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O PACIENTE E O PSICANALISTA
Gilson Borges Corrêa

Resumo:
A difícil relação entre o paciente e o psicanalista, quando os dois fazem parte de um jogo, no qual, cada um quer levar a melhor parte. No final, uma revelação surpreendente.

O paciente e o psicanalista, ou um e outro

     Eu o esperava, organizando os arquivos no notebook. Nada era tão previsível naquela tarde, do que aguardar o paciente, via de regra, impaciente e angustiado. Uma nesga de sol se abria na vidraça que dava para os prédios posteriores à praça. Não sei porque meu olhar se detinha lá longe, naqueles prédios cinzas, de telhados sujos. Uma ou outra pomba investia pela vidraça, o que me dava certo estremecimento. Espiei na janela e quando me voltei, o vi, olhos fixos na tela, observando atento, os protocolos de sua história. Olhou-me, intrigado. Tinha olhos grandes, densos e agora, pareciam maiores. Fingi displicência e fechei o notebook, sem dar importância ao caso. Cumprimentei-o e pedi que ficasse à vontade. Poderia sentar-se na poltrona, à minha frente ou no divã, segundo sua escolha.
     _Eu vi, doutor, eu vi!
     _Você viu o quê? – caminhei em direção à escrivaninha, mantendo o controle – não há dúvidas, de que se viu alguma coisa, não pode influenciar em nada no nosso trabalho.
     _Então por que grafou o meu nome em negrito?
     Já sentado, argumentei – é apenas um registro, por que não se acomoda na poltrona? — ele nem me ouviu, ali, parado, patético.
     _Por que está preocupado, doutor? O alucinado deve ser eu, não?
     _Na verdade, Antônio, neste momento não deve haver preocupações, de parte a parte.
     _Mas o senhor está, eu vi no seu olhar quando olhava pra fora, o senhor está tenso.
     Quase levantei, mas não fazia parte da estratégia, me mostraria intranqüilo, como talvez ele quisesse. Queria que ele se acomodasse, escolhesse um lugar para ficar no mesmo nível, ou mais inferior, quem sabe, no divã. Torci as mãos na mesa, juntei os dedos em oração, fitei-o tranqüilo, quase com afeto. Ele não mexeu um músculo. Nem piscou.
     _Não devia ser assim, doutor, não devia ser mesmo! Mas o senhor é um homem como eu, não é um super-homem, um deus. Por isso, acho que não devo obedecê-lo.
     Tentei perguntar “como assim?”, mas permaneci calado, ouvindo-o, também sem mover um músculo da face, a não ser aquele movimento involuntário, próximo ao olho esquerdo, prenúncio de enxaqueca. Ele prosseguiu: _Quero ficar em pé, ou caminhar pela sala, ou fumar o meu cachimbo. Sei que o senhor detesta o cheiro do cachimbo e quem gosta, não é mesmo? Minha mulher detesta, os meus empregados suportam. É tudo uma questão de hierarquia. Mas aqui, quebramos a hierarquia. O senhor desceu do pedestal, hoje, pra mim.
     _Parece que você evita falar de si, não quer se enxergar mais intimamente, e por isso, prefere falar de mim. Há alguma coisa que o impede, que o incomoda, não é mesmo?
     _E quem é o senhor para saber o que me incomoda? Quem é o senhor, o todo poderoso, para saber como devo pensar, falar, agir. Por favor, Antônio, sente aqui, ou melhor, Antônio, escolha a cadeira, a poltrona ou o divã, o que preferir. É tudo tática, estratégia, tudo planejado, pensa que não sei?
     _Eu não sei o que o perturba, é você quem revela. Apenas o induzo a encontrar caminhos.
     _Pra quê? Quer me dizer? Para seguir o senso comum, que o senhor proclama? Quer me padronizar, me engessar , me transformar num clone de todo o mundo?
     _Você está dizendo o que imagina ser o meu objetivo. Talvez seja isso que você no fundo deseja – a minha experiência de psicanalista não servia muito naquele momento. De todo modo, prossegui, enfático — você não quer ser diferente, porque a diferença é cruel.
     _O senhor viu o que está fazendo? Está tirando conclusões para que eu concorde com o senhor e tudo volta à normalidade. Mas eu – e batia no peito, um som surdo, que me assustou — eu tenho dignidade. Eu sei o que é melhor pra mim! Além disso, depois do que fez, ainda quer que eu obedeça!?
     _Não se trata de obediência, Antonio, você sabe muito bem disto. Acho que não precisamos começar como se fosse a primeira sessão. Não vai exigir que eu enuncie os objetivos que traçamos juntos.
     _Traçamos juntos, péra aí, doutor – ele se aproximou, calcando os punhos cerrados na mesa, os olhos emoldurados pelas sobrancelhas espessas, o olhar intenso, carregado – o senhor criou a trajetória do inicio ao fim, se houver um fim algum dia, o senhor analisou as minhas fraquezas, examinou meus pontos falhos, fez um dossiê a meu respeito e finalmente me deixou a vontade, para que eu contasse tudo, tudo que escondera até de mim mesmo, durante anos e anos de minha vida. O senhor armou este circo e agora diz que planejamos juntos!?
     _Você acha que devo dizer alguma coisa, Antonio?
     _ É mais uma tática doutor? É uma daquelas teorias fajutas que utilizou para me comandar, me subjugar, me transformar num verme e depois esmigalhar no solo e se afastar limpando os sapatos, com raiva? É este o seu entendimento de missão cumprida?
     _Por favor, Antonio... — eu deveria ter evitado este “por favor, Antonio”, acabei de entrar no seu jogo, mostrei-me fragilizado ante aquele desvario descompassado. Eu que devia manter o percurso, usar a artimanha técnica para não ceder à ansiedade, acabei resvalando e caindo na vala comum em que ele se afogava. Antônio aproveitou a deixa e deu uma tacada decisiva: _Tá aí, agora confessa, que nenhuma daquelas baboseiras foi honesta. Tudo forjado, planejado, arquitetado. O senhor limpou os pés, me fez de tapete, me embrulhou numa lata de lixo. Agora quer remendar o que destroçou. Por favor, Antonio, por favor, uma pinóia! Agora, quem vai sentar no divã, é o senhor.
     _Que está dizendo? – mais uma vez, falhei. Não devia levar à serio o seu descontrole emocional. Repliquei, tentando equilibrar a luta, ou fingir que eu era apenas o juiz, ou o assessor, ou o caddie do jogo. Conhecer o campo e observar o jogador. Contemporizar: minha função.
_Estou feliz por você, Antônio, esta explosão de emoções é uma atitude saudável. Você botou pra fora, abriu seu coração: isto é que importante. Não importa, se sentado, em pé, no parapeito da janela – neste momento me interrompi, um pomba passeava rente à vidraça e dava uns grunhidos estranhos, obscenos. Meu olhar se estende para os prédios cinzas e senti um arrepio na espinha. Uma dor melancólica, de quem perdeu alguma coisa e ainda não sabe. Ou tem dúvidas.
Ele percebeu meu desvio e aproveitou: _O senhor grafou o meu nome, digitou ai, nos seus arquivos, em negrito, eu vi o adjetivo que me destinou.
Então sorri, um leve sorriso, quase um afago, e um breve aceno de cabeça. Ele discordou de meu gesto abonador. – Li e não gostei e posso lhe garantir uma coisa, só tem uma saída pra nós dois.
Quase explodi, “diga, fale de uma vez, seu idiota”, mas me contive, a tempo. Por um momento, pensei nas contas que se acumulavam, no andar desorientado de minha mulher, nas dúvidas em sua conduta e percebi que meu percurso se alongava para atrás dos prédios cinzas. Voltei para o momento preciso, e esperei que ele completasse o pensamento.
     _A sua mulher costuma aparecer no meu bairro. Ta sempre por lá, sabe que moro depois da praça, não sabe?
     Fiquei surpreso com a observação irônica. Pensei em informá-lo de que ela faz benemerências, mas não lhe devia explicações. Calei-me, um pouco inseguro e ele prosseguiu, destemperado: — Tenho uma solução para nós dois: para que ninguém saia perdendo, é preciso haver um equilíbrio. O senhor sabe das minhas necessidades, das minhas deficiências, e portanto tem um ponto a seu favor, tanto que ta ai, registrado no seu notebook. Pois bem, o senhor está em vantagem.
     _Não se trata disso, Antônio, nossa relação é profissional e as necessidades que você comenta, não significam que o seu conteúdo seja desfavorável a você e que eu as qualifique segundo a sua ótica. Como afirmo sempre, o meu julgamento é irrelevante, aliás, não é minha função. Para mim, não existe o certo nem o errado, existe o que é saudável, o que é bom pra você.
     _Vou fazer de conta, que não ouvi de novo esta papagaiada, doutor, mas seguindo o fio da meada, o bom pra mim, é o equilíbrio. É reconhecer no senhor, falhas, deficiências e fraquezas, como em mim.
     _Espere um momento – novamente me excedi. Não era de bom alvitre perder a disputa, afinal, sou um profissional — quero dizer, claro que sou falho como qualquer ser humano, mas assim, como eu não posso julgar as suas atitudes, você não deve fazer o mesmo em relação a mim.
     _Mas aí a coisa fica desequilibrada e eu saio perdendo.
     _E o que você quer que eu faça? – perguntei indignado, levantando-me da mesa. Ele sorriu, vitorioso. Deu alguns passos, dirigindo-se à esquerda da escrivaninha. Deixou de lado a poltrona ou o divã que costumeiramente ocupava. Acomodou-se placidamente na poltrona de couro.
     _Muito bem, doutor, o senhor agora está falando a minha língua. Nada de frases prontas, de expressões estudadas. O senhor se irritou e mais um pouco, estaria se atracando comigo. Não se esqueça, que tal como o senhor, eu me coloco na sua posição, no seu lugar. Sei o que pensa.
     _Não exagere, Antônio — sorri, tentando mostrar-me calmo. Ele também ria da poltrona e para minha surpresa, bateu com a mão estendida no braço da outra, em frente a sua e me convidou: — Sente aqui, doutor, vamos conversar. Prove que é igual a mim e tome o meu lugar.
     Pensei duas vezes, se deveria atender o convite ou se recusaria com superioridade profissional. Se atendesse, estaria cedendo ao capricho do paciente, e demonstraria meu fracasso. Se recusasse, corroboraria com o que ele afirmava, de que eu me sentia superior, que tinha pontos de vantagem, porque o conhecia profundamente. Aproximei-me da janela, bati na vidraça espantando a pomba que deu um vôo rasante parando na marquise da farmácia da esquina. Voltei-me para ele e seu sorriso vencedor me apavorava.
     _Então doutor, vai sentar aqui ou não vai? Está com medo de ser analisado?
     Não resisti ao desafio. Mexi nuns papéis sobre a mesa, abri o notebook, ouvindo a observação dele “vai dar mais uma olhadinha pra lembrar do meu perfil?”. Não respondi a provocação e sentei a sua frente. Antônio parecia imenso, as pernas esticadas à vontade, os pés acomodados para os lados, mostrando descuido com os sapatos.
     _E aí, doutor, não vai dizer como é que se sente?
     Eu diria que me sentia pequeno, ínfimo, quase humilhado, mas apenas perguntei: — Você se sente à vontade aí, na minha cadeira?
     _Muito bem, doutor, muito bem. Não sabia que era tão confortável. Parece até que a visão que se tem aqui é do alto, o senhor não acha? Ah, não acha, não. Faz parte da estratégia terapêutica, não é mesmo? Mas não vem ao caso. Agora quero que fale.
     _Falar o quê?
     _Não sei, deve ter muito a dizer. Como eu.
     _Você é que precisa dizer o que sente, sentado na minha cadeira.
     _Outra vez, minha cadeira, o senhor nem percebe, não é mesmo? Mas o senhor enche a boca para dizer que a cadeira é sua! E porque ela é sua? Para resguardar a sua integridade, a hierarquia, para representar quem tem o poder. Viu, aí não tem equilíbrio.
     _Então, você precisa da minha verdade, é isso – afinei os sentidos, talvez procurasse também o tal equilíbrio que ele tanto queria, para não ceder de uma vez por todas. Assim, me colocava no lugar dele, para atingir meus objetivos. Parece que ele já fazia isso, literalmente.
     _Acho que você tem razão, Antonio. O adjetivo era apenas uma observação eventual, talvez você não compreenda, mas eu preciso de certos sinais, características para identificar os pacientes. Não significava muita coisa, a não ser que precisava atentar além do que você dizia.
     _Monótono. O senhor digitou monótono ao lado do meu nome.
     _É verdade. Quando você falava, armava um rosário de lamentações inúteis, que usava apenas como conteúdo de fuga e não acrescentava nada. Estas lamentações eu rejeitava.
     _Como?
     _Pensando noutras coisas.
     _Por exemplo?
     _Nas contas para pagar.
     _Que mais?
     _Problemas do dia a dia.
     _Que problemas?
     _Problemas pessoais, como o de todo mundo.
     _Sim, mas porque não revela os seus. O senhor sabe tudo sobre mim, sabe até que tenho o hábito de evacuar com a porta aberta. Pois bem, se posso evacuar com a porta aberta e me conformar com isso, não precisando fechar a porta apenas para agradar os outros, o senhor deve ter um problema que posso também examinar para induzi-lo a não se sentir abalado com ele. Quem sabe assim, parar de dormir, quando um paciente fala!
     _Dormir? Eu nunca... — Não, não, não diga isso. O senhor dormiu, quando eu estava no divã e abri os olhos e o vi, cabeça tombada no queixo. O senhor quase roncava.
     _Uma vez só, uma vez...
     _Ou então, o senhor se esforçava em evitar o bocejo quando eu discorria sobre a minha insossa vida profissional. Ou sobre o cachorro da vizinha que invade o elevador toda vez que saio de meu apartamento, ou sobre o... deixa pra lá. O senhor ficava quieto que nem rato em guampa, então eu me dava conta.
     _Rato em guampa?
     _É, o bicho fica quieto, à espreita, fingindo de morto, só esperando uma brecha pra sair. O senhor ouvia, mas não ouvia, tá entendendo? – faz um gesto girando a mão em concha ao lado do ouvido esquerdo, com o indicador e o polegar alongados, em uníssono.
Pergunto, acuado: _Então?
     _É a sua vez, para eu sair do prejuízo. Fale alguma coisa.
_Você já me acusou que eu dormi, enquanto falava, que eu fico quieto me fazendo de morto, você apontou as minhas falhas.
_Quero que você mesmo as aponte. Aí é que tá o retorno.
_Está bem, eu tenho uma fraqueza — não pensei em mais nada, atabalhoado, discursei vigoroso, quase uma vingança — sabe aquela vez que você mencionou o seu relacionamento nada convencional com sua mulher? Pois eu a imaginava naquele furor que você descrevia, aquele verdadeiro tornado que dificultava as suas noites, mas que me deliciava os pensamentos! Sabe quantas vezes eu a tive em meus braços, nas duchas demoradas em que me lambuzei, quantas vezes eu transei com ela em meus sonhos? Pois sempre que você falava nela eu desfrutava cada cena que você rechaçava, com vigor, com explosão, com quase orgasmo! Era isso que você queria saber, Antônio? Era esta falha de comportamento? Está satisfeito agora, você me venceu!
_Não, eu to aliviado, doutor, porque eu também tenho uma revelação para fazer ao senhor, mas agora, nada de estratégia, de objetivo, de ficar quites. Uma conversa de homem pra homem!
_Do que se trata Antônio?
_Cada vez que o senhor comia a minha mulher em sonhos, eu comia a sua de verdade!
Foi a tacada final, o arremesso definitivo, o objetivo alcançado pelos meandros do percurso, com tenacidade, planejamento e ação. Ele acertara o buraco. Literalmente. Mas houve equilíbrio. Será? Afastei-me em direção da janela e avistei os prédios cinzas, ao longe, lá atrás. Uma pomba obscena beliscou meu olhar.

     
     


Biografia:
Bibliotecário e escritor. Literatura é respirar com sofreguidão a vida, nutrindo-a de sentido.
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