“A lucidez é a ferida mais próxima do sol”, disse certa feita o cineasta René Clair. Ficou ruminando o pensamento, enquanto aniquilava uma barra de chocolate. Normalmente, costumava brincar com os amigos. “Se para vocês vale o ditado latino in vino veritas, eu encontro essa tal verdade no chocolate. Talvez seja mais calórico, mas sempre funcionou”.
Não desta vez. A lucidez é uma ferida... De acordo. E o palpite teria algo a ver com tudo isso? Em que momento o simples palpite ficaria promovido à categoria de certeza?
Por sua vez, uma certeza seria capaz de proporcionar uma visão lúcida, ou seria apenas a garantia de novas dúvidas? Dúvidas convergindo para a certeza de nada saber, de ser tudo, um eterno jogo de espelhos, do qual ele era vítima e espectador. Seria isso menosprezar a intuição, eterna fonte de respostas, mesmo na ausência de perguntas?
Guiar-se pela intuição o levaria sempre até o ponto no qual a razão exigiria o seu pedágio, fazendo-o retroceder, mais uma vez. Se ser lúcido significasse ostentar uma ferida, a cicatriz seria a conseqüência de momentos de falta de lucidez?
Cicatriz? A prova da reação do corpo ou da alma.
Nada de pensar em ovo e galinha. Seria absurdo descartar a existência prévia da ferida, do corte. Heureca! Deveria fazer uma plástica nos seus sentimentos e retirar o corpo estranho que o atormentava. Mas que tormento delicioso proporcionava aquele corpo nada estranho!
Era desse Gulag que ele queria evadir-se, ou pelo menos, anunciar a intenção de fazê-lo. O simples anúncio poderia gerar uma reação. Poderia. Por um instante de autocomiseração comparou-se ao paciente desenganado, minado pela paixão, esse tumor irremediavelmente infiltrado no seu ser. Comparar a paixão a um tumor tinha um sério inconveniente: ele próprio era menor que o braseiro que de dentro o consumia.
Sobrava tempo para pensar.
Sobrava pensamento.
Na falta de algo mais inteligente, decidiu escrever. Pensando bem, tudo que iria escrever seria importante, menos o assunto. Seria apenas um apelo gentilmente disfarçado. Quanto a isso, não havia dúvida. Apenas uma questão de habilidade.
Recomeçou a carta com a qual pretendia... Pretendia demonstrar o indemonstrável. Acuado por seus sentimentos, angustiado por uma rejeição que mal conseguia explicar, atormentado por um sentimento de culpa indefinido, conseguira começar várias vezes a tal carta definitiva. Era-lhe impossível ir além da metade da primeira página. Prova disso eram as folhas amarrotadas espalhadas pelo chão, testemunho inglório da insatisfação com a tarefa de transmitir algo. Se ao menos soubesse claramente o que queria dizer. O que é bem concebido, enuncia-se com clareza. Aquele francês tinha razão.
Instintivamente, procurou um cigarro e, ao lembrar que era não-fumante desde a semana anterior, praguejou. Cheio de dúvidas, jamais poderia considerar-se livre, mesmo sem ser discípulo de Sartre. Num momento de sinceridade, teria de admitir o que na presença dos outros rejeitava com empáfia. “Jamais me sujeitarei aos caprichos dela”. Pois sim. O “jamais” acontecera, de maneira fulminante e inapelável.
Conheceram-se numa reunião social. Poderia ter sido na rua ou num restaurante. O raio teria caído da mesma forma. Paixão arrebatadora. Ambos livres, portanto sem nenhuma restrição, vindos de uma sociedade pouco preocupada, por sinal, em restringir qualquer coisa.
O conto de fadas, em versão moderna, transformou-se rapidamente em pesadelo. Caso típico de promoção por merecimento e não por antigüidade.
Ambos tinham em comum um ciúme doentio. As acusações mútuas passaram a se acumular num ritmo alucinado. Um atraso, um olhar, uma anotação na capa da lista telefônica, uma acolhida alegre demais, triste demais, normal demais, tornavam-se argumentos irrefutáveis de uma lógica acusatória sem pé nem cabeça. Tanto mais irrefutáveis quanto mais desprovidos de qualquer resquício de bom senso.
Permeada por conflitos cada vez mais freqüentes, a relação começou a fazer água. No início, as agressões ainda traziam a reboque as recompensas das reconciliações. Uma boa reconciliação era capaz de anular o efeito de dez brigas. Enquanto o travesseiro servia de mesa de negociação, as partes beligerantes “beligeravam” impunes.
Num primeiro momento, chegaram a elaborar um pacto: Nunca deixar que uma briga cruzasse a meia-noite. Era o prazo máximo tolerável para o conflito embarcar rumo à desintegração. O jogo da tortura mútua levou-os a esticar os prazos. Era a brincadeira da felicidade adiada em benefício de um sofrimento de méritos duvidosos. Naquele momento, estavam sem se falar por mais de uma semana.
Restava-lhe o gesto de deixar cair os braços ao longo do corpo em sinal de profunda desolação, admitindo a derrota. Ou de reagir, exasperado pelo status quo.
Começou a escrever, nervosamente.
“Na verdade, queria ter falado com você em vez de, solitariamente juntar palavras, que supostamente estariam respondendo àquilo que deixou de dizer”. Bonita frase, pensou, totalmente oca, mas soa bem.
Parou para pensar e foi pegar outra barra de chocolate. Era a última, logo estava a apenas uma barra da solução ou do desespero. A barra de chocolate tornara-se unidade de medida do tempo.
Ficou entusiasmado com a forma sutil de mencionar as omissões dela. Dessa forma o debate se daria na mais completa confusão. Sabia que aquilo não passava de uma tentativa ingênua de medir forças num embate no qual ganharia a batalha no quesito lógica e, em compensação, perderia, sistematicamente, a guerra.
Uma guerra de trincheiras.
Mesmo calados, conseguiam dizer tanta coisa. O que é pior, mais coisas ainda do que poderiam ter imaginado, antes de iniciar as “hostilidades”. Ela dominava a arte do silêncio nas suas mais diversas modalidades. O silêncio irado, o silêncio eloqüente, o silêncio enganador, armas temíveis, cujo manuseio não tinha segredos para aquela doce criatura, nos momentos cada vez mais freqüentes, nos quais decidia deixar de ser doce. Ele contentava-se em responder com silêncios furibundos.
Eméritos na arte de decifrar mensagens misteriosas, conseguiam criar motivos para incessantes atritos por mais banal que fosse o pretexto. O pretexto era, na verdade, o que menos importava, sendo freqüentemente esquecido. Resultado imediato: o conteúdo oculto, nas intenções não-explicitadas, virava uma confusão tremenda. Lembrar a origem do atrito era de uma inutilidade total.
Guerra sem vencedores. Quase sempre um trágico empate.
Parou mais uma vez como sob o efeito de uma iluminação repentina. O chocolate estava fazendo efeito.
Tudo não passava de mais uma briguinha idiota. Apenas mais um encontro com o pesadelo de uma separação aparentemente iminente, coreografia estúpida à beira do abismo. No fundo, tudo não passava de uma ilusão de óptica, cuja falência acabara de ser finalmente decretada. Ele a estava decretando.
Continuar escrevendo, para quê? De que adiantariam as suas piruetas retóricas que mal seriam lidas? Estava cansado de saber que ela só iria ler, quando muito a última linha, antes de contra-atacar, com veneno de grosso calibre, ou com um silêncio acachapante. Olhou o relógio. Faltavam dez minutos para a meia-noite. Ressuscitando o velho trato, pegou o telefone.
Ocupado.
Assim já era demais. Com quem? Como? Por quê? Já? Ou talvez, ainda?
Antes de mergulhar no oceano de hipóteses, deu um crédito ao serviço telefônico. Nem todo sinal de ocupado merece ser levado a sério. O primeiro passo seria mais uma vez dele, como de costume.
Apertou a tecla de repetição de discagem. Estava certo quanto à rasteira eletrônica. Do outro lado, uma voz sonolenta atendeu.
*Crônica do livro ´´Apetite Famélico``, Ed. Totalidade.
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