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A PROFECIA DE PIRAPORA DO BOM JESUS
Viegas Fernandes da Costa

A PROFECIA DE PIRAPORA DO BOM JESUS

por Viegas Fernandes da Costa

Zé Pedro, Pedra, romeiro, pagava promessa prometida ainda no sertão: o filho que veio e que vingara comendo fé e farinha. Pois então, Zé Pedro é este que vemos descalço e maltrapilho trilhando o asfalto à beira do Tietê. Busca Pirapora do Bom Jesus, cidade de solo santo, destino da peregrinação.
Caminha lento sob o Sol, caminha feliz! Mais de cinqüenta quilômetros desde São Paulo, onde largou do ônibus.
Ainda no sertão lhe falara a aparição d’outro Zé, o José de Almeida Naves, que lá pelos idos de 1725 encontrou sobre uma pedra, na beirada do rio, ali onde agora é a Fonte do Encontro, e onde este nosso Zé Peregrino, Pedra, pretende lavar os pés, a imagem do Senhor Bom Jesus. Imagem milagreira como reza a tradição: enfrentou o fogo sem se queimar e fez surdo-mudo falar, conta o povo e a história do lugar. Mas disto não sabia Zé Romeiro até então. Sabia apenas o que aquele Zé Naves lhe segredara em noite de lua, calor e medo: “presta atenção, vai para Pirapora, agradece teu filho e batiza o nome dele na fonte do Encontro. Mas vai no dia em que o céu será terra, e a terra céu será!” “Não entendo!” – balbuciou Zé Pedro, feliz por ser pai. “Entenderás! Mas vai, lá onde encontrei a imagem do Bom Jesus. Lá onda a água não se pode beber. Vai.”
E Zé Pedro foi! Foi porque tinha fé. Foi porque prometeu que ia agradecer o filho vivo. Foi porque a Aparição mandou ir.
Nada sabia da cidade. Pediu informação. Contaram-lhe dos milagres, como aquele do carro de bois. Queriam tirar a imagem do lugar, botaram no carro e tomaram a estrada. Na curva os bois pararam num sem jeito de continuar a viagem. Foi quando o surdo-mudo apareceu e disse, com fala possível de se ouvir, para devolver o Bom Jesus ao lugar em que escolhera ficar. E assim se fez: os bois voltaram, a imagem também e um homem aprendeu a falar. Zé Pedro, peregrino, pensa se não é esta estrada que tocam seus pés descalços a mesma em que pararam os bois naquele tempo distante. Será? Asfaltada, a rodovia dos romeiros, como lhe explicaram os da romaria em que tomara carona naquele dia: o dia da profecia? Como saber? “Entenderás” – falou novamente a voz do José Naves. Não entende nada ainda, mas os pés mandaram ir, o dinheiro guardado para a passagem, e então foi, e está ali, feliz, o Sol quente tisnando o lombo mal coberto pela camisa.
Chegou cansado quando o dia já bocejava de sono. Viu a praça, a fonte, sentiu uma coisa estranha dentro de si, e foi mergulhar os pés na água santa. Mas como cheirava mal aquela água do Tietê! Lembrava a catinga do gado que apodrecia no sertão.
Lá na fonte rezou, agradeceu, lembrou o filho vivo, lembrou a mulher seca como um pau seco, mas bonita aos seus olhos de Zé Pedro. Depois foi até a igreja, bonita, não como a igrejinha tapera da sua terra, de barro, mas de pedra, pintada, telhada, iluminada. Como se sentiu pequeno naquela igreja! E depois saiu para a noite que vinha chegando.
Na praça um banco que acolheu seu corpo. Dormiu encolhido, pois para este Zé do sertão fazia frio naquela noite em Pirapora. E no sono lembrou-se então da profecia, do céu que vira terra, da terra que vira céu. A voz do José Naves martelando em sua cabeça, mandando abrir os olhos, entender. E viu então: as nuvens baixas, cobrindo o chão, cobrindo a praça, cobrindo o banco, cobrindo seu corpo de peregrino. Não sabia que nuvem cheirava mal. Achava que nuvem fosse doce como algodão doce. Mas aquelas nuvens, daquele céu de profecia, cheiravam mal. Cheiravam mal e faziam arder os olhos. E foi com os olhos ardendo que começou a andar sem ver nada além das nuvens. E foi andando que encontrou o Tietê, fétido Tietê. E o Tietê o abraçou. Abraçou e levou embora.

XX

Lá no sertão uma televisão ligada à bateria entretém pequena multidão. Há, lá no canto, uma mulher seca como um pau seco, como as outras mulheres secas diante da televisão. A mulher seca como um pau seco traz ao colo pequeno menino adormecido. De repente a cena curiosa narrada pelo repórter: “espuma de poluição do rio Tietê, com cinco metros de altura, invade a cidade de Pirapora do Bom Jesus durante a madrugada”.
A mulher seca como um pau seco reconhece o nome da cidade: “meu Zé Pedro tá lá”.
E ela achou aquela espuma parecida com as nuvens. E ela achou tudo aquilo muito bonito. E ficou feliz, porque quando voltasse, Zé Pedro ia contar como é tocar o céu.


Biografia:
Viegas Fernandes da Costa (Blumenau, 1977): escritor e historiador. Autor de "Sob a luz do farol" (Ed. Hemisfério Sul, 2005).
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