Paulo Valença
A INSINUAÇÃO DO JUSTO
contos
Recife – Pernambuco - 2005
PAULO VALENÇA na opinião de
•Ivone Selistre:
Seus textos são verdadeiras jóias da literatura brasileira. Sempre que os encontros em Antologias, ou quando o Sr. tem a bondade de enviar alguns, me deleito ao lê-los.
•Evandro Moreira:
... Meu abraço de parabéns por seu conto e agradecimento pelo livro.
•Solimar Soares da Silva:
Valho-me do ensejo para cumprimentá-lo (a) e, ao mesmo tempo, externar nosso regozijo pela merecida escolha de seu nome para figurar, para muita honra para nós, entre os membros desta instituição literária.
•Whisner Fraga:
Recebi a coletânea da Taba Cultural, com conto de sua autoria. Gostei muito de seu estilo, a economia de verbos que lembra Dalton Trevisan e tudo o mais.
•Iaponan Soares:
Gostei muito do seu conto (“Maçãs que Amargam”), pela agilidade do texto e pelos cortes cinematográficos. Espero conhecer seus livros.
•João Weber Griebeler:
Deste modo, alguns dos autores que destacaria das minhas leituras são Ignácio de Loyola Brandão, Machado de Assis, José de Alencar, Antônio Carlos Villaça, Pablo Neruda, Carlos Drummond de Andrade, Heinz Konzalik, Maria do Carmo Tafuri Paniago, Nelson Hoffmann, Marta Gonçalves, Deonísio da Silva, Paulo Valença, Marisa Mallmann, para citar os que me vêm à memória neste instante.
•Rodrigo Naslund Aguiar:
A Comissão organizadora da Antologia Essência Literária/Cultura em Ação-Prosa e Verso ficará honrada com sua distinguida participação, uma vez que conhece a excelente qualidade de seus trabalhos.
•Helena Cristina Tavares Garrido:
Quanto minha modesta opinião sobre o seu trabalho na Revista do Escritor Brasileiro, gostei muito, até o título do trabalho é poético... “O silêncio das palavras...”.
•Aníbal Albuquerque:
...Está presente com o excelente conto “O Sol dos Amantes”. O autor, membro de diversas entidades culturais, com “Passado que Volta”, do volume 3 de “Modernos contos brasileiros”, que será publicado pela Editora ALBA, neste semestre.
•Luiz Fernandes da Silva:
Ao extraordinário Escritor Paulo Valença (Um nome que honra as Letras Brasileiras) eis aqui uma amostra para a sua apreciação...
•Antologia Escolar “Sinfonia Falada Opus 2, contos escolhidos”, Via Sette Editorial, Itapetininga, 2003:
Artífice do trivial, Paulo Valença transforma os pequenos detalhes do cotidiano em verdadeiras pérolas. Já se dizia que o poeta é aquele que consegue ver o jardim pelas festas do muro de pesadas pedras. Há de lhe correr mais do que sangue nas veias. Há de lhe correr mais do que frases de efeito em suas tramas corriqueiras.
Porque o escritor, se não tiver o olhar do poeta, jamais conseguirá emprestar ao banal – e, justamente, por ser banal, é imperceptível aos demais – a beleza, a poeticidade e a estranheza desses pequenos detalhes inerentes à vida de todos nós. Só a sensibilidade aguçada e extremamente perspicaz de um escritor-poeta do calibre de Paulo Valença pode desvendar os segredos da simplicidade de nossas ações e sonhos.
Porque ele vai, sem medo, até o muro e, pela fresta consegue abarcar com os olhos o jardim. O imenso, perfumado, colorido, intenso e, por vezes, trágico jardim que quase ninguém mais vê.
ÍNDICE
A noite egoísta/5
O último silêncio/6
A lei dos maus/7
Faces da aflição/11
O sorriso de outrora/15
A hora esperada/18
O disfarce da vergonha/22
A cena der sempre/25
Onde moram as lembranças/28
Enquanto a noite amadurece/32
Servo das lembranças/35
A insinuação do justo/38
Mundo íntimo/41
Parceiros das trevas/42
A NOITE EGOÍSTA
Editado no Jornal Cultural MENSAGEIRO, Ano VIII – Nº. 120 – 2ª. Ediç. AGO / 03, Porto Alegre / RS.
* * *
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Os casais entrelaçam-se no jogo de carícias, na praia de vento frio, contudo, agradável. Os coqueiros dançam a folhagem ao afago da brisa. No calçadão, que se interpõe entre a praia e a avenida, com resumidos veículos e pedestres, mocinhas passeiam em dupla, ou sozinhas, em busca de “programas”. São as “garotas de esquemas”. Automóveis surgem e estacionam rente ao meio-fio, com rapazes e “coroas” que vêm a fim de aventuras amorosas.
A dupla passa, e a lourinha reconhecendo o carro prateado e o seu ocupante – encostado ao motor – volta-se à amiga:
- Nega, vê: a “bicha” rica já chegou.
A morena fitando-o e, sorrindo:
- É isso aí, cada um, na “sua”.
Então, prática, segurando o braço da colega:
- Apressa galega, que os caras estão esperando a gente, no posto seis.
- Falou, Nega.
Apressando-se, seguem em frente, enquanto com o olhar doentio, ele busca o próximo parceiro.
Indiferente ao que abraça, a noite continua em sua eterna caminhada dentro do tempo.
Egoísta, prossegue.
O ÚLTIMO SILÊNCIO
Editado no Jornal Cultural MENSAGEIRO, ANO VIII – Nº. 119 – 1ª. EDIÇÃO DE AGOSTO DE 2003 / Porto Alegre / RS.
À cama, o corpo reduzido, de ossos furando a pele, o rosto enrugado, o nariz crescido, os olhos sem brilhos, a cabeleira cheia, alva e, a voz também irreconhecível, sussurrada:
- É você, Fábio?
Como sempre, em silêncio, ele avizinha-se do leito:
Disforme pela doença, o rosto cadavérico vira-se, procurando-o. O braço magro ergue-se e a mão trêmula busca, busca.
Ele entende e, como se temesse magoar essa mão aperta-a devagar e, sendo humano, sem mais se conter... Permite que as lágrimas lavem-lhe as faces frias.
Próxima, a velha – testemunha silenciosa da cena – abandona apressada o quarto e no corredor, joga-se nos braços do outro filho, que lhe afaga os cabelos finos, branquinhos.
- Temos de ser forte, mamãe... Deus quis assim.
No quarto, a mão sem calor liberta a outra mão e, mais do que nunca, o silêncio interpõe-se entre pai e filho.
O último silêncio.
A LEI DOS MAUS
1
Ivanildo, para o pai, seu Paulo, que é baixo, gordo, negro, na cadeira de balanço:
- Pai, tenha cuidado com esse comércio.
Sem fitá-lo, o homem desvia os olhos à rua ao lado, sem movimento, e não responde.
Erguendo-se da cadeira, o rapaz se despede:
- Vou trabalhar. Até, pai.
- Até, Ivanildo. Vai com Deus.
Afastando-se, o rapaz reflete. Depois de velho, o pai se envolver com a venda da “erva”... Muito perigoso. Deus queira que nada de ruim aconteça com essa “viração” do pai, que ela continue lhe dando o dinheiro extra... Que ele, Ivanildo, sabe estar crescendo. Vem-lhe então a lembrança do pai, que sorrindo, se tornou mais gordo e negro:
- Sabendo fazer, a gente se vira bem.
Aí, ele:
- Pai, isso é faca de dois gumes: tanto dá, como tira.
- Menino, sei me defender. Pense positivo!
Silenciaram. E, com a chegada de um freguês, seu pai indo atendê-lo, deixou-o pensativo. Com os exemplos no bairro, de “batidas policiais”, tiros entre compradores e consumidores de drogas... Como o pai não percebe o perigo ao qual se expõe? Por que essa repentina decisão de mudar a vida pequena, contudo, honesta de barraqueiro? Ah, mas continuará falando, criticando-o, pois, teme que, inesperadamente ocorra algo ruim ao pai, já de cabeça branca e que, devido a um derrame, anda puxando da perna esquerda, o braço meio morto, e a mão sem articular os dedos recurvos.
A preocupação o persegue. Dobra a esquina. Adiante, encontra-se o abrigo de passageiros à espera de conduções.
Um ônibus estaciona. Corre para não o perder.
No céu azul, o sol cintila, envolvendo
tudo com sua luminosidade de verão. O coletivo ganha distancia na avenida estreita, ladeirada. Ivanildo se senta. Fecha os olhos, desejando cochilar. Mas, não consegue. E, de olhos abertos, fixa-os nos passageiros mal vestidos, tristonhos, preocupados, trabalhadores, sofredores, entretanto, honestos.
Através da janelinha, enxerga o morro de casas feitas sem planejamento, de escadarias estreitas, longas. De gente subindo-as e descendo-as, de meninos empinando pipas. Movimentos, vidas. Tudo segue uma marcha, uma determinação.
Que Deus proteja o pai, livrando-o deste “comércio” perigoso! A condução passando pela rua transversal, cruza a praça e ganha nova avenida. Ivanildo com a mão aberta passa-a no rosto, como se buscasse afugentar as reflexões, se limitar apenas ao presente.
2
O homem amulatado, baixote, magro:
- O crioulo anda fazendo concorrência. Se a gente não cuidar, logo, vai aparecer outro, e mais outro... Temos de proibir, enquanto é tempo, que esse negócio se alastre.
Então, o negro alto, corpulento de voz grossa:
- Tá pensado certo, chefe. Vamos resolver isso.
O terceiro sujeito, de olhos nas residências embaixo, pois estão sentados à margem da ladeira, também opina:
- Apoio, vamos exemplar o negrão.
- É isso aí, gente.
Diz o chefe, em voz baixa e, erguendo-se:
- Vocês vão mais o Cidinho e o “Boca Mole”. Quando o safado fechar a barraca, agarrem ele e depois, sabem o que fazer...
Afastam-se, em silêncio.
As residências mal iluminadas. Um ou outro transeunte cruzando a avenida. Um carro cortando-a. Distante, o grito de uma criança. As estrelas piscando no firmamento negro... Tudo se converte em poesia, beleza inocente da maldade humana.
Caminhando, eles se diluem dentro da noite.
3
Enquanto se balança na cadeira predileta, seu Paulo reflete. Fora da barraca, debruçado sobre o parapeito da janelinha, que se comunica com o interior do estabelecimento, Luís magro toma a cerveja em silêncio. Embriagado, fica nesse mutismo, até quando se retira. Mais uma vez, o barraqueiro observa o movimento da avenida. Sem gente e veículos. O filho tem razão de preocupar com ele, que está se “virando” com a “erva”, que recebe do deficiente físico Jeová, para passá-la aos clientes já certos e que crescem... Sim, Ivanildo está certo: esse negócio é muito perigoso... Contudo, quem estava com a barraca praticamente sem vender nada, à beira da falência e de repente, surge-lhe a chance de se erguer, mesmo correndo os riscos naturais com o comércio... Poderia se fazer de indiferente e não aceitar a oferta?
- Moreno: eu trago e você vai passando aos poucos... Quando menos esperar, tá com a clientela feita e, o que é mais importante, com a “grana”, que é compensadora.
Quanta vez ouvira essa conversa, quando Jeová ali bebia, com os cotovelos apoiados no balcãozinho? Então, um dia, se decidiu:
- Tá certo, Jeová: traga um pouco, pra eu ver se “passo”.
Vitorioso Jeová soltou a risada e na semana seguinte, chegou com os pacotezinhos.
Com o início da venda, o dinheiro, que se sumira, foi retornando. E sorriu, satisfeito. Entretanto, de repente, surgia-lhe o temor... Mas, se dizendo não ser ele o único, ali no morro, a proceder como fazia, acomodava-se (acomodava-se?). Contudo, hoje, com a nova censura do filho – não demonstrou – o medo retornou. Sim, o mais sensato é ir aos poucos se libertando desse “comércio”...
- Negão, outra cerveja.
Pede Luís. Com dificuldade Seu Paulo levanta-se e puxando a perna, dirige-se ao freezer, do qual retira a bebida.
Aí, o automóvel com vidros fumê estaciona. Luís foge os olhos, no disfarce de não o perceber. O barraqueiro também procura demonstrar indiferença. Contudo, sente o coração aflito, no receio.
Em passos trôpegos, Luís afasta-se. Devagar, o carro avizinha-se do meio-fio e o barraqueiro mal o nota, então as portas se escancaram e rápidos os homens encapuzados saltam e uma voz comanda-os:
- Segura o crioulo!
Então os braços possantes imobilizam os braços curtos de seu Paulo, que, arrastado, é posto no veículo e, novamente, a mesma voz grita:
- Toca pra frente.
O carro dispara. Adiante, com um inesperado pressentimento, Luís se volta e, apressado, retrocede, para se certificar.
Chegando à barraca, constata que o que temera, realizara-se: a barraca encontra-se vazia... Compreende. E, diz o que pensa, em voz sussurrada:
- Levaram o Negão...
Na casa defronte, uma janela é fechada com cautela. Escondendo a testemunha, que se refugia no obscurismo do medo.
Assim se cumpriu o que Ivanildo temia: a execução da lei do morro, que não admite a concorrência no mundo dos narcóticos.
4
Ivanildo segue em direção da parada dos coletivos, onde aguardará aquele que o conduzirá ao trabalho.
Desde a morte do seu pai, que ele se sente nervoso, com a sensação de se encontrar seguido. Teme pela própria vida. Afinal, é filho de quem foi raptado e executado. Na mente, a notícia persistente: “Barraqueiro é arrastado e encontrado morto, em matagal”. Contudo, ao mesmo tempo, tenta se tranqüilizar, dizendo-se que o que sente seja ainda em conseqüência da tragédia ocorrida.
Pára sob o abrigo. Disfarçando, estuda os rostos próximos, tentando descobrir...
A condução estaciona. As pessoas adentram. Ivanildo também.
Na calçada oposta, dois homens se entreolham e, correndo, tomam o ônibus, que retorna a se movimentar.
Pela janelinha passam os transeuntes, o morro com residências desordenadas, escadarias e moradores no ir e vir incessante de mais um dia, enquanto o sol abraça tudo.
Aí, acontece: achegam-se e de repente, Ivanildo se ver entre os dois e... Sente a violenta pontada nas costas e gritando, cai sobre o velho na cadeira defronte.
Diante da cena, os passageiros agitam-se, nervosos. O cobrador alerta. O motorista pára a condução, enquanto rápidos os sujeitos descem do coletivo, correm e adiante, desaparecem na ruela transversal.
O gosto amargo na boca subitamente seca. Os olhos pesando. A dormência vencendo-o... Uma voz distante:
- O cara tá se “apagando”.
...Se “apagando”.
Apaga-se.
Recife, 25.10.2001.
FACES DA AFLIÇÃO
1
Dr. Eduardo dirige seu automóvel, retornando a casa. Enquanto o carro vence a avenida na orla da praia, ele reflete. Assim deserta, a praia adquire uma poesia plácida, aconchegante. Daqui a pouco, surgirão os veículos com os rapazes em busca de aventuras amorosas. Aqui e ali, aguardando-os, se encontrarão as mocinhas, em grupinhos ou sozinhas. A prostituição... Antigamente, era no bairro “Rio Branco”, que hoje, com seus velhos edifícios reformados, convertidos em restaurantes, bares ou casas de espetáculos, servem de atração turística.
- Está tudo diferente.
O mundo, com suas mutações. É, nada pára, há uma evolução permanente em tudo, mesmo que seja para o pior. Ah quisera ele, Eduardo, se adaptar, aceitar tudo isso com naturalidade. Envelhece e se mantém conservador, preso a uma existência diferente do que seja a vida real. É do tipo chamado pelos jovens de um “cara quadrado, fora de época”.
Sorri com essa simplória definição: “quadrado”. Mas, se não seguirmos um método de conduta, em que nos tornaremos? Tem de haver uma ordem em tudo. Macio, o carro afasta-se, vencendo os últimos metros de praia. O homem continua pensando. Por que, ultimamente, anda tão pensativo? Sintoma natural da velhice, que chega? Talvez. Contudo, ainda se considera novo: cinqüenta e cinco anos. Conservado. Os anos foram complacentes consigo. Um “coroa enxuto”, na linguagem das adolescentes amigas de seus filhos.
Há esta hora, Cleide está sentada defronte da televisão, esperando-o. Os filhos – Fred e Vera – provavelmente já jantaram e encontram-se na faculdade. A rotina de sempre. E, daqui a pouco, ele chegará. Estacionando o auto na garagem, fechará o portão de muro aos lados e, adentrando no terraço espaçoso, cruzando-o, se encontrará na sala também larga, bem mobiliada, arejada.
- Vai tomar o banho, Eduardo?
Cleide, como sempre, indagará. Então, ele subindo a escada em caracol, que o conduz ao 1º andar, onde está o quarto do casal, dirá:
- Vou. Peça a Maria pra ir esquentando a comida.
Sem palavra, a mulher magra, desgraciosa, envelhecida, o atenderá. Apressando-se, ele vencerá os degraus.
Até quando assim? Mas, temos de nos resignarmos ao que temos, pois, às vezes, uma repentina mudança em nossa vida nos chega para fazer-nos sofrer mais, e sentirmos saudades do antes...
Seus filhos: o rapaz, pouco fala, introvertido, em seu mundo. Egoísta. E, Deus queira que o Fred continue estudioso, pois, com esse temperamento, como enfrentará a vida com suas armadilhas? Estudando, o filho se submeterá a um concurso e classificado, se “arrumará” financeiramente... A Vera é bonita, extrovertida gosta de curtir praias, barzinhos, “embalos”. Preocupa-o mais. Teme que ela envolva-se com um cafajeste, que sempre freqüentam esses locais... Contudo, depois de crescidos, os filhos seguem seus caminhos, fogem ao comando dos pais. Tornam-se egoístas, incontroláveis. E os pais sofrem com suas loucuras, pagam “pecados”, como bem dizia sua mãe:
- Hoje, és filho; amanhã, serás pai.
Seja o que Deus quiser. O amanhã é uma incógnita. O futuro lhe responderá as indagações aflitivas. O sensato é apenas – apenas! – ficar no presente, no agora.
Ali está o muro, de dois metros de altura, com o portão ao centro. Estaciona. Salta indo abri-lo. E pensa em substituir o portão por outro automático.
- É mais prático e seguro.
Logo, a mulher, com a atenção nas imagens da novela banal, percebe-o e, sem se voltar:
- Vai tomar o banho, Eduardo?
A mesma cena. Sorri. Afasta-se. Galgando os degraus, responde:
- Vou. Peça a Maria para ir esquentando o jantar.
Aquiescendo, ela ergue-se, em silêncio.
2
Enquanto dirige, Fred vai pensativo.
A colega de faculdade, a Ana Maria, está namorando o Serginho. Soube ontem:
- Cara, todo mundo já sabe que ela tá de “paquera” com o Serginho.
Perplexo, ele mal conseguiu indagar:
- E?
Então, Tadeu sorriu irônico e, ferino:
- Mas é claro! Agora mesmo, devem estar numa boa, num motel!
Ainda sorrindo, deixou-o. Ele continuou preso à revelação. A Ana Maria: morena, esguia, alegre, tão feminina! Sua paixão. Quanta vez a fitou, disfarçando, escondendo-se em sua timidez? Quanta vez sonhou com ela, ambos conversando? Quanto fora ingênuo! Por que não se adapta ao mundo prático? Com o tempo, se modificará, tornar-se-á igual aos demais homens?
O carro cruza a avenida com a praia ladeando-a. No calçadão, casais conversam. Dentro de carros, casais se acariciam. Rádios transmitem músicas estrangeiras. O mar, em ondas nervosas, vem morrer sobre a praia deserta, mal iluminada. Coqueiros agitam a folhagem ao vento frio, contudo, agradável. No negro céu, não há estrelas. De repente, a indagação: se parasse o carro e procurasse em companhia de uma dessas moças, esquecer Ana Maria? Não mais a imaginar com o Serginho, na cama?
- Por que não?
Estaciona. Salta e fora do carro, encostado ao motor, espera.
Percebendo-o, a jovem aproxima-se. Vendo-a, Fred busca nesta, a imagem da outra.
Ela sorri encantadora, e pensa no dinheiro que receberá do novo parceiro do amor. Sim, tem que se “virar”: em casa, tem a mãe paralítica e o pai desempregado, beberão, e os irmãos pequenos...
- Boa noite. Esperando alguém?
Buscando naturalidade, ele responde:
- Não, ninguém... Só você.
Ainda sorrindo, com feminilidade, provocante, ela se achega.
Sim, ganhou a noite.
3
-Você deveria ter se precavido mais!
Perplexa, trêmula, ela fita-o. Alto, moreno, a cabeleira cheia, ondulada. Com aparência, bonitão. De cuecas, ele se volta à janela, de onde fica a olhar a rua, como se buscasse fugir à preocupação que lhes atinge.
Ela, então, em início de choro:
- Oscar, eu me preveni. Não sei como foi... Aconteceu. Agora, temos de resolver.
Nervoso, voltando-se, ele fala, gritando:
- Resolver? Você engravidou porque quis. Meios para evitar não faltam. Quer que me “amarre” em você? Você é maior de idade. Resolva!
Diante dessa reação grosseira, a moça nada mais diz e, baixando os olhos às mãos bem cuidadas, entrega-se à aflição: permite que as lágrimas banhem-lhe as faces. Apressado, Oscar veste-se e, logo, com força batendo a porta, desaparece.
Ela fica ouvindo os passos - estão mais fortes? - distanciando-se.
Bem que lhe haviam prevenido: “Oscar só tem aparência, é um aproveitador, um cafajeste. Vera, se você continuar com essa amizade, depois sofrerá as conseqüências”.
- E agora?
Chora. Contudo, aos poucos, se contém.
Afinal, não foi e nem será a única mulher que engravidou de um homem que não assumiu a paternidade. Haverá uma saída para seu problema: é rica e, com o dinheiro, tudo se solucionará...
Devagarzinho, deixa o leito. Com o dorso da mão trêmula enxugando as faces, veste-se. Depois, retira-se do quarto, palco de encontros amorosos, e que, agora, converte-se em testemunha silenciosa de sua grande dor.
Um dia, esquecerá essa cena humilhante? Jamais! Disso tem certeza. Com força suspira, adquirindo coragem, e enfrenta o corredor, que a restituirá à vida de lá fora. Então, enxerga o carro longe, em fuga...
Ergue a cabeça, como em desafio ao futuro e, aligeira-se em vencer o corredor.
Recife, 05.11.2001.
O SORRISO DE OUTRORA
Confesso que tenho aprendido muito com seus contos: eles carregam muitas emoções e, assim, nos mostram que não basta só à narrativa. E tenta também lhes dar, afora, este “sabor”.
Milton Ximenes Lima.
* * *
Classificado no 12º. Concurso Literário ASAS – 2002 – de São Luiz Gonzaga / RS.
1
Ali está a casa, de paredes manchadas, de tijolos aparecendo, descascada, com meio-muro encimado pelo gradil. O portão de ferro ao centro. Os canteiros invadidos pelo capim e ervas. O terraço. A porta larga. As janelas aos lados. O primeiro andar, com o terraço e o balcão feito com arte, de madeira. O telhado de telhas enegrecidas. Em partes com os caibros surgindo, desbotados pelo tempo.
- Que decadência!
Diz baixinho, o homem idoso. Reflete. Quanta vez presenciou Laura debruçada sobre o balcão? Morena, alegre, sorrindo, e lhe ouviu a voz nítida?
- Vai ficar aí na calçada? Entre, Maciel.
Encabulado, sorrindo sem jeito, atendendo-a, ele empurrava o portão, adentrando no jardim bem cuidado, com o jasmim de fragrância agradável dominando a noite, seguindo-o.
Logo passava pelo terraço, a sala e, apressando-se, galgando a escadaria em caracol, encontrava-se no terraço, onde a moça permanecia, e que, ante sua chegada, dizia:
- Gosto tanto de vê a rua daqui, Maciel.
Ele aquiescia em gesto com a cabeça, e mantinha-se calado.
Laura:
- Você falou com papai e mamãe?
- Não estavam na sala.
Então, sorrindo, ela buscando-lhe a mão:
- Vem pra cá, Maciel.
Dizia terna, enamorada. Com o coração pulsando nervoso, novamente ele obedecia-lhe. Assim de mãos dadas, ficavam vendo a rua sem gente ou veículos.
O céu negro, pontilhado de estrelas, e o vento frio, contudo agradável, acariciando-lhes os corpos. Mas, sem tardar, Laura retornava a falar:
- Às vezes, de repente, tenho um pressentimento ruim. Um medo do futuro...
Aquela mão macia que sustinha entre os dedos, tornava-se fria, trêmula? Daí, para dar-lhe confiança, ele apertando-lhe a mão, quebrava seu silêncio:
- O futuro é uma incógnita. Não pense em coisa ruim: seja otimista.
Ela, com a mão já liberta da sua, e passando-a sobre os cabelos, alisando-os para trás, respondia:
- É você tem razão. Besteira essa de ficar pensando. Ninguém pode prever o dia de amanhã. Mas, vamos dar umas voltas na praça?
Em seguida, de mãos dadas, desciam os degraus, transpunham a sala, onde já presente, a mãe de Laura alertava-os:
- Voltem cedo. Laura tem aula amanhã cedinho.
- Sim, mamãe.
- Não se preocupe D. Carminha.
Ganhavam o jardim, a calçada, e logo se avizinhavam da praça de casais nos bancos e que também contornavam o passeio.
- Hoje, a praça está cheia.
Comentava Laura, e com graciosidade inclinando a cabeça de lado, sacudia a cabeleira longa, que dançava ao movimento de seu corpo esguio, irrequieto.
Como ela achava-se bonita! Essa imagem ele a preservaria para o futuro, quando a lembraria, na velhice?
O tempo passou. Noivou e se casou com Laura. Como imaginar que após anos de união, com a queda que Laura sofrera, a tragédia os atingiria?
Lento afasta-se. Adiante, está a praça daquele tempo. O tanque ao centro, iluminado, a água subindo em cascatas. Os canteiros floridos. Mais bancos. Casais girando no passeio. Risadas. Afastado, o guarda complacente.
- Tudo diferente!
A nossa vida logo transcorre. Quando rapazinho poderia imaginar esse presente? Claro que não. Aliás, se o enxergasse, poderia ter vivido aqueles dias? Ah, com a idade torna-se saudosista. E, mesmo sofrendo com a recordação, estranhamente, sente-se bem.
À esquina, percebe o vendedor de frutas. Chega-se.
- Qual o preço da pêra?
- Cinqüenta centavos.
- O senhor me embrulhe seis.
- Certo freguês.
Laura adora esse fruto. Paga. Distancia-se.
A tarde morre. Na praça, as luzes acendem-se. Os automóveis passam em número maior. As calçadas circunvizinhas tornam-se movimentadas com os pedestres. Há essa hora, Laura está no terracinho, ouvindo o rádio. Acompanhando a prece do fim das tardes. Nos dedos recurvos, o terço.
Com a vista embaçada pelas lágrimas e o coração pulsando nervoso, ele adentra no coletivo. Regressando.
2
O portãozinho range ao ser aberto.
Ela move o rosto de lado, buscando saber quem chega.
O velho magro, de fisionomia abatida, avizinha-se.
Na mão, o pacotinho.
- Que é isso, Maciel?
- Trouxe umas pêras.
Então no rosto moreno, pouco castigado pelos anos, desponta o sorriso de outrora, e ele pondo o embrulinho no colo da mulher, foge a vista do corpo ainda bem proporcionado sobre a cadeira-de-balanço.
Ausente, em seu mundo íntimo, Laura morde o fruto.
A HORA ESPERADA
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* * *
A HORA ESPERADA é uma luz de esperança, o fluir do pensar positivo, a certeza de que a existência é um valor maior, enquanto existir vida, sempre a possibilidade de um novo porvir. Parabéns por pingar uma gota do otimismo no oceano pessimista da humanidade.
Luiz Domingos de Lima
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1
Calado, suando, ouviu a reprimenda:
- O senhor tenha mais atenção no que faz. Eu explico, explico... Se tiver alguma dúvida, pergunte. Se eu não estiver, pergunte ao Saturnino.
Ele fitou as próprias mãos. Brancas, sem sangue, as juntas dos dedos se destacando mais. E, envergonhado, permaneceu sem erguer a cabeça.
Como sempre, próximo, Saturnino presenciou a cena. Indiscreto. Sádico.
Nervoso, o patrão ergueu-se e, antes de abrir a porta e sobre a moto ganhar a rua:
- Faça tudo de novo, que eu confiro na volta.
Deu-lhe a costa, e escutou a zoada da moto partindo veloz. Devagar, Saturnino também se retirou.
Novamente sozinho, debruçou-se sobre o fotolito e, após o descolar e invertê-lo em nova posição, ficou retocando-o. Mais uma vez errara...
Sentia a camisa suada presa às costas magras. A testa fria. Descamisou-se. Da sala conjugada chegava às batidas ritmadas, secas, da máquina comandada por Saturnino. Lentas, as horas sucediam-se.
Até quando assim? Por que não dava uma “banana” para o emprego sem futuro, e evitava as reclamações, que tanto o humilhavam? Ah, se não fosse à mulher, a casa para manter!
- É, mas um dia, eu saio.
Aí, o telefone tocou. Da outra sala, partiu a voz grossa, antipática:
- Atenda aí, seu Clóvis.
Levantando-se, atendeu:
- Alô? Seu Raul saiu. Quer deixar recado? Sim, avisarei. De nada.
O colega adentrou curioso:
- Quem ligou?
- Doutor Rui. Pediu pra seu Raul ir pegar uma encomenda duns cartões, no consultório dele.
Após anotar o recado num bloquinho, Saturnino retornou à sala vizinha, deixando-o já entregue aos retoques do filme.
A luz florescente clareava o vidro onde se encontrava o fotolito. Com o pincel ia contornando as letrinhas. Ante a luminosidade, a vista ardia, e o calor aumentava. Tentava se apressar. Tinha que aprontar a “montagem” antes de seu Raul regressar. Sim, temia nova “bronca”.
Contudo, por mais que tentasse, não evitava a voz meio-efemininada, aos gritos:
- Porra! Tudo errado. Descole as chapas. Faça de novo. Saturnino me ajude aqui, que não tenho mais “saco”. Desse jeito...
Depois, afastando com violência a cadeira para trás, levantou-se e, em passos ligeiros cruzando a salinha e, com exagero, batendo a porta, trancou-se no gabinete.
Chegando, o colega também o censurou:
- Mas, o que é que tá acontecendo, seu Clóvis? O homem não explicou por duas vezes? Vai, levanta que eu faço. Presta atenção.
Atendendo, ergueu-se. Calado, ficou ao lado da mesa, seguindo os movimentos das mãos ágeis no conserto da montagem.
- O senhor tem cigarros?
- Tenho não.
- Também, nem cigarros o senhor tem!
Então, do gabinete, partiu o chamado:
- Saturnino, vem até aqui.
O colega, antes de ir atender:
- O senhor fique colando a fita nessa emenda, que já volto.
Em seguida, foi saber o que desejava o patrão. E, ele repetiu o que fizera, buscando acertar, temendo perder o emprego.
Distante, a fábrica apitou. Doze horas. Mas, só pararia para almoçar – trazia marmita – depois que concluísse o trabalho. E os olhos com círculos vermelhos, o suor, a cabeça vazia, as mãos frias, muito brancas... E, de repente, se fez à promessa:
- Um dia, saio daqui!
Então, devido à fina espessura da parede de madeira, ouviu:
- Um cara já maduro. Tem hora que me dá até pena. Não sei como proceder.
Aí, a outra voz:
- É, mas, o senhor tem de resolver.
Falavam alto, de propósito? Meu Deus, até quando agüentaria tanta humilhação?
A porta se abriu. As passadas duras. E a figura alta, meio gorda se avizinhou:
- Terminou seu Clóvis?
- Terminei.
- Deixe-me ver.
Junto ao homem grande, Saturnino: magro, pálido, os cabelos alourados, longos, os olhos esverdeados, e o sorriso irônico.
- Tá certo. Está vendo, seu Clóvis? O senhor se interessando, aprende. Agora, vá almoçar.
Deixando-o, os dois encaminharam-se à sala conjugada, e novamente a impressora voltou a funcionar.
2
Saturnino lhe pedira para fazer um pacote com os blocos impressos.
Atendera. Depois, o colega conferindo o embrulho, gritara, com raiva:
- O senhor não sabe fazer nada? Porra!
Então o sangue subira-lhe ao rosto, a cabeça latejou e, respondera, também gritando:
- Quem é você pra falar comigo desse jeito? Tá pensando o quê?
Aí, Saturnino com aquele sorriso irônico, no rosto comprido mais pálido:
- Tou pensando o que seu Raul pensa: que o senhor é “desligado”, não serve.
- Se é assim, por que ele não me bota pra fora?
Viu Saturnino se voltar à máquina, em desprezo e ouviu:
- Porque ele tem pena do senhor.
- Ah, é isso? Sendo assim, aqui eu não fico mais.
Cabisbaixo, o rosto do outro manteve o sorriso odioso.
Trêmulo, suando muito, com a cabeça girando, ele retrocedeu à sala, onde se sentando, ficou refletindo. Curtindo a contrariedade. Aos poucos, fortalecendo a decisão em sair da firma.
Quando seu Raul chegasse, avisar-lhe-ia de sua resolução, e continuou sem trabalhar, já se considerando desempregado. Apenas limitando-se a ouvir as batidas ritmadas, secas, da impressora: toc, toc, toc...
Distante, a sirene da fábrica apitou: meio-dia.
3
- Seu Raul, estou deixando a gráfica.
Perplexo, o homem fitou-o, e nada respondeu.
Ele prosseguiu falando:
- Discuti com Saturnino e não há mais “clima” pra ficar aqui.
Próximo à impressora, Saturnino olhava os impressos descendo na esteira.
Aí, seu Raul – com a voz mais fina e baixa? – saiu do mutismo:
-Tudo bem. O senhor pode largar. Sexta-feira recebe a semana e, na próxima, receberá ao que ainda tem direito.
Em seguida, com rapidez se erguendo do tamborete, cruzou a salinha e, adentrando no gabinete, fechou a porta.
Devagarzinho, sentindo-se bem – apesar de desempregado – segurou a bolsa, fixando-a ao ombro e saiu da seção. Contudo, antes de abandoná-la, viu a luz acesa, na mesa de retoques. Que ficasse acesa! Agora, não era mais funcionário da firma. Era livre, outro. Sim, para tudo há uma hora... Ganhou a rua estreita, clareada pela luminosidade do sol.
- E agora?
- “Deus quando fecha uma porta, abre outra”, dizia sua mãe. Verdade. Deus é bom. E a figura pequena, magra, de ombros curvos afastou-se, com a repentina chama da esperança, no peito.
No céu – lhe pareceu – a luz solar brilhava com maior intensidade.
Então, agradecido, sorriu, com humildade.
O DISFARCE DA VERGONHA
... Dentre eles Paulo Valença, que participa da coleção com o conto o Disfarce da Vergonha, escrito dentro de seu estilo característico, que li por duas vezes.
Humberto Del Maestro.
* * *
Sua crônica como sempre, envolve o leitor. Gostei muito.
Salete Cordeiro.- Escritora, Poetisa – Recife/PE
1
A jovem mulher ao abrir o portão, reconhecendo-o, sorri, simpática, e após mandá-lo entrar:
- Sente-se aí, Otávio, que eu vou avisar ao seu irmão.
Encabulado, agradecido, ele sorrindo, senta-se na cadeira à orla da piscina. A cunhada ainda mantendo o sorriso no rosto moreno, de traços harmoniosos, com graciosidade ausenta-se. Ele segue-a com os olhos. Apesar de já ser mãe, a Maria conserva o corpo esguio, de adolescente.
O Orlando é um sujeito de sorte: situação financeira equilibrada, e mulher bonita. Enquanto ele... A cunhada cruza o terraço, adentra na sala. Desaparece de seus olhos. Ele desvia a atenção à água da piscina, que reflete a luz do poste n calçada atrás do muro. Por que a gente tem que passar por instantes aos de agora? E de repente, chega-lhe a voz da esposa:
- Otávio, por que você não fala com seu irmão? Diz pra ele que ainda não recebeu sua indenização?
Ele então se enervou:
- Você acha tão fácil eu pedir ajuda a quem nunca incomodei!
Ela desviando a vista às sandálias gastas, respondeu com a voz mais baixa:
- Eu sei. Mas, é que estamos precisando...
Aí o silêncio desceu sobre ambos. Depois sozinho na pequena sala, ficou pensando. A que ponto chegara: ter de procurar o irmão, em busca de dinheiro! Ele, que sempre lutara para não o incomodar, que nunca esquecera as censuras do mano: “Essa sua profissão de desenhista não tem futuro, cuide de fazer um concurso. Pense alto, Otávio...”.
Contudo, ele persistira trabalhando. Idealizando-se em melhores dias. Hoje...
- Titio...
Desperta das reflexões com a voz da criança magrinha, loura, ao lado:
- Cadê o teu pai?
Irrequieto, o sobrinho afastando-se:
- Papai disse que já vem.
Depois, abaixando-se, o menino fica com a mão fazendo círculos na água da piscina.
Com a mão nervosa, Otávio penteia a cabeleira grisalha para trás.
Com o aviso de sua presença, Orlando entendeu que ele chegara a fim de lhe pedir dinheiro emprestado? Mas não mandara dizer que estava vindo?
Cruza a perna sobre a coxa direita. Impacienta-se. Contudo, precisa se conter. Afinal, por ser humano sofre com uma cena imprevisível em sua vida. O irmão o compreenderá, e o ajudará.
- É uma emergência.
Fala baixinho. Mas o menino ouvindo-o volta o rostinho perplexo, e indaga:
- O senhor falou titio?
Ele sorri, disfarçando. E com a cabeça faz o gesto negativo. O sobrinho com os dedos finos, brancos, retorna à brincadeira. Meu Deus, por que tem de passar por essa humilhação? Inquire-se, na impaciência que retorna. E se... Outra vez alisa os cabelos, e respira alto, buscando o autocontrole.
Além do muro, na rua, um automóvel cruza-a, em disparada. O sobrinho ergue-se da posição de cócoras e correndo adentra na residência.
Ele fita o céu escuro, sem brilhos. E sente o frio. Entende: Orlando tarda de propósito. É o mesmo do passado, ante um problema, foge. Acovarda-se. Por que se iludiu, acreditando na ajuda do irmão?
- Porque necessito.
Numa repentina resolução levanta-se e ruma em sentido do portão. Caminha devagar.
- Que pressa é essa, homem?
A voz grossa de Orlando. Pára. E sério, vai ao encontro do irmão, que sorri.
2
Debruçada sobre o murinho defronte da casa, ela espera o marido.
A noite adianta-se. Na rua estreita, ladeirada, ninguém passa. O frio circula. O céu é negro, sem estrelas. Por que o Otávio tarda? Terá falado com o Orlando e conseguido o empréstimo?
Até quando, meu Deus, ela e o marido permanecerão nessa situação humilhante? Se pelo menos a Justiça resolvesse a questão trabalhista... Mas, na vida, tudo é uma fase. Passa. Deus é pai, não os abandonará.
Decide retroceder a casa. Afasta-se do muro. Abaixando-se, fecha o portão e, ao se erguer, enxerga a figura baixa, gorda, subindo a rua.
Então, emocionada, abre o portão, para receber o marido, e inquire:
- Conseguiu?
- Consegui.
- Graças a Deus!
Ele passa e, na salinha, antes que a mulher perceba, apressa-se em enxugar os olhos com o lenço, escondendo o que sente intimamente.
Inocentes, os passos avizinham-se.
Disfarçando, ele repõe o lenço no bolso das calças.
Como se não lhe tivesse visto o gesto, ela busca naturalidade ao indagar:
- Vai jantar agora, Otávio?
A voz dele é trêmula ao responder:
- Vou, Salete.
Lado a lado então adentram na sala vizinha.
Recife, 10. 01.2002.
A CENA DE SEMPRE
Um conto interessante.
Parabéns.
Esse votei.
Osmar Ricardo – São Paulo (SP) – 24/3/2009.
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1
Os três homens estavam próximos de seu pai que, encostado à porta descida do supermercado, pálido, sem firmeza, encarava o soldado mais forte, negro, que falava gritando:
- Aprenda a tratar melhor os fregueses.
Os pedestres avizinhavam-se, fazendo o círculo em volta deles. Seu pai respondia, com a voz baixinha:
- A moça não entendeu...
O policial continuou aos gritos:
- Que não entendeu... Você é safado!
Ouviu então o pai protestando:
- Safado não.
O negro, com a testa suada e os olhos dilatados pela contrariedade, pondo-se defronte dele:
- Fique calado, senão levo você preso.
O pai:
- Mas eu tenho o direito de me defender.
- Que direito, que nada! Você é mesmo safado. Calado! Se falar, levo você pra o presídio.
O rosto de seu pai estava sem sangue, o suor descendo nas faces gordas, os olhos com o brilho da humilhação.
Aí, alguém censurou baixinho:
- Isso é um abuso de poder.
Um dos fardados buscou com a vista descobrir quem criticava. Contudo, os curiosos se portaram numa fingida indiferença ao olhar ameaçador. E novos indiscretos surgiam. O lavador de carros, empurrando um desses, avizinhava-se do meio-fio:
- Dá licença, gente boa.
Assim tudo presenciando, vendo o seu pai recuado, coagido pelos gritos, ele tremia e, de repente, sentiu o desejo de chorar... Então, o soldado grande o percebeu:
- Diga ao seu “coroa” pra ele tratar melhor a freguesia.
O seu pai então tentou mais uma vez defesa:
- Mas eu...
- Fique calado. Eu já disse você é safado. Repita: sou safado!
Não, não mais queria presenciar a cena e apressado fugiu o rosto. Entretanto, ouviu a voz baixinha, humilhada, repetir:
- Eu sou safado.
Depois, os policiais com as cabeças erguidas lentos, afastaram-se. Mas, aquele que gritara, voltando-se, ainda ameaçou:
- “Coroa”, se não se emendar, irá pra o Aníbal Moura. Entendeu?
Cabisbaixo, o pai nada disse. Aos poucos, os presentes dispersaram-se. Defronte, o lavador sádico olhava quem sofria a desmoralização e ele, o filho, sem coragem de fitar o pai, continuava com os olhos turvos pelas lágrimas dolorosamente contidas.
Ao lado, a mercadoria que ele e o pai trouxeram para vender: macaxeira, inhame e fruta-pão. Em sua cabeça confusa, assim definia o motivo daquilo tudo: a moça julgando-se ofendida pela maneira do seu pai a tratar, fora então se queixar aos policiais, na esquina e... Tudo se desenrolara. Mas, que se lembrasse o pai não a teria desconsiderado. Provavelmente, ao enredar, ela exagerara, e causara aquele inferno... Ou...
- Filho.
A voz enrouquecida, contrariada, despertou-o ao presente:
- Diga pai.
Falou, mantendo a vista longe da fisionomia transtornada pelo aperreio. E a voz:
- Vamos arrumar as coisas, pra ir embora.
- Sim.
Calados puseram-se a empacotar a mercadoria em sacos. Em volta, os pedestres passavam, entregues à luta diária. À esquina, os policiais seguiam-lhes os movimentos. A tarde morria. O céu escurecia-se. O limpador, polindo um veículo, mantinha o interesse neles.
- Vamos, menino.
Acompanhou o pai que, caminhando, pareceu-lhe mais moreno gordo e lento.
Evitando a esquina com os militares, cruzaram a avenida em sentido da calçada fronteira.
Ao chegarem em casa, sua mãe vendo-os com a mercadoria, indagou, perplexa:
- Mas, não venderam nada? O que houve?
Passaram. Puseram os sacos no recanto da salinha e, devagar retrocederam, para lhes dizer o que sucedera.
2
- Colega, nada de grosseria, vai “maneiro”.
O policial negro, grande, fita-o e, sorrindo:
- Tás ficando “frouxo”, rapaz?
- Não é isso. A gente fala com o velhote pra ele ir vender as “bugigangas” noutro lugar. Com jeito, tudo se resolve.
- Vamos lá.
Dirigem-se à calçada onde o idoso baixote, moreno, gordo, vende as frutas. E, de repente, na mente do jovem policial surge o passado. Aproximam-se.
Percebendo-os, o vendedor treme medroso.
Os curiosos – como sempre – avizinham-se. Empurrando por trás um carro, o “flanelinha” também se achega, parando ao meio-fio defronte.
O velho espera. À tarde outra vez escurece.
- Tio, o senhor não sabe que é proibido negociar aqui?
O policial mais novo sente o coração se partir. Meu Deus, depois de tanto tempo, tudo recomeçará? Indaga-se, com a vista turva ante a cena de ontem, hoje e... Sempre?
ONDE MORAM AS
LEMBRANÇAS
Classificado no VIII Concurso de Contos – Prêmio Prof. José Nantala Bádue, promovido pela ASES – Associação de Escritores de Bragança – São Paulo, em 2003.
* * *
Classificado no II Concurso de Contos, Crônicas e Poesias (SP), promovido pela Secretaria de Cultura e Turismo e Biblioteca Municipal Antônio Branco, de Santana de Parnaíba / SP, em 2002.
* * *
Menção Honrosa no 6º. Prêmio Missões, promovido pela Igaçaba Produções Culturais Ltda., de Roque Gonzáles / RS, em 2003.
O portãozinho corroído pelo tempo, emperrado. Passando, o velho fecha-o. E retirando a chave da carteira, abrindo a grade, adentra no terraço. Com outra chave abre a porta e vê-se na pequena sala, sem móveis. À esquerda, está o quarto, também vazio, e a recordação, que o preenche:
- Antônio traz a cadeira.
No passado, ele ia buscar a cadeira-de-rodas na cozinha e, trazendo-a, a mulher grande, morena, forte, com dificuldade deixando a cama, sentava-se.
- Me leva pra o terraço.
Empurrando a cadeira pr trás, ele assim procedia. A mulher com o sorriso de brandura, de menina, e os olhos tristonhos então os fixava no resumido movimento da rua estreita, ladeirada, e no morro defronte, com suas residências mal ordenadas, com escadarias e moradores subindo-as, ou às janelas e nos quintais com fruteiras, tendo como testemunha de tudo o céu muito azul de verão.
- Antônio?
- Já vou.
Mesmo doente, a voz dela permanecia nítida, bonita:
- Que é?
- Me traga a água: tou com uma sede!
Novamente ele atendia-a.
- Apressa isso, criatura.
- Tou indo.
Ela sempre impaciente. Parece-lhe que tudo transcorre agora... Entretanto, quanto tempo decorrido? Cruza a sala. Na outra vizinha, enxerga a cena daqueles dias: a mesa com o jarro de flores artificiais, a estante, com seus livros de literatura. Ao lado, a cozinha, e o banheiro conjugado. Daí, a mulher orientava a mocinha no preparo das refeições:
- Você nunca faz o que eu mando. Vá, tempere melhor essa carne.
- Mas, titia...
Ela enervava-se:
- Não me responda. Você só quer ser servida.
Empurra a porta do banheiro. Dentro, urina dá descarga, ausenta-se. Novamente na sala, abrindo a porta, alonga os olhos no quintal com o pé de acerola - vermelho de frutas -, o abacateiro, com nova folhagem, e em volta, o capim livre, crescido.
- Já tá bom de mandar limpar esse quintal.
- Sim, vou mandar “Bode” limpar.
- Você, Antônio, se a gente não estiver pedindo, pedindo... Homem mais displicente!
Sorri. Como ela se preocupava por tudo. Que excelente dona de casa! Mesmo doente não se entregara: comandava a vida rotineira da casa.
Sentindo uma coisa... Fecha os olhos. Contendo-se.
No carro, o homem de meia idade para a mulher, também madura, ao lado:
- Eu acho que nosso pai tá ficando esclerosado, Neide.
Ela enruga a testa, contrariada e, com a mão bem cuidada penteando os cabelos finos para trás:
- Tolice essa de papai visitar uma casa vazia... É, Nando, você tem razão.
O homem respira com força e, prossegue falando:
- Sou muito realista: o que passou, morreu. Acabou-se. Quem vive de passado é museu. Nossa mãe morreu, descansou. E papai deve se conformar. O sensato será a venda da casa, que, sem ninguém que a zele, está se acabando.
A mulher ainda com as mãos nos cabelos:
- E vender logo, antes que seja invadida. Com a “onda” dos “sem-tetos”, que se apossam do que é dos outros...
- Pois é.
Emudecem. Impacientes. Mas contêm-se, pois o velho é sensível, por tudo se contraria.
O sol esquenta. O calor cresce. Nando subindo os vidros liga o ar-condicionado. E fica com os dedos da mão direita tamborilando na direção.
- Papai sempre foi um sonhador.
- Por isso mesmo, irmã, que nunca fez nada na vida. Fracassou!
- Também, Nando, não exagere.
Outra vez respirando alto, ele retruca (afinal, precisa desabafar a sua contrariedade pela “maçada” que o velho lhes impõe!):
- Não exagere? Mas, vamos ser realistas, Neide: o que papai fez por nós? Se a gente não tivesse tido a “garra” de estudar, procurar ser gente... Papai passou a vida no mundo da lua: lendo, sonhando, alheio à própria família. Um ausente.
Ela conhece bem o irmão; melhor silenciar. Nando puxou ao pai: é nervoso, e para aperreá-la, basta-lhe essa espera. Franze a testa, e acaricia a cabeleira aloirada.
Nando consulta o relógio. Com tanta coisa para resolver...
- É uma merda!
Discreta Neide sorri. O outro fugindo a atenção ao morro comenta:
- A pessoa se sujeitar a morar numa altura daquela... A pobreza sofre muito.
- E saber que papai e mamãe viveram aqui, nesse ambiente...
Ele então sorrindo:
- Não é o que digo? Papai sempre fracassou. Sempre.
O idoso sente o peso da ausência. Por que não aceita sua realidade? Ana morreu... Contudo, través das lembranças, ele se reentrega à vida. Sim, esses reencontros com o passado são necessários à própria existência, porque ele não mais encontra interesses no presente de desilusões, dias amargos.
Com o lenço enxuga os olhos, e devagarzinho encaminha-se à salinha, para em seguida ganhar o terraço, abrir o portãozinho e, descer a rua, indo ao encontro dos filhos.
Ao fechar o portãozinho, escuta a buzina, chamando-o.
- O Nando é sempre apressado!
Comenta, em censura e, aligeirando-se, desce a rua.
Vendo a figura magra, de ombros curvos, a cabeça branquinha, o rosto enrugado – mais vermelho? – Neide sensibiliza-se:
- O pobre de papai: achar “graça” em visitar uma casa desocupada!
Sem comentário, irmão respirando com força liga o motor.
O velho chega apressado:
- Vocês me desculpem a demora.
Atenciosa, a filha abre a porta do carro e, sorrindo:
- Nada, papai. Entre.
O velho adentra. Nando gira a direção e, macio, o veículo ausenta-se da rua de moradores mal vestidos e crianças que correm, e empinam papagaios.
O sol cintila no céu azul, sem nuvens.
Entreguem às suas reflexões, os três seguem em silêncio.
Desejando recuperar o tempo perdido, Nando troca de marcha e, acelerado, o veículo distancia-se.
Entendendo-o, a irmã sorri. E o velho ouve a voz do passado: “Um dia, Antônio, você se lembrará de mim. A gente nunca morre meu velho”.
- Verdade, Ana.
- Falou papai?
- Não, filha. Apenas pensando alto.
Nando mantém-se calado.
ENQUANTO A NOITE AMADURECE
Menção Honrosa Especial (9º. Lugar) no 1º. Prêmio Literário A GAZETA, de Campo Bom / RS / Brasil, em 2004.
Excelente narrativa, Paulo. Fechou com chave de ouro o final: “Tranca-se na própria dor”. Já me vi assim... mesma.
Parabéns pelo texto!
Caranguejo – fêmea.
1
- Tonho, vê se arranja qualquer “gancho”: não tem nada, a não ser café e açúcar.
Sem falar, fitando-a, ele deixa a pequena sala. Ela se achega à sala, seguindo-o com os olhos, apiedada. Coitado do Tonho! Mais magro, encurvado, amarelo, envelhecido...
- Tá acabado.
Resume-se, realista. Ah, Meu Deus, se Tonho conseguisse qualquer serviço, que lhe desse dinheiro, para trazer comida, ao regressar! Antes, não tivessem vindo do interior, daquele sertão, pois, trocaram a pobreza de lá, por a miséria daqui, na capital.
- Sei não...
Mas – quem sabe? – talvez, ao retornar, Tonho chegue com uma sacola, com alimento! Põe a mão espalmada sobre a barriga crescida pela gravidez. O filho que virá e que encontrará essa falta de tudo... Mas, Tonho ao regressar, trará uma sacola com feijão, farinha, charque, bolacha, verduras... Sim, pensamento positivo! Nas vezes anteriores não foi assim? Então... Segura a vassoura e, otimista, varre o ambiente pequeno. Fora, o sol banha a rua estreita, as casas conjugadas, defrontes, e a gente que as abandonam, saindo para o trabalho, ou à semelhança de Tonho, em busca deste. Homens na eterna luta pela sobrevivência. Agora, ela acende o fogão e põe a chaleira, no preparo do café. Tonho poderia ter esperado mais um pouco, pelo menos, não teria saído com o estômago vazio. Um homem da vergonha dele e se ver sem trabalho, um “ganho” certo para a sua e a manutenção da mulher...
- É doloroso.
O pessimismo quer vencê-la. Não, não se entregará! Necessário crer nas coisas, saber que sempre há uma saída aos problemas da vida.
A água ferveu. Transfere-a à garrafa, e
à xícara, a qual levando aos lábios, bebe, com vagar, o café. Um dia, o que sofre será apenas uma lembrança que talvez lhe traga saudade...
Sim, porque se sente saudade de tudo.
- É. Mas, o que sentirei será alívio.
Sorri. E novamente segurando a vassoura, varre a salinha conjugada, que lhes serve de cozinha e dormitório.
2
O sangue. O corpo caído, sem vida. Alguém que o envolve com o lençol, que se mancha de nódoas vermelhas. Os operários que o cercam, mudos, perplexos ante a brutal cena realista. Então o engenheiro-chefe chega e segurando o braço do encarregado de turma:
- Vem cá, Vadinho.
Saem. Adiante, o engenheiro com a voz enrouquecida pela contrariedade:
- Que idéia maluca foi essa de contratar esse cara que despencou de lá de cima?
Baixando a cabeça, humilde, Vadinho, com a voz baixinha, tenta se justificar:
- Ele pediu qualquer serviço. Estava necessitado. Tive pena, porque já “curti” muita necessidade...
Impaciente, o superior corta-lhe a explicação:
- Sei, sei. Você lhe deu o serviço de ajudante e o carinha despencou... Agora, seu Vadinho. Como vamos justificar essa morte à companhia e à imprensa?
O rosto se volta, vermelho e a voz prossegue, gritando:
- Você primeiro deveria ter me consultado: não se dar emprego a qualquer um assim! Em se ter coração bom resulta nisso. Estamos enrascados!
- Mas...
- “Mas...” uma merda! Vadinho, o senhor está demitido! Compareça ao departamento-pessoal para receber ao que tem direito. Está fora, fora da companhia!
Em passos rápidos, o homem ausenta-se. Vadinho reflete. O sujeito chegou lhe pediu... Viu-se no passado, também na mesma situação, com a mulher grávida, a despensa vazia, implorando uma “colocação”... Como saber o que depois sucederia? Como? O coração lhe traiu. E agora?
- Seja o que Deus quiser.
Adiante, à esquerda, os trabalhadores mantêm o círculo em volta do morto, enquanto o engenheiro faz ligações, procurando solucionar os problemas causados pelo acidente.
- Alô? Espero sim.
3
Zefinha chega à porta e estende a vista, desejando enxergar Tonho.
Devagarzinho, a noite abraça a ruazinha, as residências e a mulher, que se enerva anta a demora do companheiro. Contudo, permanece à espera, na fidelidade de sua honesta amizade. No ventre, a criança mexe. E, com vagar, com a mão aberta, a mulher massageia o ventre, numa carícia. O filho, que apesar de tudo, virá, será bem vindo... Muito bem vindo! Sente os olhos turvarem-se pela emoção em se saber que será mãe. E continua a dança da mão em círculos sobre a grande barriga. Alonga os olhos à noite que, amadurece lenta dentro do tempo.
- É este o destino do pobre... Esperar!
Diz, em desabafo. E, de repente, sente-se cansada. Fechando então a porta, se tranca na própria dor.
Recife, 13.10.2003.
SERVO DAS LEMBRANÇAS
www.cantodoescritor.noitedepoesia.com.br
1
- Inácia, que notícia você me dá daquela lourinha, que o pessoal chamava de “Xuxinha do bairro?”.
Ela entende-o. Bosco não a esqueceu. Sempre se lembra dela, da paixão de outrora. Então, fugindo os olhos do rosto largo, amarelecido, com bigodes grisalhos, a cabeleira cheia, ondulada, branca, ferido por rugas e olhos inquiridores, a mulher, com o coração partido, responde:
- Dizem que a “Xuxinha” se casou com um sujeito que a maltratava e...
- “A maltratava?”. Quer dizer que...
A mulher madura, cheia de corpo, volta-se e, fitando-o, conclui a dolorosa revelação:
-... Que ela morreu. Faz uns dois anos. Comentam que foi de maltrato, desgosto.
Bosco fita a rua defronte, com carros e pedestres mal vestidos cruzando-a. O sol abranda-se. A tarde adianta-se ao encontro da noite. O silêncio paira sobre o casal.
Chocado com a brutal notícia, Bosco reflete. Quanta volta a nossa vida dar! Poderia, no passado, imaginar no que acaba de saber? Envelheceu e não se adapta à vida, com suas surpresas! Parece ver a adolescente loura, esguia, graciosa, sorrindo:
- Bosco, por que você é tão calado?
Perguntava, brincando, no desejo de estabelecer o diálogo que mais os aproximasse. Sorrindo com timidez, ele era lacônico:
- Porque nasci assim.
Gargalhando, a mocinha erguia-se do banco:
- É disso já sei. Mas, vamos dar umas voltinhas?
Lado a lado, saíam caminhando em volta da praça, de canteiros bem cuidados, colegiais nos bancos, em grupinhos ou à semelhança deles, também passeando. A tarde morria. Aos poucos, o céu enegrecia. Logo a noite abraçaria tudo.
- Amanhã, irei fazer um teste para me empregar, Bosco.
Ligeiro, voltou-se, curioso, de repente sentindo o medo de perdê-la:
- Mas... Patrícia, e o estudo?
Ela sem o fitar, baixando a cabeça:
- Se eu for aprovada, estudarei a noite.
- Sim?
Sim... Daí ela sendo aprovada, então foi que começou a perdê-la. Freqüentando novos ambientes, chegando de carro, com o chefe, amulatado, bem vestido, simpático...
- Pensando na “morte da bezerra”, Bosco?
Com a indagação, ele desperta ao presente e, sorrindo:
- Pensando em besteira...
Então, a irmã, como sempre, é agressiva:
- Falou e disse!
- Pois é, Inácia.
Impulsionando o corpo para trás, ela balançando-se na cadeira, retorna a falar:
- Você namorou a “Xuxinha”, não foi?
- Foi. Você bem sabe disso. Namoro de adolescentes.
- Sei...
Não, não deve indagar mais nada ao irmão. Ele sempre perguntou pela “Xuxinha” bonita. Nunca a esqueceu e agora com o que acaba de saber, a morte dela... Contém-se.
- Inácia, estamos velhos.
Ela, sorrindo:
- Grande novidade! Você, meu irmão, não aceita a velhice, com naturalidade. Aliás, puxou ao nosso pai, que reclamava das mudanças do tempo nas criaturas.
Sim, ele também não concorda com a metamorfose, como dizia o seu pai... Contudo, temos de ser realistas: aceitá-la.
- É. Mas, que jeito? Esse é o destino de todos nós: a velhice e a morte.
- O nosso destino.
Dois anos decorridos... Por que não lhe disseram antes? Talvez porque pouco visite a irmã e assim não tenha sabido anteriormente. Mas, agora é tarde para a lamentação, para as recordações.
- Muito tarde.
- Falou Bosco?
Erguendo-se da cadeira, ele com a atenção na rua, com um número maior de veículos e pedestres:
- Nada não. Bom...
Novamente entendendo-o, ela:
- É cedo. Fique para jantar. O Júnior chega já, e ficará alegre de lhe ver.
A mão estendida, em despedida. Ela aperta-a, retribuindo o gesto.
- Até, irmã. Lembranças ao Júnior. Diga-lhe que depois venho com mais calma.
- Sim, direi. Felicidades, Bosco.
Devagar ele abandona o terracinho. Com os olhos apiedados ante a figura magra, de andar vacilante, a cabeça alva, o jeito de entortá-la de lado (herança do nosso pai) ela sente o coração se apequenar... Nervosa, se volta e adentra na sala, fugindo.
Depois, no sofá, busca se prender à televisão. Liga-a. Segue a dança das imagens da novela, que é uma repetição de outras exibidas. Bosco pouco aparecia e, quando, de uma maneira ou outra, sempre se referia à lourinha, procurando saber-lhe notícias. Contudo, hoje... Outra vez agitada, erguendo-se, desliga o aparelho.
- Agora, cuidar do jantar; o Júnior está chegando.
Encaminha-se à cozinha.
2
Percebe pela janela da sala vizinha, que a noite apossa-se do bairro. Nova noite, na marcha natural das coisas. Quando voltará a rever Bosco? O irmão que não se casou, envelheceu preso às lembranças...
- Inácia?
- Estou aqui, na cozinha, Júnior.
Os passos avizinham-se. E a voz grossa, numa pergunta que se converteu em saudação noturna:
- O que temos hoje, no “menu?”.
Ela se vira, fita-o e, sorrindo:
- O de sempre: carne, arroz, macarrão, verdura, café e pão.
- Ótimo! Vou tomar o meu banho.
Passa, em direção do banheiro conjugado ao ambiente. A porta bate, fechando-o em sua intimidade, enquanto a mulher retorna à obrigação, com um vazio no peito. Um vazio.
Recife, 16.10.2004.
A INSINUAÇÃO DO JUSTO
Maria:
- José, esfria a cabeça, mode não fazer uma asneira, homem!
O rapaz moreno, de rosto fechado pela contrariedade, fitando-a, responde, procurando falar devagar:
- Estou querendo me controlar... Mas, que é um grande desaforo, isso é!
A moça não protesta. O irmão tem razão. O pai, um velho com 83 anos está adoentado com a dor no peito, desde o dia (já vai para uns dois meses) no qual indo cobrar o que lhe deve o Jacinto – pela posse do terreno “O garrote” com a casa – o sujeito com desaforo, num gesto violento, com um murro atingiu-lhe o peito... Agora o pai se sente desmoralizado e se queixa também de uma dor, que lhe corta o tórax.
- O infeliz me pegou desprevenido: quando vi foi a pancada na caixa dos peitos! Um murro tão grande que caí pra trás, quase desmaiado. Fiquei sem ar, durante uns minutos. E tudo porque fui receber o que me pertence.
Ela escutara-o em silêncio. Após uma pausa, para recuperar-se do cansaço em falar, o velho então concluiu o relato:
- O desgraçado me deve e ainda fica com “enroladas”, inventando estórias, me “cozinhando” a paciência. Esse Jacinto é um cabra muito do safado!
- Pai, sossega um pouco. Tome, beba essa água. Tá friazinha.
Entregou-lhe então o caneco.
A mão trêmula segurou-o e os lábios finos beberam com vagar o líquido.
A filha entendia-o. Um homem do caráter do pai se ver assim de repente apanhado porque fora em busca do que, por direito, pertencia-lhe... Sensibilizada, fugindo os olhos, recebeu o caneco vazio.
- Vou cuidar da janta, pai.
Seu Juca nada mais disse e fixou a atenção na janela aberta, que mostrava o terreiro limpinho, a cerca de avelós, o cercado das ovelhas, ao lado da moradia, e também viu o sol fraco ante a chegada da noite. Bem que lhe haviam prevenido: “Juca, tenha cuidado com esse forasteiro, vender a quem não se conhece direito...” Contudo, de boa fé, sem maldade no coração, confiara e... O resultado estava ali: o homem “embromando” em pagar-lhe a dívida contraída. O que fazer então? E, de repente lhe veio o receio: Se o José souber... O filho “esquentado” como é não deixará essa situação ficar como está. Disso tem certeza. Nervoso, ergueu-se do tamborete e saindo, avisou à Maria:
- Filha, vai dá uns “giros” por aí.
- É bom mesmo, pai.
Ele pôs o chapéu de couro na cabeça e ganhou o terreiro, com o peito doendo.
- Se eu fosse mais novo...
Desabafou, em voz baixinha, e devagar continuou se afastando sobre a areia branca da estrada, que o levava à vila de Sítios Novos. Distante, um carro de bois gemia com o peso da carga. Próxima, uma rolinha “fogo-pagô” cantava, despedindo-se da tarde, que logo seria substituída pela noite. O velho caminhava. No fim da vida e ser ”desfeiteado” por um elemento estranho... Mas, há de chegar à hora de alguém acertar “as contas” com o salafrário! Sim, porque o que se faz aqui na terra, aqui mesmo se paga. Outra vez suspirou, como se desejasse afugentar os pensamentos e a dorzinha pinicando-lhe o eito.
Agora, José (quem danado foi lhe contar o que aconteceu com o pai?) senta-se no tamborete, à entrada da sala. Calado, olha o terreiro, onde a galinha catando alimento pinica o chão. Maria conhece bem o irmão. Nesse mutismo, há a raiva concentrada, que cresce... Não, Meu Deus evite uma desgraça! Então busca trazer José à realidade, livrando-o do mundo íntimo, perigoso:
- Quer um cafezinho, José?
- Einh? Quero, quero.
A moça retira-se. Ele reflete. O velho pai, um homem que apesar da pobreza é trabalhador, honesto, bom chefe de família se ver escorraçado daquilo que lhe pertence, desmoralizado! Não, isso não ficará assim. Antes a morte do que se acovardar com tamanha humilhação! Levanta-se e em passos ligeiros, enfrenta o terreiro.
- José, o café.
Mas, a sala está vazia. Com a vista aflita, Maria segue a figura que é tragada pela distância e, de súbito, sente o estranho, incômodo pressentimento.
Três dias depois Jacinto é encontrado esfaqueado, morto, na própria casa. E, de José, ninguém sabe o paradeiro.
- Melhorou da dor, pai?
Indaga Maria, sorrindo.
- Agora melhorei tou quase curado...
Entendendo-lhe a insinuação, a jovem de mansinho novamente sorri.
Fora, no terreiro, na cerca de avelós, no telhado enegrecido pelo tempo e nas demais coisas, o sol cintila com força, pois é o sol de verão.
O velho Juca fecha os olhos, descansando. Respeitando-lhe repouso, a filha retira-se na ponta dos pés.
Sim, a vida prossegue.
Recife, 20.10.2003.
MUNDO ÍNTIMO
Publicado no Jornal Cultural MENSAGEIRO, Ano VIII, Nº. 122 outubro / 2003, de Porto Alegre – RS.
Isabel continua conversando ao telefone. Será que sua mulher... Temendo concluir o que pensa nervoso, retrocede à sala. Sentado, com a companheira – sem mais se prender ao telefone - ao lado, procura se fixar no noticiário, que é o retrato do país em colapso financeiro.
Romeu está ficando muito ousado: telefonar, sabendo que Gaspar encontra-se em casa...
Relaxando o corpo, Gaspar arreia-se no sofá. Devagarzinho, fecha os olhos, no desejo de nada ver, ou pensar, apenas, ficar consigo mesmo.
Isabel sente no peito a pontada do receio... Repetitivos, os dedos correm sobre a cabeleira, penteando-a.
O marido cochila. O rosto afilado, sereno, meio caído sobre o peito largo, os braços compridos, fortes, a barriga crescida. Quando ele souber? Angustiando erguendo-se, desliga o aparelho e, achegando-se ao homem, com a voz branda:
- Gaspar?
Sorrindo, espera.
PARCEIROS DAS TREVAS
Descendo do carro, os dois homens cruzando o portão, dirigem-se à mesa recuada, onde as paredes formam ângulo, e sentam-se.
Ativo, o garçom se achega:
- Pois não, às ordens.
- Traga duas cervejas.
Pede o negro, já idoso, e corpulento.
Então, o outro sujeito, que é brancoso, cabeludo, indaga:
- O que se tem pra se mastigar?
O garçom então se detalha:
- Sururu-ao-coco, agulha-frita, sarapatel, e queijo-assado.
O brancoso:
- Traga o sururu.
Aquiescendo com a cabeça, o rapaz se retira.
Em silêncio, os dois homens estudam a rua movimentada.
A tarde morre. Os pardais chilreiam, na árvore frondosa, por trás do muro da fábrica defronte.
- É ver uns pintos piando.
Compara o negrão.
O garçom retorna com o solicitado. O negro despacha-o:
- Certo menino. Depois, a gente lhe pede mais.
- Tudo bem.
Apressado, então, vai atender ao velhote, que acaba de sentar-se na mesa próxima ao portão.
- A cerveja tá no “ponto!”.
Retorna a falar o negrão.
O brancoso aquiesce:
- “Beleza pura!”.
Silenciam. Outra vez analisam a rua e os fregueses do recinto.
Pondo a bandeja sobre o balcão, a mulher fala ao garçom, de lado:
- Fica de olhos naqueles dois. O crioulo não me engana: leva jeito de “pistoleiro”, e o amarelo também deve ser da mesma “laia”. Dali pode sair novidade...
- Deixe comigo, D. Ivone. Qualquer coisa, aviso à polícia. Tou “ligado!”.
- É bom mesmo que esteja. Mas, segura a bandeja, que o gordinho que chegou, está impaciente.
Acenando com a mão do braço curto – desproporcional ao tórax largo – o homenzinho chama o garçom que, protesta, em voz baixinha:
- Que carinha mais cabuloso!
Ouvindo-o, a mulher solta a risada alegre, de deboche.
Apressa-se em ordenar os papéis, pois a noite nasceu e logo a sirene apitará, anunciando o fim do expediente. Então, ele irá para o bar de D. Ivone, onde se encontrará com a recente conquista amorosa, que, sendo jovem e bonita, desperta atenção, principalmente dos homens. E, como é natural, sente-se vaidoso em sua companhia. Depois, na cama, têm aquelas poses...
- Vai pra o bar de Ivone, Ademir?
É o seu auxiliar que, como sempre, indiscreto, o indaga. Não lhe responde. O rapaz prossegue falando:
- Ademir, eu não tenho nada com isso, mas, como seu amigo, lhe aconselho: esquece a Vera. Aquilo é menina “escolada”, profissional.
Ante o mutismo do chefe, ele se detalha:
- Você entende: em lugar pequeno, tudo se descobre.
Então, Ademir:
- Mas... Vera me disse que está completamente livre.
- Confie não, amigo.
Silenciam. O rapaz apóia-se defronte do birô e, como se quisesse ouvir o protesto do outro, aguarda. Contudo, Ademir nada responde e, após ordenar os papéis, levanta-se em sentido da porta. Abrindo-a e voltando-se, anuncia:
- Vou dar um “giro” por lá. Até amanhã, Josuel.
- Até amanhã.
A porta é aberta e fechada com barulho. Josuel reflete. Ademir não conhece essas meninas: criadas soltas, logo se prostituem e envolvem-se com tipos suspeitos, perigosos.
- Se conselho adiantasse...
Aí o telefone toca. Josuel atende-o:
- Alô?
- Ademir está?
Pela voz dengosa, sexy, reconhece ser Vera. Responde:
- Acaba de sair. Quer deixar recado?
- Não, obrigada. Ciao!
Pela janela aberta ao lado, ele vê a noite sobre o morro, de casinhas que iluminadas, se convertem em incontáveis olhos da noite.
- Uma bonita visão.
Fala, e temeroso de que algo possa suceder ao chefe, nervoso abandona a janela.
Vera, como você está bonita! Com generosidade, sua blusa exibe o começo dos seios empinados, causadores de mil desejos. O seu short mostra as coxas alvas, grossas, cobiça de olhares... A prova disso são os dois sujeitos da mesa ao canto, que, por mis que procurem disfarçar, não despregam a atenção de nossa mesa.
Assim pensativo, ele vai ao encontro da moça, que o reconhecendo, sorri, e torna-se mais graciosa.
- Ademir, você hoje, está muito chato. Primeiro, quis saber – como se já não soubesse – se eu tinha encerrado o meu “caso” com o Júnior... E lhe respondendo que sim, que me encontro inteiramente livre, agora vem cismar de que os caras daquela mesa não desgrudam os olhos daqui, da gente.
Tomando a cerveja, ela conclui:
- Relaxa homem! Bebe a tua cerveja.
Ele aquiesce. Depois, erguendo a mão, acena ao garçom, pedindo mais bebida. Talvez Vera esteja certa. Ela lhe exerce tanta atração, que o deixa meio tolo, pensando besteiras...
A rua está movimenta. Mocinhas cruzam a calçada, indo e vindo. Sorridentes, despertam interesses à “paqueras”. Vera deve ter sido assim. Automóveis estacionam. Abandonando-os, casais adentram no terraço grande, que é no que se constitui o bar. Na sala conjugada, o conjunto ensaia as primeiras notas. A noite adianta-se ao encontro da madrugada. Mas, aqueles homens... Bebe nervoso. A jovem lhe sorri, num convite ao pecado. Ah, Vera!
Madrugada.
Impulsionado pelo desejo, Ademir indaga:
- Vamos?
O motel os espera. Ah, Vera, você com esse corpo, essa feminilidade... Deixa-me mais louco mais homem!
- Vamos, Ademir.
Ele então ao garçom que se avizinha:
- Some a despesa, por favor.
Através dos olhos, novamente os homens se comunicam e, o negro, acena ao garçom, enquanto o inocente casal afasta-se.
De repente, o grito:
- Entra no carro! A moça fica.
Perplexo Ademir mal consegue falar:
- Mas... Isso deve seu um engano.
- Entra porra!
Aí sendo empurrado, ele cai dentro do carro. E o negro também adentra. Ficando assim Ademir entre esse e o brancoso, à direção.
- Toca pra frente, Branquinho!
Ordena o Negrão ao motorista que, acelerando o auto, ganha a avenida deserta.
Na calçada, a moça como se fosse estátua da própria dor, conserva-se imóvel, confusa e, com os olhos embaçados pelas lágrimas, busca acompanhar o veículo que se deliu nas trevas cúmplices, perde-se na distancia.
Por que fizeram isso com Ademir? Terá sido a mando do Júnior? Devagar, retorna a caminhar. Para onde ir? Sem saber, limita-se a andar, como uma sonâmbula.
D. Ivone:
- Você viu? Quando o Ademir saiu com a sujeitinha, os caras foram atrás, e pegaram ele!
- Bem que a senhora disse que iria dar em coisa.
Aí, indaga:
-A senhora quer que eu avise à polícia?
A mulher desperta das reflexões:
- Você endoidou? Se tivesse acontecido uma briga, um tiroteio... Deixa pra lá, criatura! Melhor esquecer.
Então reentregando-se ao presente, já dinâmica:
- Vamos trabalhar, para ter, quando precisar.
- Falou e disse D. Ivone.
- Menino, trabalhe sem “liberdades!”.
Sem retrucar, o rapaz com humildade baixa a cabeça e, apressado, afasta-se.
Artífice do trivial, Paulo Valença transforma os pequenos detalhes do cotidiano em verdadeiras pérolas. Já se dizia que o poeta é aquele que consegue ver o jardim pelas festas do muro de pesadas pedras. Há de lhe correr mais do que sangue nas veias. Há de lhe correr mais do que frases de efeito em suas tramas corriqueiras.
Porque o escritor, se não tiver o olhar do poeta, jamais conseguirá emprestar ao banal – e, justamente, por ser banal, é imperceptível aos demais – a beleza, a poeticidade e a estranheza desses pequenos detalhes inerentes à vida de todos nós.
Só a sensibilidade aguçada e extremamente perspicaz de um escritor-poeta do calibre de Paulo Valença pode desvendar os segredos da simplicidade de nossas ações e sonhos.
Porque ele vai, sem medo, até o muro e, pela fresta consegue abarcar com os olhos o jardim. O imenso, perfumado, colorido, intenso e, por vezes, trágico jardim que quase ninguém mais vê.
(Antologia Escolar “Sinfonia Falada Opus 2, contos escolhidos”, Via 7 Editorial, Itapetininga, 2003).
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