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O gesto do perdão
A mão que afaga
Paulo Valença

Resumo:
A mão da idosa Suzete se estende sobre a cabeça branca do enfermo, o marido Osair, acariciando-a e, nesse gesto, há o perdão pelo muito que ele lhe causou de sofrimento...

1
Grande, moreno fechado, reclama de tudo aos gritos:
- Suzete já mandou ajeitar a bainha da calça nova?
A mãe morena, de rosto de traços corretos, pálida, responde com a voz trêmula:
- Ainda não porque...
Nervoso, o homem não lhe permite que conclua o que deseja esclarecer:
- Você é muito displicente. Desligada de tudo!
Volta-se e percebe o menino próximo, mudo pela cena, trêmulo, medroso:
- E esse amarelinho por que não foi pra escola?
A mulher busca defender o filho:
- Hoje é feriado...
O homem abotoa o cinturão no corpo cheio, forte, e encaminha-se a porta da sala, ausentando-se.
- Tudo aqui nessa casa é desorganizado. Tenho de ficar controlando, controlando. Porra!
Bate a porta com força, para abrir a outra, do carro, no oitão da residência, e ganhar a rua, descendo-a, em sentido da avenida transversal um pouco adiante, a fim de iniciar o dia como taxista.
A zoada dos pneus velozes. O choro da mãe, no sofá, na resignação de vencida pela existência árdua, grosseira, enquanto o menino tudo vê, entende. Sofre.
As lágrimas nas faces morenas. Os cabelos lisos, negros, compridos. As mãos bonitas de dedos longos. Os soluços baixinhos... Por que a mamãe é tratada assim aos gritos, pelo homem grande? Ah, se fosse também grande, parrudo, queria ver seu Osair tratar a mamãe como trata! É mas um dia... Também será um homem grande, fortão! Devagarzinho deixa a sala, indo para o quintal, à procura de se distrair, esquecer o que mais uma vez presenciou. Entende.

2
- Seu pai morreu e vivo com o Osair.
Sim, ele não é seu pai não...
A confissão um dia. E ele, então, realista:
- Por isso que ele grita com a gente. Por quer a senhora também não grita com ele mamãe?
O abraço que o aproxima do corpo quente, e o silêncio como resposta, seguido das lágrimas, que lhe caem na face esquerda.
A seguir, ouve a voz baixinha, cansada:
- Vá brincar por aí, Luis.
Um dia, você entenderá tudo. Aprenderá com a vida. Vá brincar.

3
Dirige.
A Praça de Beberibe. As lojas comercias. O posto de gasolina à esquina. Os supermercados. Colegiais que se encaminham ao Colégio Pedro Celso, próximo. O sol que esquenta. A manhã que passa. Automóveis que se cruzam, com motos, bicicletas. Pedestres nas calçadas laterais, apressados. Tudo na rotina que se inicia do novo dia, no bairro populoso, agitado.
Estaciona o carro defronte ao “Mercado do Galego” e, saltando, se encosta à porta direita, no aguardo do próximo passageiro, pois, à semelhança do padastro, é também taxista.
Logo, escuta a indagação conhecida:
- Desocupado Luis?
Voltando-se e reconhecendo o rosto gordo do negro, responde sorrindo:
- Tou sim, seu Geraldo.
Então abre a porta traseira do táxi e em gestos rápidos põe os pacotes do carrinho-de-mão empurrado pela mulher muda, que ganha gorjetas assim conduzindo os carrinhos com a feira dos fregueses do mercado.
- Calor danado, meu!
- Tá mesmo, seu Geraldo. Vamos?
O carrinho é restaurado ao mercado pela mulher branca,   magra, envelhecida e o táxi parte. Veloz, aproveitando ainda o pouco movimento do dia.
- Mas, meu camarada, a inflação tá voltando...
- Pois é, seu Geraldo. E o pobre que se lasque!
O sol esquenta. A vida continua em tudo.
O carro avança.

4
O velho na cadeira de rodas, junto à janela que exibe os telhados das residências circunvizinhas. Os quintais. As árvores. Um ou outro morador cruzando-os. Um cachorro latindo. A pipa que sobe ganha o céu de nuvens azuis, de verão. E a voz rouca, gritada, a mesma do passado, em delírio:
- Amarelinho você não quer nada com a vida!
A risada de deboche continua, a mesma de outrora:
- Suzete por que você não faz o que eu mando? Criatura displicente!
A nova risada. O rosto magro, moreno-cinzento. A cabeleira encaracolada, crescida, branca. Os braços compridos. O nariz mais chato. O tronco e as pernas longas, finas, na bermuda azul. Os olhos sem brilho. A chapa frouxa... O delírio de quem vegeta, pertence ao passado, fugitivo que é da realidade.
- Suzete cadê o seu filho, o amarelinho?
À porta do quarto, o homem maduro e a mulher idosa, calados, testemunham à cena da decadência humana.
- Cadê você Suzete?
A idosa se volta ao filho e diz compreensiva, serva da obrigação de zelar pelo enfermo:
- Luis vá trabalhar. Vou saber o que o rabugento do Osair quer agora.
Ele nada diz. Solidário ao que mais uma vez entende.
Cruza o corredor, a sala e abrindo a porta, encaminha-se ao oitão da residência, onde entra no carro e parte, para ganhar a vida de taxista, como fazia o homem grande do seu passado, aquele que hoje está velho, doente, desligado, sombra do que foi, marca da crueldade.
Entra, liga o carro e parte.
- Para que me lembrar do que me maltratou tanto?
Sorri realista e acelera, como se pudesse se ausentar do que ficou como uma chaga do passado cruel.
O táxi corta a Avenida Hildebrando de Vasconcelos.
- Suzete?
- Tou aqui. Que é que você quer Osair?
A risada e a voz forte, como se ainda fosse à do passado:
- Você mandou subir a bainha da minha calça?
- Mandei. Fique calmo. Mandei.
- Cadê o amarelinho do seu filho?
- Saiu pra praça, foi trabalhar.
- Ainda bem que ele deu pra gente, é um homem!
Ela sorri, aquiescendo. Sim, de repente há uma lucidez à mente doente do Osair. Então, o braço se ergue e a mão aberta afaga a cabeça alva, numa carícia do perdão.






Biografia:
Paulo Valença é autor paraibano premiado nacionalmente com seus livros de contos e romances; Pertence a várias Instituições Literárias; Consta de diversos sites; Vive em Recife/PE.
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