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Anjos humanos
Amanda Gurgel

Ao longo da vida presenciamos momentos que nos tiram da meodicridade de nosso egoísmo exclusivista e nos elevam até os píncaros do sublime. Tais momentos - capazes de executarem mudanças complexas-, muitas vezes escondem-se atrás da simplicidade incauta. Estes instantes me remetem a uma reflexão introspectiva, a qual me leva a concluir que a grandiosidade magnificente talvez seja a própria simplicidade, pois é dentre as frestas do simples que me deparo com o complexo e sublime.
Foi em um Sábado pela manhã que tive o privilégio de achar-me vivendo um momento assim. Eu visitava uma igreja em uma localidade pobre. As pessoas por todas as partes carregavam em seus traços as marcas de uma vida causticada pela escassez. Neste contexto, conheci Ana Ryzia, uma criança, que na inocência de sua espontaneidade me proporcionou aprender em poucos instantes lições de uma vida inteira.
Já era dada a hora do fim do culto. As pessoas se retiravam da igreja. No final do corredor pelo qual passávamos, vi uma menina. Era pequena, sua pele era morena, seus cabelos lisos e curtos eram castanhos claros, quase loiros. Seu rosto rechonchudo trazia marcas indígenas, e os olhinhos oblíquos que lhe pertenciam, me observavam atentamente. Olhei para ela, sorri e pisquei. A menina me retribuiu o sorriso e me deu uma piscadela desconcertada. Permaneceu me observando. Eu procurava desviar o olhar, evitando uma situação constrangedora, mas a criança insistia em me observar, provando não se importar com etiquetas e formalidades. Tal atitude por parte dela me levou à meus primórdios existenciais, nos quais cerimônias superficiais não me eram relevantes. Adotando novamente antigos conceitos, permaneci sorrindo para Ana Ryzia, que me correspondia com um sorriso cada vez mais largo.
Alguém conversou comigo, interrompendo a troca de sorrisos, mas Ana continuava inerte, e, encostada num banco, permanecia me olhando atentamente. Findada a conversa, dei alguns passos em direção a porta de saída. De repente, aquela menina de olhos estreitos, porém sorriso largo, veio correndo em minha direção e me deu um abraço forte. Surpresa , retribuí o abraço. Jamais senti um abraço como aquele, que forte, contudo lânguido, se mostrava paradoxal. Talvez representasse o próprio paradoxo existencial humano no qual me achava imersa. Senti a dialética de um abraço que fisicamente fraco era emocionalmente forte. A inocência infantil enlevava o ato de Ana. Troquei algumas palavras com ela, foi assim, que descobri seu nome, e os poucos oito anos de vida que possuía.
Perguntei-me como poderia um abraço significar tanto. Desencobrindo fetiches e devaneios recônditos, aquele abraço me rememorou propósitos perdidos ao longo dos caminhos existenciais longamente tortuosos. As lições que aprendi recebendo um abraço se tornaram ainda mais intensas e significativas quando me dei conta do contexto sócio-cultural que circundava a menina.
Após o abraço e o curto diálogo, me dirigi ao carro. Enquanto eu entrava no carro, Ana Ryzia passou sorrindo e acenando, sentada na garupa da bicicleta do pai, dividindo espaço com outra criança. Foi aí que me dei conta de que a pobreza era evidente. Aquela criança vivia no sertão Cearense, onde a seca castigava, e os meios de sobrevivência são escassos. Não vi sua mãe, talvez a menina sequer tivesse mãe.
Senti vontade de sair correndo atrás da bicicleta que levava Ana, talvez eu pudesse pedir outro abraço a ela, outro abraço que como aquele, devolvesse a minha ingenuidade infantil – perdida ao longo do tempo-, e me fizesse enxergar o sentido óbvio da vida. Sua simplicidade e pobreza eram complexas e ricas. Ainda agora, causa-me admiração o contraste entre seu sorriso, juntamente com seu abraço tão espontâneo, e a pobreza na qual a menina estava imersa. Caio novamente em uma reflexão introspectiva que faz com que eu me indague a respeito do significado da pobreza, e as dimensões do sofrimento. De onde viria a força que Ana tinha para sorrir? De onde a menina tirava a alegria e a espontaneidade, para abraçar assim uma estranha que apenas lhe sorrira? O que teria ela visto em mim? Acreditar nas pessoas, enxergar o positivo. Estes conceitos e princípios saltavam dos gestos da menina, me fazendo ouvir o inaudível e sentir o que não se vê.
Talvez, eu não tenha outra vez a oportunidade de encontrar Ana Ryzia. Mas permanecerá intacta em minha mente a lembrança deste abraço, que agora tão distante permanece ainda próximo. Que tão dialético objetivo e simples, me trouxe até os recônditos de meu infinito particular, e ao passo que resgatou, também criou em mim o que ora se perdeu, ora nunca existiu. Como agradecer a essa criança cheia de contrastes, que em sua ingenuidade inocente, me fez tão bem? Permanece a dívida eterna, permanece o vácuo constante, de um agradecimento que jamais se concretizará, mas que em sua impossibilidade me resgata, e me leva a crer em anjos humanos, que cruzam meu caminho com objetivos específicos, me leva a crer em um Deus, com um poder superior, que ensina o que me falta aprender, que estabelece comigo diálogo sem palavras. Nas frestas da simplicidade deste momento, enxerguei a grandiosidade magnificente, doravante inescamoteável de mim.


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