas na pobreza ampliada
restos inúteis como inútil é a saudade
(passado sem jeito, futuro sem solução).

Ora, vê enterrada na cova o que restou
de tua avó, de suas falas, da infância
vê o que há a fazer com ossos partidos
(para ti a esperança se foi, nada será).

Saudades do matão

Maus anjos te desencaminharam
E bons demônios já te salvaram:
por anjos nós nem mesmo vivemos
e por demos não apenas morremos.

Nas tardes de um antigo verão
a dor aguardava a sua estação
tu sonhavas mil sãs primaveras
teus sonhos foram vãs quimeras.

Vai-se o homem, ficam os feitos
ficam os desafetos, os defeitos
ficam os fetos, ficam as garoas
vão-se as garotas e donas boas.

De nada adianta aqui se estrepar
é vão, nesse paisão, se esforçar
tudo acaba aqui em ódio e olvido
teu povo na orelha não tem Ouvido.

Vai-se o homem, ficam os defeitos
sossega de tua infantil ansiedade
não há mais a esperar bons feitos
vivas aqui como em qualquer cidade.

A única esperança mais honesta
é poderes repousar no cemitério
onde foram enterrados teus avós:
nele já estão todos teus sonhos.










          Per aspera ad astra

De que adiantou, meu irmão, o teu tanto trabalho
se, na hora de colher, outro encheu seu baralho?

De que adianta, minha irmã, teres filho e casa
se teu macho afro-luso não conjuga o verbo amar?

O erro não é dos outros - cara irmã, caro irmão
o erro é nosso, mas não tem remédio nem solução.

De que adianta protestar se apenas se vai apanhar
de que adianta criticar se não há saída nesse ar?

Anos que se perderam, vidas desperdiçadas em ais,
estão para sempre idos, não voltarão nunca mais.

De que adianta dizer em segredo a filhos, irmãos:
não façam o erro que fiz, vão buscar outra nação?

Ai flores do verde pinho, cantos de passarinhos
nas noites do verão, quantas bostas nos ninhos!

Se as garras da crueldade estragaram tua infância
e da prepotência a adolescência: prega tolerância!

Não. Tu és aquele que perdeu o sorriso e a sombra
perdeu a risada e o riso, mas ainda te assombras!

Antes de chegarem os cabelos brancos, a calvície
tu mergulhaste no chão como as pedras da planície.

Tu não subiste aos píncaros que rodeiam a cidade
já não sonhas mais em circular como aves no alto!

Não sabias da condenação que pesa sobre tua raça
no país da Liberté, deste murro em ponta de faca.

Podias ter passado as tardes cavalgando mulatas
e ter passado as noites bebendo cerveja em latas.

Olhas as ruas, não vês carros ou bandas passando
não crês mais em palavras de palha, promessas vãs.

O eterno retorno do mesmo vazio te enche de nada
te impõe o cansaço, estende na cama, põe na cana.

Não tens tédio, mas fome, espadas brilham na rua
ainda sonham aqueles que se deixam matar em luta.

Ficas calado, a espada na bainha, miras os reis
esperas o golpe fatal: tua raça aqui não tem vez.

Veja o teu vizinho Valdemar: brigou com o patrão
agora ele capina dia e noite só por meio tostão.

Te abaixa, te abaixa, te rebaixa até lá embaixo
beija a poeira do chão, beija a bota do patrão!

Jarra quebrou, leite derramou: sal na brancura
não adianta, seria apenas outra privada loucura!

Preso na gaiola do destino, esquece teus cantos
se não tens vôo no ar, não transmitas encantos!

Um vento varre a poeira iluminada por seco sol
moscas batem nas vidraças até o fatal arrebol.

Mora o diabo no redemunho do cerrado, aí mora
espreitando almas altas, não permite salvação.

Na terra povoada de mortos, o esforço é inútil
teutos feridos não terão no cerrado sepultura.

Por que teus bisavós foram à América de latinos
onde só puderam construir castelos de inimigos?

Saíram em busca de luz como quem vê na floresta
um vitral colorido de catedral: olhos em festa.

Quanto mais bateram em vitrais e mais labutaram

tanto mais as asas em cacos de vidro rebentaram!

Abre as janelas da ilusão, abre ao vasto mundo
talvez possas dar aos filhos algum melhor lugar.





































               Balanço

Tantos anos perdi nas emboscadas de inimigos,
fiquei feito um trem fora de rumo e de prumo.
Fiquei tão longe do que eu mais queira fazer
que minha mão se erguia por si como o destino,
no gesto de quem dispara em si um escuso tiro.
Vejo meu duplo cadáver estirado diante de mim:
o cadáver de tudo aquilo que poderia ter sido
e o cadáver adiado que restou inútil em mim:
remoto resto do percurso que deveria ter sido
e o remoto resto disso que já não será jamais.
Quando chegam cabelos brancos é duro descobrir
a triste falência que nos foi imposta cada dia.
Ficamos a ler Júlia, Sabina e o Oeste Selvagem
vemos os enlatados das sete, novelas das oito.
Mais uma vez retorna o zumbi do nosso horror
mais uma vez se faz noite o dia, faz-se a dor.
Vi o meu bisavô sentado num banquinho pobre
à sombra dos laranjais, sem rádio nem carro;
vi o meu avô se apagar com o pulmão envenado
pela fumaça dos carros que consertava calado;
vi meu pai aos trinta anos já querendo a morte
sentado a pitar palheiro, a alma virando fumaça;
em meu próprio cadáver sobrevivi, não podendo
livrar-me da minha própria existência sombria;
e se filhos tivesse eu veria eles já condenados
a cumprirem a sina do perene exílio, desamados.
No fundo das tuas olheiras cai um corpo cansado
no fundo desse poço vês brotar uma alma infeliz
um pássaro preto a bater asas como quem se diz
sem saber que somente o lê o caçador da matriz.
Sim, tentei decifrar enigmas da teuta esfinge
tentei decifrar passos do tiranossáurio atual
de nada adiantou, apenas a exílio e nojo levou.






          Diáspora

Meu filho, cansado dos anos de diáspora,
sais-te em busca de aventura e ventura:
ora de volta, não sei se ainda estás vivo.
Ao querer ajudar-te, eu te impus o exílio
sem os companheiros que temos por aqui.
No espelho do quarto, viste olhos azuis
contemplando uns cinzentos olhos magoados.
A mão acaricia a cabeça, cabelos escassos:
mais uma vida se perdeu, como a dos avós:
ao menos tentaste uma saída, e perdeste:
Anquises teve de se humilhar ante Aquiles
rastejo ante aqueles que te aniquilaram
e recebo do meu filho o cadáver em sangue.
A chance do nosso povo mora noutro lugar
mas nós não temos Sião ao aceno da mão.
























          Cavalo da mancha

Ao nosso redor a mata, bem longe da cidade
mas aqui já não anda mais a onça que mata:
agora ela anda engravatada pelas calçadas.
Não sabes como na mão te brota a chama rubra
como há longos anos se mantém essa viva luz
ao altar clamando ignoto deus que não vem.
Hércules não virá te libertar das cadeias
das invisíveis correntes que nos prendem
aos penhascos sombrios da mesquinha pobreza.
De verde tentaste pintar amarelos do deserto
tentaste passar no furo que há em cada anel
nos vazios que surgem na imposta corrente:
com os cotos pingando sangue no solo pátrio
acabaste por descobrir que pátria não tens:
grande é a liberdade de quem pátria não tem.
Deixa enterrados os teus mortos nas estepes
na encosta do morro com o luar na palmeira
tomadas e destruídas foram as vilas dos avós
tens, no chão, bengala e poeira de estrelas
e o infinito direito de morrer onde puderes
mas não de ter boa gente na terra dos pais.


















          No túmulo dos avós
Pegaste um fuzil, foste caçar aqueles
que tiraram pedaços de ti e dos teus:
somente tiros de pólvora seca pelo ar
se ouviram no vale do século passado:
como se houvesse universo e um centro
tu estás sempre em séculos de atraso
não só por viveres na América Latrina:
não serás melhor que a miséria geral
bisnetos terão ainda o pecado original.
Perguntei a passarinhos onde estarão
as almas que aquecem demais o verão,
as penas que esquecem demais o sertão:
expus ao ar o sangue das mil feridas.
Os pássaros voaram todos para o norte
e as feridas foram pasto para abutres.
Pus meu sapatinho na janela do quintal
Papai Noel só trouxe rebenque no Natal.
Não podendo mais ouvir sábios antanhos,
perguntei às pedras do túmulo dos avós
onde estaria o caminho para depôr o pó:
das pedras brotaram lágrimas e fontes
brotaram antanhos labores desperdiçados
brotaram as buscas tantas, tão perdidas
brotaram luas recortadas por palmeiras
brotaram sabiás cantando nos coqueiros
brotaram pinheiros, pinhas, gaturamos
brotaram perdas perenes no so war es mal.
Horas e horas à beira do túmulo dos avós
braços tão pequenos em terra tão grande
destinos marcados pelo furor das feridas
ódio esconso no canto dos olhos e bocas
e tu a confiar no límpido sorriso fatal
nas marcas da pobreza virtuosa e torta
como se ela não cozinhasse privilégios:
miséria tua em um povo sem sortilégios.





          Destino sul-americano
Tu perdeste o emprego, a terra natal, os amigos
tu tiveste de sair para longe, sem nada na mão.
O lugar que era teu - esse outros já te tomaram
das mulheres que eram tuas, outros se serviram.
Para ti restaram estrada, descampado, retiradas
como um macho qualquer que perdeu a sua batalha.
Podes imaginar que venceram os espíritos menores
que perdeste porque estavas além do atraso geral.
De nada adianta, porém, o teu cio e o teu desvio
the show goes on, além da miséria sul-americana.
Tu e tua geração estão perdidos, desperdiçados
cadáveres insepultos fedendo a deserto no acaso.
Se fores para o primeiro mundo, serás um último
e no terceiro não serás primeiro nem nada serás.


























               Querência

Eu gaúcho guasca perdido nas terras do goiá
choro as saudades da minha querência amada.

Mas homem não chora, cinza cobre o cerrado
morros, verdes matas me chamariam ao pago.

Quero ouvir o grito do quero-quero guerreiro
quero voar pelos campos da terra onde nasci.

Meu coração caminha pilchado pelo cerrado
não escuta na terra alheia ecos sem espora.

Quero ver o rio Jacuí, o Camaquã, o Taquari
quero rever Sinimbu, Soledade e Sobradinho.

Onde estão a minha mãe, minha avó, bisavó
onde as tumbas daqueles que já me amaram?

Ergue-se meu braço, vejo o dedo no gatilho
abrindo furo no crânio, desfazendo o vazio.

Na terra do Rio Grande não consegui galopar
quero a querência que os anos tornaram ar.

Quero que o meu corpo repouse naquela terra
onde meus bisavós jazem na encosta da serra.

O anoitecer desenha rebenques, réus e reis
caretas de um sujeito sem jeito e nem vez.










               Perspectivas

A tua escrivaninha antiga, barca dos devaneios,
navega pelos igarapés mais sombrios da floresta
voa como lancha voadeira por mares azuis-lazuis
suspira saudades nos portos deixados para trás
enfia o focinho alegre em outras ondas e ares.

O computador ri da máquina de escrever atrasada
o tiro sai pela culatra, o braço pende no teclado
o barco perde impulso, flutua perdido, enfim cala
tua boca se cala, ferida de bala, dorme tua fala
não há Saber nem Arte num mundo tão idiotizado.

Mãos de Cristo sangrando no madeiro de mármore
mãos perfuradas por outras mãos, muito humanas
fazem falta os mortos que na dureza nos ajudaram
sentiste na pele a arrogância latina e européia
tu não podes pensar, aqui se capa qualquer idéia.

Das navegações grandes que já se fizeram para cá
restaram suspiros, beiras de cais, lenços brancos
lenços bordados com os caligramas do puro engano
iniciais se perdendo em desterros, águas e mágoas
crimes feitos como virtude nas sangrias antanhas.
















          Passo da Guarda

Os músculos do meu coração estão atrofiados
não sabem mais lembrar senão do Rio Grande
não sabem senão suspirar saudades do pago
lembrar coxilhas de Encruzilhada, Rio Pardo
os remansos do Passo da Guarda, do Camaquã.

Ai, meus olhos, por que sempre se sobrepõem
à visão do cerrado goiano o pampa lá do Sul,
os morros cobertos de verde na terra gaúcha
os pés de pinheiro, pitanga, jamais do pequi?

A vida que tu querias ter vivido e não pudeste
perpassa o cemitério dos olhos e não se esvai
repassa por pedras brancas e não te consola.

Pequenas cruzes à beira da estrada no pampa
pequenas tragédias, ignotas aos que passam.

Te ajoelha, curva a cabeça — zune uma espada.




















     Neo-indianismo

— Diante dos teus inimigos te ajoelhaste
e, feito um vilão do faroeste, suplicaste
por tua vida e por teus filhos suplicaste?
Tu, meu filho não és, guerreiro da taba
da taba tupi, não és, não, tu não és não!
Orgulho não tens, guerreiro da taba tupi?!

-Meu pai, meu pai, guerreiro eu não serei
orgulho da tribo tupi não tenho nem terei
se puder, outro povo logo me escolherei
dum pai com tacape e boré, nada levarei
exceto vergonha da terra sem lei nem rei.

-Vai, ex-filho meu, cumprir o teu destino
não resta espaço para ti em nossa selva
lugar não tens se esse povo não te serve
eu te condeno ao exílio e à maior solidão
povo não terás e teus filhos não me verão!





















Destino teuto-brasileiro

O vampiro que suga teu sangue teuto
é mal-agradecido e baba contra ti
faz de ti o inimigo de toda aldeia
ele pretende fazer de ti um farrapo
te deixar na sarjeta feito um pareci.
Aqui já não te aguardam caminhos
mas apenas armadilhas, rasteiras
trapos no corpo, tropos na mente
tomando conta de ti, translúcidos.
A melhor saída ainda é o aeroporto.
Chance tu não terás nesse carnaval
chance não tens no país do carnaval
chance não terá o país do carnaval.
Será que és a galinha que se acoca
leva e sai cantando ou és um galinho?
Onde está, no entanto, a tua coragem?
Só no pingo para sair pela fronteira
enfrentar destino ignoto, soturno?
Será que vale se expor à seta cega
de um inimigo que não vale combater?
Estará nele o fogo que mata e cura?
Entrego-te, ó meu pago, o coração
um coração de boi pingando sangue
para dar prazer aos alvos caninos:
podes temperar a gosto esse músculo
é todo teu o que já foi meu coração,
tu podes embrulhá-lo em compressas
ou podes jogá-lo ao mais dileto cão,
podes erguê-lo, oferecê-lo a deuses
ou podes deixá-lo só secando ao sol.
Que fazer com essa carne que sangrou,
já sujou o chão tão bacana da cabana
e ainda insistiu em pulsar na tua mão
como se não soubesse que devia calar?
Sangrou, não sangra mais, é teu pasto.
Seu único papel será o papel higiênico
de limpar o ânus da tua sacra história
enquanto se contam histórias de espanto.

               Soneto safado

Descansa um pouco em meus braços, doce Princesa
Princesa que eu queria tão minha, e minha não é
Princesa encanto de um par de olhos apaixonados
delícia de um par de braços que não te envolvem!

Vai, ocupa o teu posto, assume tuas honrarias
sei que outros homens já rebentaram os peitos
para a tua ambição – não entro nessa procissão:
prefiro beber um trago, cavalgar ausentes pagos.

Vai satisfazer tua ânsia de postos, conquistas
tens prazer nos campos onde a ambição se recreia
mas eu sou neto de lavrador, não cria da macega.

Recolho, portanto, ao meu caule a flor em botão
arranco as raízes que pus nas coxas, no coração
saio assobiando pela estrada, passarinho na mão.






















          Novo mundo

Um camelo branco repassa pelo céu azul
como a garça que busca pouso no poente:
monta esse camelo, tu estás no deserto.

Lá longe onde nasceste, nuvens sombrias
arrastam a sua barriga pelas campinas
como monstros antanhos na contramão.

Ai, ó meu Deus, por que não há solução
para o retorno do velho Ulisses à Ática
se não à Ática, aos braços de Nausicaa?

Já tocaste flauta nos ossos da tíbia
fizeste da espinha o mais fino flautim
mas continuas perdido, fendido assim.

Olha as tuas mãos marcadas por calos
olha as cicatrizes nas pernonas tortas
olha a rubra chama em algum horizonte.

Assume a teimosia dos teus tataravós
que saíram cansados da sua Alemanha
mas erraram o rumo, foram pro Brasil.

Vida que podias ter tido e cá não tens
a vida que teus filhos cá ter poderão
e vida que poderiam ter na Civilização.












               Sodade

Por que, ex-terra minha, não te tenho mais?
Eu queria tanto poder mirar teus poentes
eu queria tanto respirar teu ar, rever
teus pássaros, teus campos, tuas árvores,
andar pelas ruas de tuas cidades e vilas
abraçar amigos do peito, rever parentes!
Passam os anos, perde-se a vida, perco-te
e nada compensa o imenso vazio que fica:
não há rouxinol que possa cantar teus ares.
Mas já escuto rouxinóis onde há rouxinóis.
Ai, terra minha, terra tão tão pouco minha
por que os teus bêbados, carrascos, loucos
conseguem destroçar tuas promessas tênues
espantar as avezinhas que queriam cantar?
Não sei como estão tuas manhãs, tardinhas
como voam e gritam os teus quero-queros
como tuas árvores acenam adeus ao vento...






















          Gardelão

Em nós morava a utopia
     e bem além de nós morava
          a vida que viver valeria.

Andamos nas ruas do dia a dia
     pés fincando em lama e lixo
          a alma em cacos prolixos.

Gardel canta tangos no céu
     enquanto o Boca dança ao léu
          e a Argentina está no beleléu.

Um anjo revoa pelo nosso espaço
     mira os latinos com olhos gastos
          não há salvação nos idos de março.

Nossas mães rezaram em vão
     lá não há lugar para coração
          torna-se inútil qualquer oração.

Era preciso estar atento e forte
     enquanto rondava a fome e a morte
          agora é preciso ir para o norte.
















          Se também

Talvez um dia ele, talvez outros
     queiram entender essa tristeza
          que brota em escritos secretos:

se a repressão que agora
     corre solta pelo continente
          pudesse ter um honesto buçal;

se não tivesses encontrado
     tantos cadáveres pelas ruas
          das cidades da antiga pátria;

se não se visse tamanha
     sujeira e pobreza pelo Brasil
          a se multiplicar por mil e mil;

se não houvesse em olhares
     tanto ódio contra a tua raça
          a te jogar pedras nas muralhas:

talvez então pudesses, inclusive
     festejar pátria, amigos, filhos
          plantar sequóias, fazer um livro.
     















          O menino

Nas águas revoltas jogaste
     um pedaço de pau, um navio
     depois caminhaste, ó menino
     vendo as folhas despencando
     e plantas pálidas do outono.

De uma árvore esquálida
     brotou a luz de um esquilo
     então perguntaste, ó menino
     o que seria de ti nesse chão
     após passar a pior estação.

Vamos pintar de verde o vento
     vamos repintar o seu rosto:
     então poderás voar, menino
     fazer uns bonecos de barro
     pôr luvas em garras de fera.

Vampiros de segundo grau
     encheram páginas de jornal:
     então aterraram, ai menino
     e, mesmo assim, tu teimaste
     em cantar à beira do abismo.

Santinhos do mais oco pau
     desfilaram gerais generais:
     então tentaste obrar, menino
     sem cuidar do barro no chão
     sem ter santo seguro, forte.

Antigos donos de escravos
     contrataram capangas safados:
     então veio uma lua, ai menino
     te fez admirar a mata em prata
     te fez olvidar luso-lobisomem.

Caíu-te nas águas outra folha
     a folha escura de um outono:
     então viste o destino, menino
     viste o naufrágio da esperança
     te safaste nas girls de trança.     







































               O pescador

Tinhas um modo estranho de pescar:
     enfiavas dedos n'água, iscas de carne
          e quando mordia a traíra do desespero
               tu a jogavas pelo ar para a margem.

Assim malfalaste fascistas no papel
     enfiaste as tuas garras no jornal
          e pensaste que podias jogá-los
               na margem direita do seu tempo.

Agora te admiras que a mão sangre
     te admiras que teus dedos se foram
          estás aleijado e não sabes por quê
               tuas garras sendo somente papel.

Tu nada conseguiste modificar
     exceto teus dedos e teu destino:
          não tens mais lugar nesse país
               revolvedores não têm nele lugar.

A miséria corre solta pelas ruas
     passa nas alcovas indiferentes
          tilinta nas taças de champanha
               dança no tremor da geléia geral.

Se depuseste nos filhos a esperança
     que teve em ti a avó de cabelos de mel
          procura então logo sair do continente
               torna-te um aviãozinho de papel.










          Boi de piranha

Cansaste de ser boi de piranha:
mas mesmo que tu, boi de piranha,
salves da piranha toda a boiada
(da piranha lá de dentro do rio)
nenhum boi se salva das piranhas
que nadam cá soltas fora do rio.

O boi de piranha quer ser Cristo
quer sendo primeiro ser o último,
o salvador provisório da boiada
o herói que morre por todo o povo
(sem saber que toda a sua manada
arrasta pata para o dente da faca).

Um índio me contou como se pode
nadar em rios de muita piranha,
o macaco toma água de canudinho
o jacaré nada de costas, mansinho
e tu nadas calmo, no devagarinho:
a piranha de fora espreita ferina.



















          Na esportiva

Quando o patrão berrar com você
     e ocê tiver de ficar caladinho:
     leve tudo na esportiva.

Quando o patrão o puser na rua
     e ocê não tiver o que comer:
     leve tudo na esportiva.

Quando em público lhe xingarem
     e ocê não puder nem responder:
     leve tudo na esportiva.

Quando disserem o diabo de você
     creia que o diabo é mesmo ocê:
     leve tudo na esportiva.

Quando você não puder mais pensar
     e outros trespensarem por ocê:
     leve tudo na esportiva.

Quando você estiver no desterro
     e ocê não puder voltar à terra:
     leve tudo na esportiva.

Um dia - não haverá uma solução
     na terra cheia de brasileiros:
     leve tudo na esportiva.

Azar, ocê cresceu no lugar errado
     no momento mais inadequado:
     leve tudo na esportiva.








          Herança

Olho com tristeza minhas mãos
     (tão incapazes de criar irmãos).

Perplexo contemplo a parede nua
     (nem sei como pagar o aluguel).

As obras que eu deveria criar
     (já natimortas em tua agonia).

Cabisbaixo inventarizo perdas
     (e tudo o que deixei de fazer).

Minha avó ia a todos os enterros
     (enterrava os teuto-brasileiros).

Quando morreu, foi acompanhada
     (minha presença foi só ausência).

Nós todos, silésios, nada somos
     (sequer lembrança de um povo somos).

Longe da segunda terra natal
     (tenho apenas provisória tenda).

Digo adeus ao tão perverso Brasil
     (não há peito augusto, varonil).

Sei que aqui estamos condenados
     (e não vamos sair dessa prisão).

Somos parte de um povo perdido
     (herança maldita transmitimos).







          Favela, fivela

Não saberei o que dizer a tuas amigas
ao ver o sol rubro renascendo amanhã:
sei apenas que as mãos entrelaçadas
prenunciam troncos, coxas enlaçadas
prenunciam barrigonas embaraçadas.

Olho a miséria nossa de cada manhã
não temos dinheiro para uma cabana
não temos dinheiro para eletrônica
não temos dinheiro pra coisa alguma:
como condenar outro à nossa miséria?

Tu me sorris com a boca sem dentes:
tens vinte anos, e dentes não tens
como se dentes tu mesmo precisasses
não tendo uma carne para tua carne
não tendo mais que carne para doar.






















          O emigrante

Nesse longo, tenebroso exílio
em que nem teto aqui tiveste
lembro às vezes que essa vida
podia ter sido tão diferente...

Sombras se estendem à frente
o pesadelo ainda não acabou
nem há de acabar aqui jamais:
reino da ganância, da miséria.

Fico olhando os pobres filhos
sem destino nesse país pobre
país recheado de preconceitos
pondo entraves por toda parte.

Aos trinta anos eu contemplei
o que nós já havíamos tentado
para sobrevivermos nesse país:
pesado, avaliado, e condenado.

Olhei para o fundo do poço
vi lá dentro um pobre moço
tão pequeno, tão sem forças
a naufragar na água da fonte.

Fui ao escritório dos sonhos
encaminhei um ofício formal
solicitando saída desse país
e talvez nunca mais retornar.

Aqui já não digo mais nada
aqui já não sou mais alguém
eu já me retiro dessa praça
cansei de apanhar de graça.





          Hai-kais

Naquela tarde de verão
sereia, desfiz a confissão
não será teu meu coração.


Cai chuva aos cântaros
eu, criança em prantos
esparramo meus espantos.


Chimarrão d'água morna
tua semente já entorna
outro troféu te adorna.


Cinco olhos em uma mão
a navegar na escuridão
minha alma sem calção.


Peixinho de água doce     
não te salvará o acaso:
canta um fado ao ocaso.


Bem aí no meio da lagoa
olha do fundo da canoa:
eta vida besta, toda atoa!


Não há mais nada a dizer
não há mais nada a fazer
tuas malas no bagageiro.


Entregas as tuas mãos
aos açoites das Fúrias:
mora aqui o teu adeus.


Em tua íris ainda navega
a sombra de uma alma negra:
deita na rede do cabelo.


Já disseste adeus-adeus
mas tu ainda persistes:
contas-me entre os teus.


Pés repisando uma tapera
cinzas em tua alma qüera
assim saíste da tua terra.


Saiba aqui todo citoyen
que a tarde já se finou
teu aroma no ar evolou.

Cinco cartas e três ases
duas cervejas, dois amigos
seis olhos, três destinos.


A tua tão radical opção
mora além do meu coração
no além de qualquer mão.













O engano

Tu tiveste de ir para lá, para cá
sem opção, sem teto e sem pátria.

Até que um dia cansaste de andar
de ver o cansaço nos olhos amados.

Olhaste as mãos, olhaste o vento
punhal pulsava no punho sangrento.

Tarde demais entendeste, ai amiga
nossa vida errada, inútil, perdida.

Talvez seja tarde para recomeçar
nós já deixamos as areias do lar.

Como teu pai tu te tornas vegetal
no pavor do mal tu te tornas igual.

Tentas avançar, não consegues nada
prejuízo perene, garra na garganta.

A um partido entregas o teu sangue
o teu engano: água limpa no mangue.
















          Diáspora

De que nos adianta e vale a tradição
esse gesto de repassar de mão em mão
o bastão de alguma ensinança e opção
esses olhos que lembram outra visão
traços tão patentes do tipo alemão?

De que nos adianta e vale a tradição,
parco refúgio da emigrante navegação,
se não se viverá na próxima geração
se não vemos nos trilhos da estação
exceto anúncios da total destruição?

Nossas mãos, tão calejadas e inúteis
a solfejar em suas rugas, seus rasgos
o esforço perdido de tantas gerações
mãos gastas em arados, pás, martelos
mãos decapitadas, mãos sem rastelos?

Explodem bombas antigas pelas ruas
calam-se na alma as esperanças nuas
ignoramos a diáspora do povo alemão
poentes tardios da terra americana
soterrados por avalanches tropicais.

Recolho um antigo olhar e sua bênção
já não sei mais para onde nós iremos
um povo que não teve lugar na Europa
povo que nunca terá lugar na América
pagos do peito desamado, seara do não.










          Herança

Amigo, tantos erros cometeste
e por outros tantos tu pagaste
ora obrigas teus filhos a pagar
como se pecado também tivessem.

Amigos, os teus tantos erros
parecem fraquezas do coração
mas são má herança da geração
estigma que não se impede não.

Agora estás aí, meio defuntado
perdido, sem um porto qualquer
como se já tivessem disparado
o fuzil que te enfiaram na boca.

Tristeza sem fim te acompanha
colheste a desgraça aí semeada
tu pariste o teu próprio adeus
tu partiste o coração dos teus.

Não há mais nada aqui a fazer
nem mais adeus sequer a dizer
não há mais livros a escrever
és um cadáver, ainda a gemer.















          Recapitulação

Contemplo em tuas olheiras fundas
nossas injúria e miséria profundas.

Tantos foram esses nossos enganos
que perdemos da vida anos e anos.

Tentamos onde nada havia a tentar
acenamos onde nada havia a acenar.

Imperam no país miséria e pobreza
manda nesse país a maior esperteza.

Podes enfiar na boca uma espingarda
podes tentar encontrar Hermengarda.

Podes te expor no matadouro público
tiranos se divertem, tu acabas mudo.

Podes dizer que a culpa é do vizinho
está em ti: nada resolve tua vidinha.

Mira os filhos sem primos nem avós:
esse é apenas um preço pago por nós.

Tudo o que tentavas conduzia à morte:
quando nada fazias, tinhas igual sorte.

Contempla a vila que ainda habitas
dizem que um perverso apito apitas.

Contempla o salário de fome que tens:
teu labor nada vale, quando um tens.

Que vida insensata, vida sem sentido
ainda te consola a presença do amigo.

Não sabes por que corre em tuas veias
algum sangue ou a calmaria das areias?

Tu tens em ti não só engodo e engano:
tu transmites a herança do desengano.







































          Conversa

Diante de ti corre, escorre
o turvo regato da infância
a repetir um antigo horror:
assentado à beira pergunto
para onde irás com tua dor.

Nada me garante que valham
esforços que te façam sorrir:
apenas alguma suave menina
poderia tirar o turvo do rio
e expor no ar um alvo lírio.

Estás cansado de estar vivo:
só que essa mesma tristeza
podia estar em ti longe daqui:
não sei se vem da água do rio
ou se vem o ar que tu respiras.

Teu avô não curvou a cabeça
nem se abandonou ao lamento
nem se resignou ao destino
ou já nem quis mais pensar:
reduziu-se tanto o teu tino?

Se os pés chafurdaram na lama
se em tua pinha tantos cagaram
se tu não podes dizer seu nome
se hienas adornam o teu brasão:
será isso todo o non plus ultra?

Viste sonhos serem naufragados
viste urubus em vôos arregalados
ouviste hienas em risos grelhados
ouviste queixais sendo estalados:
tranpolins de um além mais folgado?




          Festa romana

Não adianta, meu caro amigo
não há nada a fazer contigo:
derrotado te sentes perdido,
mas não adianta só ver o umbigo.

Bebamos, pois, desse vinho
vamos erguer ao céu a taça
vamos dar risadas de graça
vamos falar mal do vizinho.

Se já roubaram a tua amada
se ela gostou do camarada
se te roubaram tua estrada:
mergulha para além do nada.

Vai, pobre barco sem porto
vai praticar outro desporto:
não faças papel de mendigo
e não vás chatear um amigo.

Pistolas alguns te apontaram
tua caneta metralha palavras
como se idéias fossem balas:
mas os deuses te abandonaram.















          Soneto gaúcho

Deitei-me em sonho no pampa gaúcho
deixei o minuano soprar pelo poncho
fiquei mirando as nuvens da Argentina
senti as raízes me fincando à terra.

Vejo que sangram os dedos e a pele
sangram saudades de pampas perdidos
não sei mais para onde vou ou volto
vivi sem destino, perdido nas gerais.

Retiro as minhas botas e bombachas
mas minh'alma se põe toda pilchada
revoando os verdes pagos da saudade.

Companheiros perdidos da querência
no meio do brejo ou no meio do mato
gaúcho nasci, gaúcho não irei morrer.






















               Querências

Morreu minha avó, já morreu meu tio
lá nas terras verdes do Rio Grande:
ainda que revoem até lá meus laços
não vão como asas até lá meus braços.

Sobre nós recaiu o sangue derramado
como se o póstero pudesse ser culpado
mas ainda poreja sangue em minha pele
como se eu buscasse de mim o reverso.

Dão graças a Deus lá na minha terra
pela cria que longe está da miséria:
não quero que entendem que seria pior
a miséria de não estar lá na miséria.

























          Pólo austral
Não és sequer um grande derrotado:
não era grande a guerra da tua ânsia
a desfilar pretensão e petulância,
mas na lama sem lar foste mergulhado.

Na lógica do inimigo não terias modo
de olhar nos olhos de teus filhos,
não merecerias sequer algum sorriso,
ficarias mergulhado sob os abrolhos.

Já foi dançada a dança dos vampiros
foram soltos seus suspensos suspiros
foram feitos circular doze devaneios
para te perderes em bobos anseios.

Não te parece que estar vivo mereces
e tua vida, vida não é e nem parece:
tua triste sina, oh poeta de latrina
de nada adianta,não é boa doutrina.

Aos berros, a vaca saiu pelo terreiro
e no brejo se perdeu, e dele não sais;
o coração dos outros foi o picadeiro
do palhaço que eras: e dele não sais.

Teus filhos são enganos, são erros
sementes germinadas sem bom acerto
canções que o acaso teceu no aperto
flores a brotar do róseo desespero.

Outras crias que poderias ter tido
não assomaram nunca o teu coração:
da amada que perdeste sem ter tido
pesa em ti o eterno não: redenção.

Tu viveste a miséria da tua nação:
irás condenar a ela teus bisnetos
como a ti condenaram teus bisavós?
Herança maldita não conhece perdão.

               Na sarjeta

Não sei onde foi parar o teu coração
lembro que vi ele atirado na sarjeta
em meio ao verde limo, entre vermes
cinza de neurônios, rubores de sangue
ecos do disparo de uma espingarda.

Sombrias já se põem as tardes do verão
é difícil conviver com tanta derrota
amargo é o pão da vida tornada vã:
mais amargo ainda é olhar nos olhos
de quem se ama e não se pode salvar.




























     Dísticos didáticos

Deram-te um chute na bunda
     e caíste no meio da tundra.

Comeste a poeira do momento
     teu sangue foi teu cimento.

Com esse material construíste
     a tua casa de nenhum porvir.

Quando para o livro pediste abrigo
     a tua irmã na tua cara te cuspiu.

Aqueles a que havias dado socorro
     pisaram em ti como num cachorro.

Os bandidos estão com cartaz
     reinam vitoriosos nos jornais.

Na terra do rei Midas às avessas
     tudo se torna merda nas travessas.



















          Bruxas

Já houve outras idades
     de tamanhas tempestades
     que não se tinha calmaria
     sem calmantes a cada dia.

Tiranos revoam calamidades
     feito urubus sobre cidades
     eles rondam a nossa carcaça
     feito carcarás da desgraça.

Não, não devo me entregar
     ao tiro do fuzil na boca
     nem dar filhos à tristeza
     enquanto proclamam "que beleza".

No sul já me mataram parentes
     um sobrinho e um deputado
     depois de antes terem morto
     a esposa como se carneia porco.

Garras assassinas porejam sangue
     como se ora cá ressuscitassem
     aquele que teve doze discípulos
     e sobrevive em alguns capítulos.

O que fazer já não se sabe mais
     num mundo com vazios demais
     e tão manobrado pela ganância
     que faz da vida pobre errância.

Minha filha com suas chuchas
     e seu narizinho arrebitado
     sorri com as faces gorduchas
     enquanto temo da vida as buchas.




          Boas piranhas

Alguns deuses ainda restam à beira do agora
mirando as águas antes de daqui irem embora:
a grandeza das galáxias te espanta e apavora.

Alguns deuses estão sentados à beira da praia
olhando o aceno das águas feito falas do mar:
sonham solitários com dias melhores e de paz,
como se para o povo silésio houvesse esperança
como se pudesse haver salvação para condenados
como se as águas do mar não tivessem lágrimas
como se não viessem a ter lágrimas as águas
que correm do poder para paranás e paranoás.

Não, meu caro, tu exageras, propões hipérboles
há um povo vibrante e forte, sob um céu anil
há um gigante adormecido, salve salve o Brasil!

Creste perder, por tuas mãos, coisas preciosas
que te caíram nas mãos, e agora estás temendo
perder tudo de novo, pôr tudo de novo a perder.
Não tens poder para decisões, esperança não tens
para temer a morte: mas o que fazem teus dedos
o que fazem as pontas perversas dos teus dedos
como garras dançando à luz, ao fogo das velas?

Contempla nesse espelho teu espírito de bruços
pernas e braços quebrados, o peito aos soluços:
espelho-espelho meu, há tantos mais ... que eu?
Nessa era de tanto aleijado, de herança maldita,
nadas à meia-noite no luar de um lago prateado
buscando encontrar pedaços da lua já devorados
para neles encontrar pedaços de ti, boa piranha.








          A deusa

como se tu fosses uma deusa
      e eu fosse algum deus
me chamaste aos teus braços
e eu pude mergulhar em ti
          feito uma cascata
de espera, espuma e verão

































          Latin no lover
Sangram tamanhas inconfidências
não só pelas ruas de Ouro Preto:
sangram anônimos não-Tiradentes
sem auras de herói e sem dentes.

Aquilo que podia/devia ter sido
aquilo em que feriste tuas mãos
mãos campônias afeitas ao arado
não afeitas a acariciar rostos.

Vida parca, feita de carências
que viveste em três continentes;
aquilo que podias ter produzido
e o rancor reduziu a indigências.

Nós somos apenas impura ausência
fantasmas vis de antigas fossas
efêmeros refluxos da diligência
mentiras alheias, mentiras nossas.

Tu és aquele que tinha de perder
semente desperdiçada em tua mão
colono a cultivar duras ausências
a jogar fora as palavras e o não.

Foste ao enterro da última quimera
como se morrer fosse uma quermesse
como se esperança ainda houvesse
como se Voltaire chance tivesse.

Tu te perdeste mirando tuas mágoas
como Narciso se mirando nas águas:
como ele, em miragens te perdeste
tua peste foste,nem a ti quiseste.

Nas páginas do acaso não se escreve
nem a tua prece e nem a tua paixão:
lê no abismo para que ele te serve
faz das mil carências uma intuição.

               O enganado

Se nada tens senão ausências em ti
até da fêmea que era o teu infinito
põe a dançar na praia o corpo vazio.

Do naufrágio dos sonhos, desertos
são praias para que dancem os pés
afasta o silício, na sílica tem fé.

Tu amaste uma quimera, não a bela
não viste a fera que habitava nela:
foste idiota, um bobo joguete dela.

Arranca essas tuas grandes guampas
despeja nelas vinho bom às pampas
com a rosidáctila aurora já acampas.

Talvez o gosto guapo seja teu tersol
talvez vomites as tripas ao arrebol
e no alto há de rir um deus do sol.

Bicho da terra tão pequeno, tão-tão
infinito é o abismo do teu coração
não se movem montes à força do não.
















          Pretéritos

Daquele amor que abalou fundamentos
          mas não construiu residência

daquelas palavras de ternura
          que tanto mentiste na agrura

daquele manto rubro que se estende
          quando o desencontro se distende

daquela vida conjunta que seria nossa sina
          e que vejo sendo jogada na latrina

daquele chumbo que encheria muito cartucho
          mas não fez um só disparo no bucho

daquele tiro torto disparado para a lua
          reflui exposta na rua minha alma nua.






















          See-Seele

Das brumas do lago encantado
     tu ouves algumas palavras:

ela é toda ausência e, ai, na bruma
     o seu santo nome é saudade burra.

Cascatas da mais alva espuma
     despencam numa arcaica escuna:

pobre é a ciência do país pobre
     pobre é para sempre seu saber.

Não tens onde prender o barco
     não faz mal, prende com jornal:

palavras pobres jamais entrarão
     no império da Arte e da Razão.






















          Paliçadas no ar
Como é que não conseguimos entender
     que as vozes roucas que ouvias
     eram poemas pedindo a luz do dia
     não eram amores por outra Maria?

Tudo naufragou em palavras indecentes
     proferidas por perversos dementes
     com as pálpebras pesadas do pesadelo
     que apalpava promessas nas sementes.

Sabichões postos em cátedras paulistas
     como em outros territórios quaisquer
     têm o saber no bolso, o bolso no saber
     mas tu percorrias terrenos proibidos.

Hoje és barco solto, sem rumo, à deriva
     cansado de existir nessa insana vida
     cansado de ser cada vez mais cuspido
     para longe da arte e de toda guarida.

Amores passageiros e refúgios de ocasião
     não diminuem prejuízos de preconceitos
     não eliminam as tantas feridas feitas
     não repõem nada nem num coração alemão.

Vai, tristeza minha, mira as academias
     não tens espaço para pensar por aqui
     não tem vez na serra um teuto-gaúcho
     não tem na Alemanha, e não no Brasil.
     
Não tens mais onde esconder teu coração
     perverso cão preto percorre a estação:
     não é rastejando ante os seus dentes
     que eles te irão sorrir bem contentes.

Para sempre o teu nome será ausência
     indesejado monstrengo, nada apascentas:
     eles são início e fim do seu universo
     tu não interessas, tu nada acrescentas.

          Femme fatale
Ó tu, de minha vida a grande ausente
não é um quadro que te fará presente.

Soterrada nas cinzas da horas uscita
ao aceno do vento a fênix ressuscita.

Naufragou a nave do que eu cria precioso
com o vento mau do teu coração mentiroso.

Para o fundo das águas ainda rola e cai
uma vida a dois que pelo esgoto se vai.

Estou grato a teus ataques tão antanhos:
livre de quem esquertejou jovens enganos.

Num verão que não queria ser passageiro
fui transformado em porco de chiqueiro.

Após um ano comi pétalas rubras de rosa
e de humano recuperei a forma e a prosa.

Mas tu não perdeste teu rumo nem norte:
és sempre daquele que te parece forte.

Cumpres a lei da fêmea de qualquer manada
enquanto proclamas ser mulher emancipada.














               Reencontro

Nós nos vimos em uma praia da Dinamarca:
quinze anos após a ferida ter se tornado marca.

Tu não sabias se me cuspias ou remordias
o olhar se congelou no salobro dos dias.

Eu não sabia como em ti a noite depositei
meus olhos te encontraram, e se perderam.

Os nossos corpos mais velhos, carcomidos
sem o brilho das chamas nas ondas frias.

A longa noite dos olhos mortiços, vadios
de rugas no rosto, salpicos de alvos fios.

Dos bolsos do sobretudo não saem as mãos
dispara o peito, cerra-se a goela: nãos.

Ai tardes frias, no outono de Elsingnor:
não nos daríamos mãos nem ante o Senhor!

Um dia meu coração já se arrastou no solo
feito um cão surrado que a seu dono adora.
















          Pomba-Gira

Nunca mais terei nas minhas mãos
esse teu rosto repleno de encantos;
nunca mais terei nas minhas mãos
essa tua caveira plena de espantos.

Nos verdes lagos desses olhos teus
não mais naufragarei os deuses meus;
na lua de prata desse teu corpo nu
não mais verei solta minha loucura.

Da mágoa sem remédio de perder-te
recolho a rede com pedras e peixes;
lápides por ti postas em tua lagoa
verei com olhos semeados de garoa.

Há de navegar, porém, pequeno barco
hei de ver estendido de Íris o arco
a lua suja que te deu noite, abrigo
há de ver a tua nuvem e teu inimigo.

Tu proclamas a elefantes do acaso
o rubro do pensamento e do ocaso;
eu me recolho, calo a teu presente:
que Oxalá te torne mulher decente!















Scharnberg
Há mais de trinta anos passados
ouvi do velho amigo Scharnberg:
"Ontem reencontrei uma senhora
já viúva, setenta anos como eu
e, há cinqüenta anos passados,
amei essa mulher e ela me amou,
mas o encontro virou desencontro:
meu pai era pastor protestante;
a família dela, muito jesuíta
não permitiu ela converter-se:
nós não pudemos então nos casar
e sem bênção não se podia ficar.
Ela foi para um lado e se casou
eu fui para outro lado, e casei
mas nenhum de nós foi bem feliz.
Cinqüenta anos não nos vimos mais
e ontem nos encontramos por acaso
ela viúva, eu há dez anos viúvo:
nos abraçamos e ficamos chorando
a vida desperdiçada em enganos.
Não é bom que o homem fique só
assim já está escrito na Bíblia
e esta palavra de Deus cumpri
sem entender: sempre estive só.
Tive boa, correta companheira
não posso nem me queixar, sei
mas sempre estive no fundo só
solitário por não ter Margarida.
Se não a tivesse reencontrado
não ia saber: a vida foi vazia.
Quisemos ser corretos, e fomos
quisemos ser honestos, e fomos
mas não fomos corretos conosco
nós não reconhecemos o ditado
maior que corações amedrontados.
Agora é tarde demais para nós."
-Nunca é tarde, sussurrei então.
" Sempre é tarde e cedo demais.
Se tivéssemos brigado com todos
nem emprego nem rosto teríamos:
o remorso nos devoraria de noite.
A religião é a desgraça do homem
e nem tudo é apenas literatura."






































     O navio fantasma
Solitário náufrago de brasinos fantasmas
longe estão os tempos dos mergulhadores
não há mais pérolas em conchas de corais
no nácar reluzem as sombras do jamais.

Já passamos todo Cabo da Boa Esperança
estamos revolvendo o Cabo das Tormentas
como se fosse possível seguir a andança
como se Melinde não fosse maus lamentos.

Viúvos das nossas melhores esperanças
nós somos sombras de caminhos perdidos
de caminhos por nós jamais percorridos
nave povoada de fantasmas e de olvidos.

De que adiantam os versos, se a tua vida
essa se foi, perdida em desvios, perdida
sob botas de fascioportunistas triunfantes
a marchar por tuas almas ainda infantes?

De que adianta agora lamentar em versos
naufrágios de tortos brásicos universos
tornando-te tu mesmo teu vice-carrasco
gerando por ti próprio um estranho asco?

Nos idos de sessenta e oito, e setenta
havia fuzis apontados, e metralhadoras
havia botas desfilando em nossas dores
almas nuas, corpos surrados e dementes.

De que adiantou puxar o gatilho contra
a esperança, contra o mínimo pensamento
se a miséria maior no país se encontra
em agüentar dentro dele o seu tormento?

De que adianta escrevinhar tais linhas
se não põem comida no prato dos filhos
se ninguém se põe a lê-las na varanda
se a nave está louca e nada mais anda?

          Gaudério

Crinas soltas ao vento
o vosso nome é liberdade
patas de tropilha ao longe
corcéis de fumaças e ventos
vamos campear noutras plagas
vamos fazer no ar nossas artes
vamos fugir de brasílicas pragas.
































          O parto

Eu me encontrei com as minhas mortes:
de mãos dadas corremos matas sombrias
mergulhamos em águas fundas, miasmas
cavernas de morcegos, infectos afetos
até pedir à lua que estenda a sua manhã.

Refestelados em nossos olvidos, súbito
sentimos o punhal do rancor, e ficamos
navegando em sangue e dorsal decúbito
como se sangue fosse molho de tomate
para servir à dor o que nos tomasse.

Entre gemidos e sangue faz-se o parto
entre as pernas pendentes num quarto
como se pedaços de nós se vomitassem
como se o avanço nascesse do desastre
e noite houvesse para florirem astros.






















     Entre canibais

Cuidado. Eles querem te devorar
mas, se não puderem te devorar,
vão te usar e depois silenciar.

Como deve ser teu gesto, tua fala
para não seres só aquele que cala,
o que sempre tem de fazer a mala?

O que restou de alma despurifica,
cancela a calma, erros retifica:
mesmo assim o diabo dobrado fica.




























     A minhoca

Em negro véu envolta e oculta
filha do Caos e mãe da Loucura
escoltada por Parcas e Eríneas
a rainha das deusas sangüíneas:

ante a estátua sobre o altar
passa uma minhoca a desfilar
como se no reino do desatino
pudesse haver herói e destino.

Com Fúrias despencam Eríneas
do Caos parco Olimpo se acena
a Terra nunca há mde ser serena
tortas serão sempre suas linhas.

Nunca escreverá certo a minhoca
com a letra torta do seu rasto:
melhor ficar escondido na toca
e não ser dos pássaros o pasto.

Não sei bem o que contigo faço
se pensas que tens peito de aço;
sei que no fundo da tua solidão
não estás sozinho solto no chão.

Mas não adere a nenhum Partido
como se nele morasse O Sentido:
és apenas uma minhoca num altar:
rebolando, mesmo que a rastejar.










     Anti-Exu

Um piquizeiro ergue braços torcidos
para o céu do cerrado seco, sombrio
na poça vazia uma nuvem não se mira.

Chamas azuladas saltitam pelos ramos
e ao longe fumegam vultos estranhos:
tu te tornas teu próprio espantalho.

O destino bate à porta, mas não te vê
o futuro está a teu lado, tu não o vês
não chores portas cerradas pelo poder.

Percebe que não era para ti a campainha,
mas apenas a pancada da pata na pinha:
não se perde a chance que não se tinha.

Eis aqui na minha mão ferida, vazia
a seca flor da ausência, perda fria
a chamejar signos de alarme pelo dia...

Na encruzilhada pode não haver caminho
mesmo pondo charuto, cachaça, galinho:
não ter caminho é buscar melhor caminho.
















     O Anjo Azul

O gesto de carinho que ora palpitas
esconde na palma o sal das lágrimas:
se a bela só quer carreira, te pica.

No olhar que meigo não te contempla
deixaria guardada a lágrima no templo
a morte em vida já vos contemporiza.

Lenta se moveria para ti uma serpente
caçadora furtiva a espreitar o repente
e, sob brilho da pele, veneno no dente.

Tu caíste como o antiquado professor
caiu aos pés da Anja Azul, Lola-Lola
a Rosa Alegre, rosa dum alegre porto.

Num motel qualquer de beira da estrada
terias visto tremer no espelho a amada:
depois terias de andar estradas do nada.

Em um corpo tão repleno de encantos
com um sorriso de dentes tão brancos,
o monge em ti feneceu entre espantos.
















          A nova Vênus

Se das profundas águas do mar
Vênus surgiu em concha nacarada
com a nudez oculta nos cabelos,
a aura dos teus longos cabelos
não ocultam a tua linda nudez
deitada sobre a espuma da cama.

Escorreu uma lavina de ternuras
sob a ponte que nos estendemos,
mas da montanha dos altos picos
não mais correram as tuas águas
não quiseste construir uma canoa
foi duro perder uma dona tão boa.

A sério ele quis com ela se casar
fundar com ela um novo e doce lar
mas ela o poupou de tamanho azar:
tão grande era seu amor pelo rapaz
que decidiu continuar com o marido:
o ingrato boy deplora o peito ferido.



















          Rubra foice

Desapareceram todos companheiros
e a lua, rubra foice sobre o rio,
teria podido ver nosso último cio
como se em nós também existissem
a cada mês luares mais faceiros.

Como se nas veias corresse vinho
fazes de mim um vate, um adivinho
da rubra alegria em ti escondida:
cada sujeito é seu melhor vizinho
mas tu viraste esperança perdida.

Macaqueamos gestos muito antigos
como se fossem de nossa invenção
como se nada mais além houvesse
nesse fogo que escorre nas veias
em hora perdida, sem consolação.

Bárbara irmã dos deuses, tirana
de um coração abatido, soberana
coloco dois Atlânticos entre nós
para conseguir a minha liberdade:
a cabeça branca fará sumir tua voz.

A ausência sangra a pele do peito
mas se apenas havia paz no coração
quando se sentia pele nua no peito
e não podíamos ver no ar as araras
melhor sangrar a pele do despeito.

Duas araras voam sobre o Araguaia
não têm asas partidas em cativeiro
elas buscam o rubro do seu poente
enquanto os botos navegam no rio
e tracajás são submarinos nativos.

Sete samurais guardam a tua porta
e sete véus resguardam a tua aorta;

presos na masmorra estão em palácio
mas não têm sete chaves ou epitáfio:
contemplam o céu pela janela da cela.






































          O canto da Iara

Se tanto te proibiram a fala, Helena
se tanto quiseram que ficasses calada
se estás tão encerrada no teu cerrado
longe do teu Rio Grande, longe de tudo
nenhum interdito garante ouro à palavra.

Ó Iara do encanto, se seduz teu canto
tu seduzes nas águas de um remoto rio
onde nada melhor ainda se pode fazer
senão deitar-se à sombra, ficar no cio
afogar-se na ausência e na abstinência.

Qual é tua melhor proposta, doce Iara?
Ouvir tua maviosa voz de noite e de dia
como se nesse mundo nada mais houvesse
senão teus cabelos e rabanadas de peixe,
palavras de papagaio e traíras da traição?

Sereia-sereia do rio Araguaia, sereia
serenou-se toda a busca em tua areia
não há ouro nem vermelho em teu rio
tem arraia, tem piranha e tem jacaré
Adão não vive apenas do peixe tucunaré!
















          O poeta oficial

Adeus, Drummond, tu já te foste
abrindo caminho a nós, os parcos
e na funda e escura tumba que te
envolve, encobre, esconde e vela
foram queimados imigrantes barcos.

Do pretérito algo foi, já se foi
mas nós não conseguimos enterrar
os nossos mortos e nossas mortes:
ficamos fazendo de conta que vive
todo aquele que enxergamos de pé!

Drummond, quiseste a nossa morte,
fascista com máscara nacionalista
tu ajudaste a acabar com a língua
e a cultura de meus avós e bisavós
como se o nada fosse nosso caminho
e no Brasil te decantam nonadas mil!

É difícil enterrar tantos mortos
eles não querem ficar enterrados
não querem sossegar em sua cova
e não querem subtrair-se de nós:
continuam a morrer dentro de nós!















          Alba catléia
Tu estendeste sobre a minha cama
teu luar, teus chorões e tua lagoa.
Uma guilhotina cortou nossos braços
quando queriam se estender na alma.
Eu, pouco me importo, mais importa
o caminho que levaria a uma porta
o carinho que bateria numa aorta
a água que romperia tanta comporta.
Ao comando do bastão, dizem eles,
rompeu-se a rocha, irrompeu a fonte:
ainda aguardamos em meio ao deserto.
Ontem eras luar, hoje és ausência
já não voa o pássaro com paciência
não revoa o som da sereia na rocha
não encontra a espada a sua bainha
eu não encontro mais minha rainha.
O mundo balança: labirintite tua;
o mundo fora dos gonzos: ai gozos!
Com a boca sorriu, mordeu, e riu
aquela que foi lagoa, flor e luar,
alva orquídea entre as folhagens
visco vital diante do céu desnudo
gesto ausente da mão em tua busca
enquanto insetos percorrem o caule.
O cajado busca a tua mão trêmula
a chuva cai no quintal do acaso
a terra aplainada estende vazios
terra sem verdes e sem esperança
goiá da nossa amaldiçoada herança
orgulho do povo teu e inimigo meu.
Tu, que ontem eras maciez e luar
hoje és apenas tinta preta e papel
não rabisco e labirinto no lençol.
Não quero reerguer vãs paliçadas:
muralhas tremem, reis vão caindo
os bárbaros querem índios em nós
para suas flechas, bordunas legais:
a cerviz se curva à beira da tumba
dessa que fez de mim um novo zumbi:

tu não consegues arrancar a túnica
dessas sombras que aqui te devoram.
Terás de falar uma língua estranha,
terás de rabiscar enigmas em runas.





































          Ghost-fisher

Retiro da água o caniço do acaso
nele vem pendurado o teu fantasma
uma sereia que debate o pescador:
na prisão de um destino plangente
a rodopiar no ar feito um morcego
de cabelos brancos e focinho negro
espírito da grande amora ausente.
Sem saber o que fazer, eu devolvo
como um pescador inglês de piada
essa piava às turvas águas do dia.
Estou feliz. Verde voleja uma ave
feito um arbusto leviano ao vento.
Em uma lata de lixo, um gato cata
a sua gata e sua ração, sua razão
miauzando por não poder devorar
o pássaro da esperança que voleja.
Um telefone público tilinta como
se pra ti houvesse ainda chamado:
tu atendes, e é apenas um engano.
Deito-me na areia, miro as nuvens
há estranhos camelos lá pelo céu
prenunciando desertos submersos.
Levo teu coração para a oficina
talvez remendem os seus pedaços
mas só amanhã (ninguém é de aço).
Vamos caminhar à beira da praia
ouvindo o seu chuá-chuá infinito
pequenos anéis de uma corrente
a prender teus pulsos ao destino
a prender teus impulsos sem tino.
Retorna para trás das muralhas
o fantasma que pesquei no anzol
cultiva narciso a flor e o umbigo
não há de ficar a catléia no alto
enquanto gorarem as nossas mãos.




          O pedestal

Arrastas contigo os teus mortos:
o tio com o seu espadim de prata
o tio-avô com o relógio de bolso
o breviário, o corpo no relicário
um tio conseguiu tornar-se santo
mas tu, não tens qualquer recanto.

Teus mortos enterrados no peito
já não querem deixar-te sossegar
és um cemitério sobre duas pernas
que eu não sei onde irão te levar:
uma flor tu ainda queres cultivar
outros em ti querem flores plantar.

Dura flor do cerrado, aqui o tens
em teus vales, teus morros e ares
como se vivo ele ainda estivesse:
o seu tempo é somente um espadim
o breviário, o corpo no relicário
sobre o pedestal batizado por cães.



















          Tríades

Tu, aqui me espreitando
um imenso olho me olhando
eu, leve tenda armando.

Relendo a História Antiga
não foi melhor a Roma amiga
do que a Cartago inimiga.

Tenda leve como gazes
onde estarão os teus oásis
onde estão nossos ases?

Nesse círculo de fumaça
tu não podes fazer trapaça
estás lutando de graça.

Olhas para teus juízos
os teus pequenos paraísos
o pavor dos prejuízos.

A confraria dos aflitos
soma os passos interditos
terás filhos benditos?

Se mudas da Europa para o Brasil
não viajas apenas na geografia,
mas da história à pré-história.











          América Latrina
Nossa ciência é o império do inútil:
percorremos os corredores dos sonhos,
pesadelos, ódios, desprezos sombrios
no alto: algum esperto, safado, fútil.

Arrastamos ao exílio os filhos amados
herdamos dos bisavós os fatais enganos
e a quem amamos ainda os repassamos
sem encontrar saída após tantos anos.

Não há a menor esperança de vitória
não se consegue corrigir a história
somos aqueles que não terão glória
olvido será a nossa melhor memória.

Nesse império de espertos premiados
esforço é burrice, ganha a arteirice
na moral da pobreza há outros safados
e se dá bem todo exército da vigarice.

Robinsons de um continente perdido
somos governados por Sexta-Feiras
sem uma Inglaterra que nos queira:
antes de ser estamos desaparecidos.

Para que semear grãos entre abrolhos
para que desperdiçar a luz dos olhos
para que tentar mudar a mental pobreza
para que servir no reino da esperteza?

Escorre nas veias a linfa da morte
escorre na América a nossa má sorte
percorre o corpo a condenação antiga
escorreu o tempo de achar uma saída.

Valente coração, resiste à pressão
mas é inútil, errado esse teu Não:
apenas posterga a hora da partida
insiste naquilo que não tem saída.


          Libera nos

Poita de pedra no fundo das águas
teu barco dança sobre as espumas:
navegações grandes que se fizeram
suspendem seu curso, suas escunas.

Não queres dizer adeus aos recantos
da terra gaúcha, mas não és pássaro
para voar e contigo uma poita levar.

Não. Passam as espumas, fica a pedra
pinta um pintado no pedaço, estertor.

Assim estrebucha no anzol o pescador.

Das navegações que se fizeram além
pouca milha resta, e nada sobrevém.

Há algo de podre fora da Dinamarca
há um punhal em olhos dos gabinetes
há uma vida perdida antes de parida.

Como descobrir nas águas revoltas
escafandros e caminhos provisórios?
Como encontrar ainda algum alento
se já nos devora buscar o sustento?

Precária existência sem exigências
somos daqueles que jamais nasceram
daqueles que cantam apenas pausas.

Não diz até logo quem não tem até
é longe o paraíso para chegar a pé.

Libera, libera nos, domine dominé.





          Iara e Lorelei

Iara, ó Iara, para o fundo do teu rio não vou
cansado de toda batalha, cansado de tudo estou
mas para o fundo do rio, para o fundo não vou.

Perdi os coquinhos na estrada, perdi os dedos
ai - meus dedos! - ai todos na estrada queimei
ai - meus pés! - meus pés pela estrada torrei!

Os cabelos - ai! - os dentes e cabelos caíram
e as tardes do verão já vão mudando de estação
mas em águas desse rio, Iara, não mergulho não!

Quisera te amar - ai Iara! - quisera te amar
mas como te amar sem nas tuas águas mergulhar
como não estragar a alma quando eu te abraçar?

Tu rebolas o teu corpo na penumbra das águas
danças para longe de nós todas nossas mágoas
acabaremos crucificados sobre santas tábuas!

Vem, sobe até aqui, sobe até a minha margem
retira lá do fundo do rio a tua falsa imagem
vem cá, vem ver que há também morro e vargem!

E tu vens, desfaleces em meus braços, exemplo
de um grande amor de cinema o rosto contemplo
ajoelho diante de ti como se fosses um templo.

Ilusão minha, tarde demais descubro, ó maninha
que meio a mim ela veio, meio fui aos tapinhas
e já devorado estou nas águas de suas gentinhas!

Os anos que se perderam - são feridas no peito
jorram os sangues negros entre os nossos dedos
e não há nada - meu amigo - que se possa fazer.

A vida se perdeu, salvou-se apenas o espanhol
que não olvidou que não era latino, mas reinol
salvou-se apenas quem não quis mais sulino sol.

Lore-Lore-Lorelei, por que não escutas meu ai
por que não quiseste ouvir-me na terra do pai
por que não tomaste minha flor, ó teuta Iara?





































          O viúvo

Ao raiar do dia abre-se a porta do salão
e Mila me aparece com a mamadeira na mão
e um travesseiro arrastando na outra mão.

Ela se deita ao meu lado, ergue pro alto
a mamadeira da existência, mama o mamável
como se na terra nada houvesse mais amável.

A ama da mocinha mexe panelas na cozinha
conversa com a mini-filha da nossa vizinha
e vejo que a vida do normal se reaproxima.

Uma ausência estende suas sombras em nós
paira em paredes dos quartos, põe-nos sós
mas sobrevivemos, tentamos refazer os nós.

Há rugas em rostos cansados e rugas n'alma
há rugas onde antes habitava a nossa calma
mas há estradas que nos fazem cor de malva.

Não vás plantar batatas em seus cemitérios
nativos não plantam batatas em cemitérios
tumbas brotarão do chão se mexeres a terra.
















          Vaticínio

Os deuses te deram chances, ó meu filho
pensas que tuas chances tu fora jogaste
quando nunca houve aqui leite disponível
erraste antes, errarias após, só erraste.

Vê quanta bobagem, loucura existe em ti
vê quanto perigo tu és para teus amigos
vê que não se pode confiar em ti, filho
e eu te gerei e estraguei, camaradinho!

Buscas ainda rastros nas águas passadas
buscas pêlos nos bicos de patos pelados
buscas ainda a bica na montanha, sorris
buscas em vozes fugazes alguns paraísos.

Agora que nós já estamos quase no buraco
contemplo nossas águas no fundo do poço:
vislumbro tua figura, teu futuro, ó moço:
vais carregar de desgraças ainda um saco.




















               O guarda da porta

Um erro fatal, feito nos idos de abril
e a vida inteira desperdiçada, perdida.

Será que, acomodado, terias sido feliz,
sem verdades ferinas e sem hipocrisia?

Com teu cadáver se alegram os urubus,
aqueles que são mais espertos que tu.

Agora vives no exílio goiano - vives? -
mas ninguém há de crer nisso que dizes.

Nessa porta que no cerrado foi cerrada
tu viste, fatídica, a tua vida acabada.

O guarda já se retirou agora da porta
que nunca foi para ti entrada e aorta.

A melhor saída para o condenado à galé
ainda é o Galeão, sem gala e sem balé.



















               Companheiros

Por que ainda estás aí se o mal te cobre?
     Para ver bruxas dançando nossa noite?
          Para ver súcubos enrabando o povo?
               Para ver fome nos olhos do pobre?

Por que ainda estás vivo, companheiro?
     Queres dançar junto a dança da morte?
          Queres hipocrisia ainda mais plena?
               Pretendes reclamar da tua sorte?

Por que ainda estás viva, companheira?
     Para ver o castelo de tarô desabando?
          Para ruminar runas, ruínas, cegueiras?
               Para teu féretro ires acompanhando?

Por que ainda estás vivo, companheiro?
     Para ver o desconcerto da vida tão torta?
          Para nada consertar dando tempo ao tempo?
               Para verpulsar sem sangue tua aorta?

Se viver o sonho se tornou um longo Não
     se o sonho se tornou um longo pesadelo
          se não há em ti ou fora de ti redenção
               valeu ter nascido, oh companheiro?















               Aracaju

Reduzido ao sem permanência,
     mais um dia virou delinqüência.

Mais um monte de tolos gestos
     se perdendo em rostos anapestos.

Um helicóptero de vidro a mil pés
     estende mar e morte a teus pés.

Vais buscar em poços profundos
     os segredos negros do verde mar.

Aranhas negras encravam na água
     braços de ferro e saúdam o azul.

Voas pela orla da praia tamanha
     voas pelo mar, pousas na aranha.

Negro leite das entranhas da terra
     primevo te saúda o belo progresso.

Em tardes de verão catas-te em vão,
     sub tegmini fagi, desvios da razão.

Cais como pedra nas águas verdes
     onde Iara te espera antes de seres.

Portas cerradas abrem o portal do mar
     caminhos barrados, caminhos no ar.

Tu, pária da pátria, saúda o progresso
     cidadão sem cidade, tu és teu recesso.






               Assim seja

Tu te extraviaste em uma floresta
     tu te perdeste na estrada do mar
     tu não viste marcos postos no ar
     pensaste que o fascista não molesta?

Nas quinas e esquinas lá de Brasília
     tantas vezes viste te explodirem
     como se houvesse bomba a cada esquina
     e de bar em bar te enchesses de pinga.

Tu apalpas teus dedos - sentes garras
     apalpas tua pele – bem longos pêlos
     apalpas tuas orelhas – suaves felpos
     miras teus dentes - caninos pontudos.

Mas tu, num balanço tão fora de hora
     tu vês estropiado o teu descaminho
     tu vês que vive melhor teu vizinho
     vês os pés tropeçar sempre e agora.

Um sorriso trigueiro agora te intriga
     curte o dia, o instante e a polca
     dança pelos salões da boa amizade
     mira os corpos a dançar na penumbra.

Ir para o fundo do mar? -Já estás nele.
     Dar-te um tiro na pinha? -Já foi dado.
     Enterro da esperança? –És feto abortado.
     Goza, pois, o mero momento, e nada além.










          Chapeuzinho vermelhinho
Assume a desgraça para te fazer forte:
     percorre as sombrias veredas do norte
     e aceita ser excluído: destino e sorte.

As trevas se adensam na tua floresta
     não crês que a vida seja uma festa
     não vês pássaro piando pela fresta.

Teus filhos se perderam em teu percurso
     também se perderam teus atos e rastros
     perdeste na noite todos os teus astros.

Anos perdeste em labirintos e minitauros
     tu és pó, e ao pó sequer podes tornar
     mas talvez ainda encontres alguma paz.

O inimigo espreita, faz o cerco, crocita
     bandidos te criminalizam, te recolhem
     tu te fazes de bobo, todo te encolhes.

Não vês mais estrada na noite que se esvaiu
     o pampa estaria aberto, aberto e vazio
     por que não aceitas ir à puta que pariu?

Não queres passear inocente pela floresta
     enquanto o lobo não vem. Estás pronto?
     Queres lobos na mata e guarás no pampa?

Se não confias nos dentes da boca da avó
     confia ao menos nas palavras de sua boca!
     Confia ainda menos nas palavras da touca.

Quiseras encontrar o colo fofo de tua avó
     quiseras poder lhe dar um cesto de doces
     mas tua avó é um lobo, ela já te devorou.

Te vi a caminhar pela estrada do quadro
     te vi desaparecer fora de todo esquadro
     mas no avesso não te achei esquartejado.


               Negruschka

Da paixão adolescente, o corte sem sutura
e tu a crer que eras culpado pela ruptura:
nada poderá trazer de volta nem compensar
aquela que a tua idiotia tentou preservar.

Vê tua mulher sem de outra ter nostalgia:
ou crês que teus filhos não deviam existir
que terias como a primeva melhor sintonia,
será que tudo é agora vazio, sem sentido?

Enquanto ainda tinhas aquela grande amada
lamentavas não teres o que agora tu tens:
perdas se inventam para perder o presente
o ausente faz sempre do presente um nada.

Ora, se tipos tão espertos são tão parvos
se de nada adianta ler imensos tratados,
se bom ninguém se torna por arte e análise
não se curam amores em papos e psicanálise.

Até o fundo tu te arrastaste em tua dor:
de quatro andaste quando perdeste o amor
a macabra dança da paixão tornou-se ódio
fazendo do novo prazer um doce opróbrio.

De quatro chegaste a rastejar no albergue
mesmo tendo já assistido Play Strindberg
mesmo tendo assistido de mãos entrelaçadas
mesmo sabendo ser tão precioso vosso caso.

Verdades ela usava para mentir bem catita
não só o seu passado era fingida escrita
ela não era fiel nem a si e nem te queria:
ganhaste cornos, perdeste o gado e crias.

Tudo desentendia com livros, com palavras
melhor se entendiam vossos corpos álacres;
mas se ela mentiu quanto que lhe convinha

"minha é a vingança" dizes Senhor da Vinha.

Ora estás no vazio que tu próprio montaste
ora para sempre está perdida tua felicidade
disso sabias, disseste, e era tarde demais:
destino funesto, alegria pra ti nunca mais.

Quando ela te disse Não, e te disse Adeus
essa foi sua única sincera maneira de amar
foi um respeito que antes por ti não teve
foi o hire and fire modo de te resguardar.

Tu outra vez te arrastas tão perto do chão
enquanto ela é Excelentíssima Embaixatriz:
temias que ela não fosse digna do teu nariz
porém ela dava para quem lhe dava uma mão!

Mais uma vez rastejas e procuras tua lama
enquanto outros procuram passar rasteiras
manejam punhais no escuro por suas beiras
preparam para alheia desgraça uma boa cama.

Vários deles são teus amigos, dizem que são
tu perdes a chance de calar, contas dúvidas
não sabes que te farão, de dúvidas, dívidas
não sabes que há inimigo tanto à disposição.

Porcelana que ora se destrói, está perdida
para sempre perdida está a tua humana vida
perdidos estão os filhos que poderias ter
salvos estão filhos que vocês teriam tido.

Nada consola, nada te compensa a perda grave
pra ti está perdida a vida, sobram fantasmas
nada com o brilho de prístina aurora primeva
não retorna em vós o que planta a primavera.

E se ela no entanto voltasse, desse sua mão
estendesse o seu corpo após tanto percurso
pedisse perdão por erros, enganos e abusos

e dissesse ser preciso curvar-se ao coração?

Tu crês, pedirias perdão, com ela seguirias
cumprindo o destino, como se fosses demente
com a remota sensação nos escuros da mente
que a uma tal mulher confiar-te não devias.



































          Ante(s) (d)a lei

Diante da porta de uma sala talvez vazia
esperas e esperas, horas e anos, redenção.
Apenas o inimigo é que se move na sombra
lança o mau olhado, querendo a tua morte
enquanto tentas captar obscuros fantasmas
como se eles quisessem sair das sombras
como se eles quisessem pôr-se a teus pés.

Se a porta se abrisse e salvação houvesse
sairia apenas parca promessa da esperança
(como se não fosse uma ponta de um punhal
o que iria procurar tuas impuras entranhas
o que iria fazer de ti um próximo cadáver).
No Brasil, sessenta milhões de famélicos
a ilustrar a boa miséria nossa de cada dia:
e tu a creres que no encanto de um verso
possa cantar o ser, bater a asa dum anjo.

Em sua fome está a tua busca de infinito
a tua busca de um pouco de paz, de pouso
e a tua disposição de tentar até à morte
como se não fosse teu o curso do opróbio
como se não fosse tua a vergonha e morte.

Tu nasceste pobre, tu dependes de emprego
não terias direito a ler, pensar, escrever
tu tens um pecado original quase incurável
e não te dispões a beber da água do olvido
a bênção do pai sacrossanto: estás perdido.

No entanto teimas, queres ter até palavra
como se não te bastasse o ar que respiras
como se o ar que expiras fosse inspirável
inspirável fosse o ar que na fala expiras:
é negra a sombra, é negra a asa estendida.




     Casas no peito

Nas noites mal dormidas
quando a garra fascista
rebuscava a tua jugular
e feito um lobo rondava
a noite e tua esperança
tomaste o navio do adeus
e foste ao remoto ignoto
da terra de teus bisavós.
Não sabes como se moverão
as folhas mortas no chão
não sabes como crescerão
as plantas noutro rincão.
Os botões de tua camisa
já não residem nas casas
os rincões do teu ânimo
aqui já abatem suas asas.























     Aos deuses do agora

Tu propões a esses deuses do agora
esses que amanhã estarão olvidados
os teus pecados e alguma salvação:
mas tais deuses nem sequer escutam
teus pecados não têm a forma certa
não são sequer um signo de alerta.
Assim te calas enquanto suspiras
enquanto acumulas pilhas de papel
rabiscadas com tinta azul e preta
como se tu pudesses obter redenção
e não houvesse a caminho carrascos.
És um pano vermelho para os touros
para esses que preparam teu enterro
que irão entoar uns cantos para ti
("adeus, meu querido irmão, adeus")
que porão pedras, flores na tua cova
muitas pedras para não poderes fugir
mais flores para não apareceres mais.
Ou quem sabe subirás tu a altos céus
(em urubus que limparam teus ossos)?
Tristeza te invade feito um chuvisco
tua alma repousa numa paz impossível:
sequer me ouves, não sabes quem sou.
















          Berlin-Ost, maio de 1989

Um vento frio sopra lá fora
      chove chuva choverando
      teus pés percorrem as calçadas de Berlim
      percorrem as calçadas sob os arcos
      percorrem a noite sul-americana
      alguém se consola com os passos de Hegel
                        com os passos de Engels
                        com os passos de Marx
                        com os passos de Lenin
                        com os passos de Brecht
      nessas mesmas calçadas da Friedrichstrasse:
      tu te consolas com a comida que comes
      com a inquietação que ora percorre
      os olhares do teu povo perto do Muro.

Tu já sabes agora     
               a diferença
      entre o Hotel Metropol e a Kneipe Ancona
      entre o Café Bauer e a Konsum Klause
      e tu sabes que algum Socialismo
                 só será depois do capitalismo.

E abraças o teu amigo Ênio Squeff
             dizendo adeus, boa viagem
               bom retorno a São Paulo
               estamos aí - nessa luta -
               a sociedade dos dois terços
               a sociedade de um terço
               a sociedade de todos nós
               e aquela que não veremos nós.

As mãos estendem um aceno
                  dizem adeus pela janela.

A luta continua, dia após dia
      nós não temos a menor importância
      somos apenas uma peça passageira
      breve sombra em um trem que passa.

               Diferensa

Tu tens em ti mesmo a irreparável diferensa
em que não pensas que outros sempre reparam;
tu tens em ti mesmo irrecuperável diferença
não queres crer que irás sucumbir sem cura.

Eles já não sabem mais o que fazer contigo
eles não querem mesmo fazer nada contigo
exceto apontar-te a porta para a tua saída:
conténs para eles podridão sem alternativa.

Estranhos mistérios da mente mais obscura
teu destino agora se marca de morte e dor
traça o rumo de tuas pegadas sem dissabor
cães de caça além o porco selvagem buscam.

Disso que és participa sempre a diferensa
aquela que faz que sempre alguém te vença
aquela que é tua salvação e teu inferno:
não há cura e nem salvação: és o inverno.

Nunca há de se encontrar uma pátria para ti,
mas tens ainda a ilusão do apelo a Filocteto:
vai dizendo adeus às promessas do acaso: ri:
por perguntar, jamais terás conforto ou teto.















               Filocteto

Mira em tua perna essa mal-cheirosa ferida
incurável ela ostenta ao sol sua podridão.
Foi uma flecha feroz, foi, pobre Filocteto
em um instante fugaz, num instante eterno.
De tempos antanhos provém essa tua chaga
ela já vem da perna chagada dos teus avós
e só há de sucumbir com tua própria morte
somente assim ela terá cura, terá salvação
(ou será que repassa para filhos, netos?).
Mira de novo essa tua tão horrenda ferida
mira nela o que tantos outros já miraram
bem antes de tu mesmo saberes que a tinhas
mira nela o ódio contido na mira da flecha
mira o ódio que aí selado para sempre ficou.
Enquanto lavas a chaga nas águas do regato
enfrenta nos olhos o teu estranho desespero
vê o que neles ainda restou da última deusa
daquela que miravas enquanto crias no além:
tirando a ferida já não tens mais nada teu
tu és apenas a tua ferida, apenas a ferida
a ferida sem cura, ferida imortal, ferida
que não mata o teu corpo, mas te é fatal.
Tu fedes, enoja-te, és teu próprio horror.
Tu não podes mais acusar o olhar do acúleo
não podes acusar Aquiles nem outro qualquer
tu já és agora tua própria, plena acusação
tu já és agora somente a pus de tua ferida:
como podes ainda sonhar que alguém chegue
para dizer-te que a pátria precisa de ti?
Tu tens ainda hoje tão horrenda esperança?
Pensas poder assim curar a horrenda ferida?
Não. Fica nessa ilha, fica na ilha que tens
nessa ilha que o acaso te concedeu um dia
ilha que te parece prisão, e é teu refúgio.
Tu hoje não tens mais cura, tu és tua morte
trata de ficar sozinho nessa ilha do acaso
não transmitas a ninguém o horrível cheiro
esse terrível odor que vem de tua podridão:
tu já não tens mais salvação, tu és um erro
uma peça a ser posta em uma lata de refugos
é um erro atroz tu ainda estares vivo agora
a flecha que te procurou, atingiu tua perna
essa flecha que não acertou teu pobre peito
essa flecha não se enganou, não te enganou:
tu és hoje tua morte, já não tens salvação.
Sim, tu te retiraste do convívio dos homens
tu foste bem longe, mas não longe de chega:
um dia ainda poderá vir alguém por esse mar
ainda poderás ler em seus lábios palavras
"vem, a pátria em perigo ora precisa de ti"
pretenderás salvar a pátria com tua ferida
quando não foram sequer essas as palavras
nem boca não houve, e lábios nada disseram.
Esquece tudo, esquece que viste guerreiros
te afasta da praia, não mires mais esse mar.
Tu não tens mais pátria no além das ondas.
Essa ilha que habitas, ilha tão solitária
ilha que habitas na companhia de tua sombra
é a tua única, definitiva, irredenta pátria
nela nasceste o que és e para sempre serás
nela construíste o teu refúgio, teu quintal
nela tu tentaste curar uma ferida incurável
nela terás de construir ainda o teu túmulo
para em breve, sozinho, nele te reclinares.
Tu contaminas a ilha toda com a tua ferida
tu estragas a límpida linfa do seu regato
e quem contigo fica - ar, pedra, pássaro -
tem também a tua ferida, contém a tua pus.
Tentas lavar com água a tua chaga horrenda
com a limpa linfa do regato que corre aqui
entre palmeiras onde pássaros ainda cantam;
mas se um regato pudesse gritar, gritaria
ele gritaria seu horror por ti, Filocteto,
ele gritaria o seu impotente horror por ti.
Sabes que cura não existe para tua ferida
a única cura possível é tua própria morte:
a noite é a noite, e ela começa, principia
quando pela manhã a noite se refaz no dia.
Algumas pegadas que te deixaram na praia
quando os deuses te tomaram, cá trouxeram
essas marcas já se foram todas, há anos,
varridas pelo vento, lavadas pela chuva;
essas pegadas que tu hoje viste na praia
não eram pegadas de deuses nem de heróis
não eram sequer pegadas de ínfima gente
foram apenas marcas da chuva e do vento
sem sentido algum e sem mensagem alguma.
Se não tivesses na perna a imensa ferida
tu já não saberias mais para que viverias
tu vives para essa cratera que te devora
tu és tão inútil quanto essa chaga antiga.
Ela não te mata, e ela não te deixa viver
tu já estás morto, só ela em ti floresce
tu és apenas a tua imensa ferida, só ela
tu és tão imortal quanto ela te é mortal.
Enquanto viveres, há de viver tua ferida
tu sabes, e eu, tua sombra, eu também sei
tu terás de morrer para que ela se cure
o preço da cura é apenas a tua pobre vida
essa tua vida tão inútil, replena de dor
uma vida que não é mais que essa ferida
não mais que os gritos que lanças no ar
que tu lanças junto às gaivotas da praia
quando o sol se põe e astros se anunciam.
São inúteis os teus gritos, todos inúteis
eles não chegam sequer à crista das ondas
a essa ondulada linha onde se quebra o mar
nem lá eles chegam, os teus gritos inúteis.
Ninguém virá dizer "a pátria precisa de ti"
não virão as gaivotas nem as ondas do mar
e mesmo que alguém aportasse em tua ilha
tu que és apenas ainda a pus de tua ferida
tu terias de te esconder entre as palmeiras
fazer de conta que de fato não existes mais.
Assim, na sombra, também eu, a tua sombra
poderia afinal libertar-me, sumir de todo
não mais falar de tua ferida exposta ao sol
não mais expor à fala essa tua ferida fatal
não mais sol, Filocteto, não mais palavras
torna-te tu mesmo tua sombra, teu silêncio.


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