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Retorno à Mulher - Gato
Gil Cordeiro Dias Ferreira

Resumo:
Réplica a uma crônica de Joaquim Ferreira dos Santos, a respeito de uma misteriosa mulher que, nos anos 50, durante o Carnaval, aparecia em vários bailes, blocos e desfiles do Rio de Janeiro, vestida de gata.

Retorno à Mulher – Gato
(Para Joaquim Ferreira dos Santos, em resposta à sua Crônica sobre a Mulher-Gato, publicada na página 6 do Segundo Caderno de O Globo, Segunda-feira de Carnaval, 23/02/2009)
Meu caro Joaquim:
Ora (diria Bilac), ler suas crônicas segunda-feirinas, ainda mais no Carnaval! Pois fi-lo porque qui-lo, ainda que certo de ter perdido o senso, eis que, no tríduo momesco, os editores movem sua página Gente Boa, qual a Logo, do tradicional Segundo Caderno para o efêmero encarte desses dias de loucura – mas não a crônica hebdomadária: esta, achei-a na última página, onde sempre esteve. Surpresa – fala-nos da Mulher-Gato. Influência, talvez, da proximidade do Oscar, que lhe evocou Batman? Não, não se referia o artigo à afamada inimiga (ou parceira?) do Homem-Morcego, eternizada por Michelle Pfeiffer, mas a uma anônima foliã do coreto do Largo do Bicão, supostamente nos anos 50.
Pois creia-me, Joaquim – eu a conheci. Sei sua identidade, que tenho preservado em sigilo por quase cinco décadas, mas, uma vez trazida a público sua memória em texto certamente lido à farta por Seca e Meca, parece-me imperioso revelá-la. Aos costumes, pois.
Corriam, de fato, os gloriosos anos 50, ao som de Elvis, Anka, Sedaka, Brenda Lee et caterva. Nós, moleques classe média – vamos nomear os bois: eu, Mato-Grosso e o Joca, em homenagem ao Adoniran, de calça Far-West e Keds, compúnhamos a turma de certa rua do entorno da Saeñz Peña. Dentre outras travessuras... Matinês nos muitos cinemas dali, sundaes banana split no Palheta, paqueras de empregadinhas nos domingos depois da Missa das seis, queijo com banana no Bob’s e falsificações de carteirinhas de estudante para assistirmos a filmes proibidos a menores de 18 anos, ou para jogarmos sinuca no Éden. De fazer corar um frade de pedra, não?
Pois volta e meia passava por nós o Geraldinho. Mais velho, não baixava em nossa corriola. Conhecido como Teresópolis – alto, bonito e fresco. Sem dúvida, atlético, apolíneo. Andava com a turma dos halterofilistas e lutadores de jiu-jitsu da academia do Gracie, que faziam ponto no trecho da Conde de Bonfim que define a Praça, entre a esquina de General Roca – o velho posto Shell “com I.C.A.”, nunca soube o que era isso – e a Almirante Cóchrane, com a Granado e seu relógio de quatro faces. No meio, a Major Ávila – de um lado o Carioca, do outro o América. Entremeando esses pontos, o Metro, a Confeitaria Tijuca, as Lojas Americanas, o “poeira” Tijuquinha, a Padaria Fidalga, a Perfumaria Carneiro... Pois ali imperavam os rapazes musculosos que nos punham para correr, se nos assanhássemos muito em seus domínios. Se manda, garoto !
Mas o Geraldinho... Sim, pederasta passivo, cochichava-se. Histórias corriam a seu respeito: parido por uma puta muito bem aprumada, de apenas quinze anos, que a nenhum de nós fora dado conhecer, mas que, dizia-se, era sustentada por um Deputado, cheio da grana, suposto pai do efebo, que dava boa vida ao filho bastardo e à concubina. Geraldinho freqüentava a Lapa e a Cinelândia, era bailarino num daqueles teatros de revista, usava um tênis especial onde amarrava a lâmina de uma navalha Solingen. Em brigas de rua, levantava a perna nas alturas e atingia o rosto do adversário com a lâmina – daí a frase “vou entrar de sola”. Tanto que a rapaziada da Saeñz Peña, que vivia dando cascudos em bichas que passassem por ali, não se metia com ele, pelo contrário, era um dos iniciados na gangue. Dizia-se que era protegido de Madame Satã e seu amante, um Fuzileiro Naval.
Mas vez por outra dava uma meia-trava ao passar por nossa turma, quando jogávamos porrinha ou batíamos papo, à noite. Pedia fogo, acendia um Parliament importado – aquele cujo filtro tinha um furo onde se colocava a ponta da língua -, comprado no Palheta. Não puxava muito assunto, era monossilábico, usava umas gírias que não entendíamos, fazia-se misterioso, dava uma de malandro, vivido, esperto, bem informado, cara que sabia das coisas, muito superior a nós, pobres mortais. Um exibido, enfim.
Belo dia, perto do Carnaval, entrou no papo conosco. Meio ligadão, tinha tomado Pervitin ou Dexamil, ou dado uma prise de lança-perfume ou cheirinho da loló. Olhão vermelho de quem puxou fumo brabo, nós com medo de que ele escalasse um ali para traçá-lo, mas não, o cara tinha namorado certo. Queria só contar vantagem, dizer o que ia aprontar no Carnaval. Foi quando nos contou da Mulher-Gato, suposta parceira sua sei lá em que peça do Walter Pinto lá na Tiradentes. A mulher tinha o diabo no couro, linda de morrer, contorcionista, jogava capoeira, saía vestida de gata pulando pelos telhados, rádio-patrulha nenhuma conseguia alcançá-la, fazia e acontecia. E nós, como ele dizia rindo, estávamos mais por fora que umbigo de vedete.
Aquilo mexeu com nossos brios, resolvemos tirar a limpo. Mulher-gato coisa nenhuma, tudo cascata de Geraldinho, sacou adoidado, ‘bora conferir.
E se bem o dissemos, melhor fizemos. Sábado, meio-dia, lá vamos, eu, Mato-Grosso e o Joca, de bonde até a Galeria Cruzeiro. No primeiro camelô, compramos logo os lança-perfumes Colombina, de vidro, os sacos de filó com confete e pacotes de serpentinas, aqueles dos vinte rolos, embrulhados em papel fino de terceira categoria. Rodada de chopes no Bar da Brahma, para aquecer – bebendo escondidos, nos fundos, e molhando a mão do garçom, ninguém ali chegara aos dezoito - , e tome de andar pela Rio Branco atrás dos Blocos. Bola Preta saindo lá da Treze de Maio, e de repente...olha a Mulher-gato lá, amigão ! Pois não é que a distinta requebrava na rabeira do cordão ? Mas logo saiu correndo – felinamente – e nós atrás. Que sufoco, seguir aquela peça, corria mais que o Zatopeck ! E assim foi a tarde inteira, ao longo da Avenida: do Bola para o Bafo da Onça, deste para os Caciques de Ramos. Aí entraram os frevos, e ela atrás, mesmo sem sombrinha: Lenhadores, Vassourinhas, Carvoeiros, Caiadores...e nós perseguindo !!!!!!!!!! De repente, uma paradinha na Casa Simpatia, pediu uma Faixa Azul casco escuro, e enquanto bebia, cantarolava a Boca de Siri, do Wilson Batista e do Germano Coelho:
Eu saí de sarongue / Mas que calor, mas que calor, mas que calor / Cantei no bonde de São Januário, Alá...Alá-la-ô, Alá-ala-ô / Até dancei de índio / Auê-au-ê, Auê-au-ê, Auê-au-ê / Quem encontrar o meu moreno por aí / Faça-me o obséquio, boca de siri..E desapareceu pela Rua do Ouvidor !
Mas voltamos à Rio Branco no domingo à noite, decididos a descobrir quem era a figura. Parados em frente ao nº 277 – o velho São Borja, do PTB de Getúlio, do Paisano com a melhor pizza da cidade, da Rádio Copacabana dos espíritas, do Senadinho lá nos últimos andares e do Dancing Avenida no subsolo – mas tudo fechado. E lá vêm as Escolas – sambando ainda, nada de marchar como hoje. Quem abre é a Portela com sua águia... Mas quem fecha a azul e branco é a Mulher-gato! Caramba, ela não sossega! E ficamos até o fim, vendo o Salgueiro, o Império, a Mangueira, a Unidos da Tijuca... Em todas, sem exceção, a bichana dá um jeito de se infiltrar, até sumir, já dia claro, encarapitada num carro alegórico quebrado da escola cerra-fila... E nós olhando...
Segunda, dia dos Ranchos, paramos agora na esquina da Rio Branco com a Presidente Wilson, em frente ao nº 377, o Brasília, com sua agência da B.O.A.C., bem junto do Obelisco. Lá vêm Ameno Resedá, Flor do Abacate, Rosa de Ouro, Dois de Ouro, Rosa Branca, Kananga do Japão. Mas a gata sumiu. Só agora, dez lustros depois, descubro que, na Segunda-feira, ela estava no coreto do Largo do Bicão...
Terça, é hoje só, amanhã não tem mais, mais uma vez corremos à Avenida, são as Sociedades. Os clarins soam fortes, tocando a Marcha Triunfal da Aída, de Verdi – são os Democráticos entrando em cena. E atrás do último carro...ei-la que ressurge na plenitude de sua exuberância física: a Mulher-gato, para nosso deleite ! E não se conforma em apenas abrir o desfile, aparece de novo nos Tenentes do Diabo, nos Fenianos, nos Pierrôs da Caverna...e sai correndo em direção ao Cine Odeon, toma um chope na Americana. Nós atrás, ela completa a melodia de sábado:
Quase que morri de insolação / Jogaram pó-de-mico / Mas não fiquei jururu / Continuei me exibindo / Me desmilingüindo no passo do canguru / O trem atrasou quando eu fui pra Meriti / Faz boca de siri ...
E logo foge pela Rua do Passeio, passa em frente à Mesbla sem olhar as vitrines, sai no Largo da Lapa, cruza os Arcos, envereda pela Mem de Sá. Não dá para segui-la, deve acabar no Capela, comendo uma cabritada, ou no Bar Brasil, cantando Liechtenstein Polka com os alemães, que celebram seu Dienstag Fett – a terça- feira gorda, o Mardi-gras!
Quarta-feira. Desânimo geral. Sim, a Mulher-gato existe, como disse o Geraldinho. Mas quem será ? E aí nos lembramos do Chave-de-Ouro, no Engenho de Dentro ! Corre, turma ! Um lotação até a Central, daí embarcamos no parador. Lauro Muller/Praça da Bandeira, São Cristovão, Quinta, Maracanã, Mangueira, São Francisco Xavier, Rocha, Riachuelo, Sampaio, Engenho Novo, Silva Freire, Méier, Todos os Santos...e enfim o Engenho de Dentro. Salta, moçada! Correndo pela Rua Goiás, cruzando a linha, fugindo pela Amaro Cavalcanti, a 24ª DP já começou a soltar os meganhas atrás do bloco das Cinzas.
E chegamos esbaforidos à Praça Sargento Eudóxio, já no Encantado, paramos para respirar... E o que vemos debaixo de um fícus frondoso? A Mulher-gato dormindo !!!!!!!! De certo queria sair no Chave-de-Ouro, veio para cá, apagou. Chegamos perto, apreciando aquele belo exemplar da raça, ressonando tranqüila, os seios firmes subindo e descendo dentro da fantasia preta de cetim, a ponta do rabo da gata segura na mão esquerda...um pé calçado, outro não, a sandália solta ao lado... E a máscara. Ah, a máscara ! De gata, mesmo, com bigodes de piaçava, lantejoulas e paetês...Ousado, ameaço tirá-la. Os amigos seguram minha mão, hesitam – “Calma aí...” – mas é tarde. Puxo a peça, e só tenho tempo de ouvir o Joca gritando: “Geraldinho !!!”
Aí o pau canta. Um tapa no pé do ouvido me joga longe, Mato-Grosso leva uma rasteira e cai de quatro, Joca toma um pontapé na bunda. Aturdidos com tanta porrada, saímos correndo até o Engenho de Dentro de novo – sorte, o direto está parado, vai voltar para a Central, compramos os bilhetes e nos jogamos lá dentro, ainda a tempo de ouvirmos a gritaria do pessoal do Chave-de-Ouro e as sirenes dos rapas atrás deles.
Passado o susto, confabulamos, em meio ao sacolejo do trem ligeiro. Mato-Grosso, o único quatro-olhos da turma, não viu nada direito, está zonzo. Joca, na hora em que o pau comeu, tinha acabado de tirar água do joelho atrás de outra árvore, viu o Geraldinho, deu o alerta, pegou as sobras.
E assim ficamos sabendo que a Mulher-gato era a Marli Felicidade, mulher da vida manjadíssima em nossa rua, discreta o ano inteiro, mas soltando a franga durante o reinado de Momo !!! Quem diria !!! A Marli !!!!
Pois é, Joaquim. Você jurava que a Mulher-gato era o próprio Geraldinho, né?
Xongas. Ele apenas estava lá para recolhê-la. Era a mãe dele.
Boa quaresma para você.
Gil





Biografia:
Brasileiro, casado, nasceu no RJ, em 06/09/1946. É Oficial de Marinha (Escola Naval, 1967) e Administrador (UNESA, 1996). Passou à reserva em 1996 e, desde então, trabalha na iniciativa privada, como Administrador e Consultor. Tem mais de sessenta trabalhos publicados sobre assuntos militares, história, geografia, política e ficção, em periódicos especializados e jornais do RJ e de MS. Conquistou vários prêmios literários e, em 2000, o Clube Naval editou seu livro “Coisa de Naval”. Tem livros à venda nos sites Clube de Autores, AgBook, Recanto das Letras e Bookess.
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