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A morte impera
A morte das adolescentes
Paulo Valença

Resumo:
Durante as horas "maduras" da noite e da madrugada ocorrem os crimes de estupros e assassinatos às bonitas colegiais adolescentes. Até quando a morte continuará assim solta, imperando?

1
O garçom Emanuel sabe. Essas adolescentes violentadas e encontradas em locais ermos são vítimas do tarado do automóvel cinza-prateado.
Sim, ele está vivido, com a cabeça grisalha, compreende tudo... Daí quando o carro estaciona na calçada oposta ao bar-restaurante, do qual ele, Emanuel, é funcionário, com descrição observa o homem moreno, alto, bonito, bem-vestido que saltando, encaminha-se à mesa recuada a direita de quem adentra no ambiente, para tomar as doses de uísque, acompanhadas de lagosta frita e depois se retirar e... Na esquina adiante, geralmente dar a carona para a mocinha que aguarda o ônibus e depois... Aparecer à nova vítima no dia seguinte, com a descrição detalhada as da adolescente que esperava a condução. A blusa, as calças compridas, a bolsa de livros presa às costas... Esses detalhes que ele, Emanuel, lê com interesse na reportagem policial do matutino.
Quantas mocinhas já foram violentadas e estranguladas até agora? Faz o cálculo rápido e conclui: quatro!   Por que há gente no mundo assim, que mata, no sadismo doentio? Por que o ser humano é tão imperfeito, animal? Reflete mais uma vez, sem conseguir dormir, os olhos nos caibros e
telhas enegrecidas pelas trevas da madrugada. Mas, um dia, como tudo nesse mundo, os crimes terão um fim e... O tarado será preso, pagará pela maldade que pratica. Um dia...    
- Tás sem sono Emanuel?
A voz da mulher, ao lado, solidária ao que se passa, a boa companheira.
- É perdi o sono.
- Algum problema no emprego?
Ele cerra os olhos, cansado, e responde:
- Nada não.
- Vai dormir criatura. Descansa o corpo, a cabeça. Você precisa repousar.
- sei, sei.
Pelo basculante à frente, no quarto, aos poucos, a luz do novo dia surge tímida.

2
D. Vaneide avisa à filha, a Terezinha, vendo-a sair da sala pequena, a bolsa escolar presa às costas, a blusa laranja, as calças azuis colantes que lhe modelam o corpo branco, esguio, alto, de autêntica manequim:
- Filha cuidado com a noite. Tem muitos perigos soltos. Quando acabar as aulas, venha logo para casa!
A mocinha sorri (tão feminina, com as covinhas no rosto de traços corretos, bonito) e já abrindo a porta:
- Mamãe tou bem crescidinha. Sei me cuidar. Esfrie a cuca. Tchau!
- Vai com Deus.
Terezinha cruza o jardim pequeno, abre o portão e passa. Fecha-o por fora e desce a rua estreita. Apressada.
A mãe fica no terraço, seguindo-a com os olhos vencer a rua, dobrar a esquina e desaparecer. Com tanta violência na noite e, com esses estupros de meninas encontradas mortas...
- Não, o Pai a protegerá! Pensamento positivo D. Vaneide.
Retrocede a salinha e dessa a cozinha, para lavar a louça do jantar.
De uma residência circunvizinha, uma criança chora. De outra, um cão late. Pela rua vozes de homens falando alto. Por que em bairro pobre é tudo assim aberto, acanalhado?
Sorri e abre a torneira.

3
Emanuel observa o homem moreno, “coroa”, bonito, bem-vestido que mais uma vez chega, após estacionar o automóvel cinza-prateado na calçada oposta.
Sentado, ele espera. Paciente. Educado.
Esse cara deve ser gente importante. A
maneira de se vestir, de falar... Deve ser um
industrial, um político ou...
- Emanuel pega a bandeja.
Desperta das reflexões meio assustado:
- Certo Gordinho.
Segura a bandeja, e encaminha-se à mesa do homem que o espera, com o solicitado.
- O pedido senhor.
- Tudo bem. Obrigado.
O garçom põe a bandeja sobre a mesa e sorrindo:
- Qualquer coisa, basta me acenar.
- Tudo bem. Obrigado.
Emanuel retrocede ao balcão para receber nova bandeja, e atender ao freguês magro, envelhecido que aguarda o que pediu. A cerveja. O queijo assado.
Calmo, o homem bem vestido toma a bebida. Os gestos lentos, como se os policiasse.
O garçom com disfarce, estuda-o. Será que esse sujeito é mesmo o tarado que vem estuprando e matando as adolescentes após lhes oferecer a carona, quando elas esperam o ônibus? Ou tudo lhe será impressão, engano, desconfiança? Mas, e as coincidências, as descrições de as vítimas serem semelhantes as mocinhas que aguardavam a condução? A blusa, as calças, a bolsa às costas, as sandálias... Ah, se não
pensasse tanto, se limitasse apenas a viver, egoisticamente cuidar da própria vida!
- Emanuel acorda cara!
A bandeja. Recebe-a e apressado, se dirige à mesa do velhote.
A mão que se ergue. O aceno. E ele sorri, aquiescendo ao pedido da nova dose de uísque e, para o colega atrás do balcão:
- Uma dose de uísque para o homem ali da mesa.
- Certo Emanuel.
Então a jovem branca, esguia, de blusa laranja, calças azuis colante, bolsa escolar presa às costas, entra com outra mocinha e desperta a atenção dos que se fazem presente ao grande salão, principalmente dos homens:
- Que gata Emanuel!
Disfarçando, o homem bem-vestido, lhes segue os gestos, os detalhes femininos, que são um convite, delicioso convite ao pecado.

4
O jornal com a reportagem na página policial. O corpo semi-despido. O pescoço com a marca arroxeada da violência do estrangulamento. A blusa laranja. As calças azuis, colantes. A bolsa escolar ao lado. O estupro...
Perplexo, trêmulo o garçom solta o jornal sobre a mesa:
- Porra! Outra vítima! Até quando tudo isso continuará?
Pensativo, não vê a mulher adentrar na sala:
- Ôxente! Não vai jantar não, criatura? Você anda muito misterioso pra o meu gosto...
Então, ele desperta ao presente:
- Misterioso?
- Claro, meu querido marido não mais dorme direito, não se alimenta... Alguma “bronca” lá no teu trabalho?
O silêncio. E a mulher balançando a cabeça em gesto negativo, crítico:
- Sei não...
Da residência circunvizinha, a criança chora mais uma vez. De outra casa, o cão late, pedindo a liberdade. Pela rua, passam vozes em conversa.
Devagar, Emanuel toma a sopa. Será mesmo aquele sujeito do automóvel cinza-prateado o verdadeiro tarado, o assassino das adolescentes, após lhes usufruir os corpos esguios, de manequins? As coincidências dos detalhes. A carona que o homem sempre oferece as mocinhas... Ou tudo lhe será apenas uma dúvida, suspeita? Mas...
Empurra o prato e se erguendo da mesa:
- Maria vou dar uns “giros” por aí.
- Vai Emanuel. Vai.
Pensativo ele logo ganha a rua. Caminha. Na
tentativa de “arejar” o espírito, esquecer do que é dolorosamente suspeito.

5
O Gordinho atrás do balcão, segue com o olhar analítico o movimento do salão do bar-restaurante, que está crescendo à proporção que a noite amadurece. É sempre assim às sextas-feiras à noite e, vendo o novo garçom que substitui o Emanuel, se lembra do ex-colega.
O Emanuel com aquelas suas desconfianças, mania de estudar as pessoas, lhe revelou, pedindo conveniência, segredo:
- Gordinho o tarado que violenta as mocinhas e as estrangula é o homem moreno, o cara bem-vestido, do carro cinza-prateado.
Ante a sua perplexidade, que o deixou sem voz, Emanuel prosseguiu falando:
- Já estudei tudo Gordinho. As vítimas coincidem com as meninas que recebem carona do sujeito e que depois aparecem violentadas, mortas, em locais ermos, afastados daqui do centro da cidade!
Detalhou-se com lógica e ele, Gordinho, sem voz, continuou escutando-o.
- Pensei Gordinho e... Vou denunciar pessoalmente tudo à polícia.
Aí, ele não mais se conteve e realista:
- Cara, tu é doido? Se quer denunciar, fala pelo telefone público, sem dar o nome. Deixa pra a polícia, à autoridade resolver os crimes. Cai fora desse “angu”. Você vai acabar mal. Fica na tua meu! Tou avisando, como amigo!
Emanuel nada respondeu e tornou às reflexões, enquanto ele, Gordinho, prático, se reentregou ao trabalho:
- Pega a bandeja. Vamos trabalhar! Esquece.
Tudo isso passou e, dias depois, o colega ao chegar a casa, tarde da noite, foi executado com seis disparos ao abrtir a porta para saber quem o chamava. “Queima de arquivo”. Alguém não desejava que ele continuasse com a investigação, na exibição dos detalhes que coincidiam com os assassinatos das jovens, já em número de cinco, todas alunas do Colégio “Passos da luz”, nas proximidades...
- Gordinho três “louras suadas” pra mesa ali do canto.
- Certo, moreno.
Volta-se e abrindo o freezer, retira as garrafas e, olhando para a mesa do homem moreno, bem-vestido que acaba de ocupar a mesa recuada, a preferida:
- Toma, leva também a dose de uísque pra o freguês ali e diz pra ele que vou providenciar a lagosta assada.
- Tudo bem.
O rapaz se afasta. Trabalhando. E Gordinho então, em voz baixinha, liberta o pensamento:
- Tudo continua. Emanuel foi que perdeu a via. Mas... Numa hora, num dia, tudo mudará.
Profissional, então espera a próxima solicitação de bandeja.
À mesa, os olhos do homem moreno estudam o movimento do ambiente. E brilham maliciosos com a entrada da adolescente morena, alta, esguia, de bolsa de livros presa às costas e sorriso nos lábios vermelhos, lábios da cor do pecado.

6
O homem magro, envelhecido deixa o bar-restaurante.
Com o olhar analítico Gordinho o segue. Esse cara deu para aparecer. Tipo bem-vestido, calado. O ar ausente... Toma as cervejas cabisbaixo, entregue a si mesmo, ao seu mundo de introvertido, evitando aproximação, mas, assim é a vida, cada um com o seu mundo, sua história. Mistérios. Ninguém, na realidade, tem nada que se meter com os particulares do próximo!
- É o sensato!
O garçom então se avizinha:
- Duas doses de conhaque e um prato de galinha-a-cabidela.
- Certo.
O rapaz espera. Gordinho entra na sala conjugada, indo providenciar a comida.
O salão ferve com as vozes, o tilintar de talheres, arrastar de cadeiras, o som natural da noite de sexta-feira que amadurece.
Na calçada, o homem envelhecido movendo-se devagar cruza a avenida, em sentido ao carro estacionado na calçada oposta.
Chega. Abre a porta. Adentra. Parte. Cauteloso. Perscrutando as laterais, com residências de moradores sem aparecer. Resguardados. Na precaução de uma cena imprevista. Portas e janelas fechadas. As luzes das varandas acesas. Os jardins pequenos vazios. O carro avança.
Adiante está o abrigo para os que esperam os coletivos, com uma mulher baixa, gorda e uma adolescente de bolsa presa às costas. Uma colegial. Magra. Alta. Esguia. Feminina.
O homem então sorri, prevendo o que “curtirá”...
- Aceita uma carona menina?
A mocinha se volta, relutante, enquanto a mulher ao lado, faz que nada percebe, desviando o rosto, no fingido interesse de avistar o coletivo ao dobrar a esquina próxima.
- Há essa hora, o ônibus demora demais! Vou pra cidade, quer a carona? Não tenha medo, tenho idade de ser seu avô...
O sorriso no rosto comprido, pálido, ferido pelo tempo. A colegial então sorrindo, aquiesce:
- Tudo bem. Aceito.
Ele abre a porta e ela entra apressada. E o
carro arranca, aproveitando o resumido transitar – devido à hora – dos veículos.
Sozinha, a mulher tira conclusões. Essas gurias entram num carro de um cara desconhecido... É por isso, que há tanta miséria no mundo!
Os olhos buscam o carro que diminui à distância.
No dia seguinte, novo corpo é encontrado na “Mata do Passarinho”. Semi-despido com marcas do abuso sexual, o estupro, e o pescoço arroxeado, pelo estrangulamento de um provável cordão.
Sim, tudo numa repetição de que a morte está solta. Impera.


Quando li me lembrei de João Antonio. Paulo Valença é um grande cronista do cotidiano dos marginalizados. É um escritor de verdade.
Comentário enviado por:
William Porto em: 19/8/2010.





Biografia:
Paulo Valença é autor paraibano premiado nacionalmente com seus livros de contos e romances; Pertence a várias Instituições Literárias; Consta de diversos sites; Vive em Recife/PE.
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