Era incômodo para A. P. ficar na pequena livraria. Esta era toda limpinha, é verdade, e sem o mofo comum àquelas antigas bibliotecas causado pelos grandes clássicos, mas, mesmo assim, a organizaçãozinha de livrinhos emprateleirados, com várias seções que formavam um quadrado em torno de si, provocava-lhe náuseas. Os leitores frequentadores do espaço costumavam ser os bem arrumados e limpinhos alunos da faculdade da Cidade Alta. Quando dentro da livraria, suas feições tornavam-se circunspectas. Adeus ao riso; conhecimento é sinônimo de seriedade.
Ela realmente não aguentava o cheiro de novo do acervo, que, em cada divisão, reunia livros com ensinamentos e com explicações acerca de diferentes áreas específicas do saber. Lá, havia de tudo para que as pessoas pudessem viver, plenamente, na novíssima configuração planetária em que a humanidade se inserira. No entanto, A. P. não queria explicações ou ensinamentos, mas desejava que seus pensamentos milenares fossem contados e transmitidos e mentidos conforme cada boca que os pronunciasse. Não era sua vontade ser educada ou treinada, pois isso seria roubar-lhe aquilo que ela sempre foi, um ser não domesticável e totalmente volátil, embora perene. Certamente, ela gostaria mesmo é de que os livros todos se misturassem e se amontoassem uns por cima dos outros, sem respeito algum por divisórias.
Cansada do odor produzido pelos livros e pelas pessoas ou enfastiada de olhar quadrados e retângulos, A. P. deixou o cubículo e descobriu que ele ficava, como outras lojas, dentro do que, há muitos anos atrás, fora um templo magnífico da sabedoria, com grandes pilastras, que se mantiveram apesar do tempo. Essa imagem era uma boa lembrança, mas triste, porque a lembrança já não era. Tudo aquilo, com exceção feita às pilastras e à escadaria que dava acesso ao que não se pode mais dizer, porque já não o é e se perdeu no esquecimento, fora transformado em pequeninos e quadrados compartimentos, separados por espessas paredes.
Para abandonar de vez o lugar, era preciso descer, correndo, a escadaria. Por esta, subiam pessoas que lhe eram indiferentes ou conhecidos que não a conheciam mais. Desviando o olhar dos que se esqueceram, A. P. avistou, no asfalto em que passavam vários veículos velozes e opacos, alguns poucos, de cor intensa, que transitavam vagarosamente em sentido contrário aos demais.
Restou-lhe, por fim, de um salto, voar como coruja à caça por sobre as cabeças que não percebem ou que nunca perceberam seu vulto e alcançar o carro mais avesso e iluminadamente amarelo possível.
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