CELA DA MORTE
O condenado fixou o olhar, pela última vez, em tudo que o cercava, naquele ambiente que lhe era estranho.
Já recordara, com angústia, todas as passagens de sua vida. Se não todas, pelo menos as que mais profundamente gravadas ficaram em sua memória.
Memória... Se, àquela hora, era ainda possível classificar como memória uma mente confusa, perturbada, que somente ainda registrava algum raciocínio por força do instinto de conservação.
Recordava-se de que, momentos antes, trouxeram-lhe um liquido incolor. E um breve sentimento humanitário perpassou-lhe o cérebro, imaginando que pelo menos aqueles carrascos impiedosos tinham se lembrado de saciar-lhe a sede.
A decepção, porém, foi instantânea, ao sentir o gosto da bebida. Cuspiu-a imediatamente, mas foi o que bastou para que mãos potentes fizessem verter-lhe garganta abaixo aquele fogo liquefeito.
A partir de então, os reflexos se lhe fugiram.
“Miseráveis! Querem privar-me dos sentidos até a hora fatal. Mas não conseguirão, não! Hei de cravar-lhes o olhar, mesmo depois de morto.”
Por que, afinal, estava ele ali? Que crime cometera, para que o colocassem naquela prisão de forma circular? A mesma onde ele vira permanecerem alguns de seus companheiros antigos, indagando sempre: por quê? Serei eu, algum dia, o ocupante daquele lugar mórbido, que não era de existência permanente, mas sempre traçado à volta do condenado, algum tempo antes de sua execução?
Engordara um pouco, nos últimos dias. E era sempre a hora mais amena, a da refeição. Tudo em virtude daquele anjo louro que lhe trazia a ração. Tão bela! Como poderia pertencer à estirpe daqueles assassinos, que o mantinham ali, indefeso, aguardando a morte? Impossível descobrir. Já não compreendia uma só palavra dos carcereiros. Pareciam falar um idioma estranho, complexo. Seria melhor aceitar, apenas, as carícias que aquela visão branca fazia em sua cabeça tão conturbada.
Pesquisou novamente o local. Bem em frente a ele, uma construção de forma quadrangular, esmaltada. Notou que o teto era mais comprido. Botões coloridos, em seu redor, pareciam dar-lhe uma aparência futurista. Bem no centro, a abertura fatal, onde ele já vira companheiros penetrarem pela derradeira vez. E o sadismo brutal de seus executores planejara, ainda, uma janela de vidro na porta metálica daquele recinto sinistro, por onde poderiam observar os estertores dos infelizes...
Uma pergunta, porém, persistia no condenado: “Por quê?” Por que aquilo? Por que tivera sido privado repentinamente da antiga vida, tão feliz, em suas escapadas para os matagais próximos à casa, onde ficava horas esquecidas, observando os pássaros e os peixinhos no regato próximo? Por que? Por...
Tarde demais. Mãos de aço o subjugaram. Mãos negras, ainda pôde observar. Uma angústia final apossou-se dele, aumentando subitamente ao distinguir, ao longe, entre aqueles que o olhavam como se através de uma parede de vidro, o anjo louro que trazia o alimento à sua boca murcha e ressequida. “Então, ela, também... Mas... Ela está choran...”
O brilho da lâmina foi mais rápido que o pensamento do infeliz. A visão turvou-se repentinamente e um profundo torpor dominou-o. Não chegou a ouvir as palavras que embalaram aquele cerimonial macabro. Mas, se as ouvisse, também não as compreenderia:
- “Lucinha, não fica olhando com pena, senão o peru não morre...”
|
Biografia: Brasileiro, casado, nasceu no RJ, em 06/09/1946. É Oficial de Marinha (Escola Naval, 1967) e Administrador (UNESA, 1996). Passou à reserva em 1996 e, desde então, trabalha na iniciativa privada, como Administrador e Consultor. Tem mais de sessenta trabalhos publicados sobre assuntos militares, história, geografia, política e ficção, em periódicos especializados e jornais do RJ e de MS. Conquistou vários prêmios literários e, em 2000, o Clube Naval editou seu livro “Coisa de Naval”. Tem livros à venda nos sites Clube de Autores, AgBook, Recanto das Letras e Bookess. |