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As vírgulas de Antônia
Gilson Borges Corrêa

Resumo:
(Crônica que tenta metaforizar o nosso relacionamento com o mundo e o outro, alicerçado em apreender as coisas simples, para viver intensamente. Para tanto, lembramos das vírgulas, como ponto de intercalações e de encontros. No curso Capacitação e Gestão da Qualidade em Bibliotecas, cujo módulo Representação Descritiva pelo AACR2 , tivemos a honra de ter como ministrante a Profa. Antônia Motta de Castro Memória, as vírgulas foram “contestadas” em tom espirituoso, em vista do sentido gramatical, nada que devesse ser revisto, porque estavam em absoluto acordo com as regras do código. Mas a tal “discussão” das vírgulas me levou a imaginar esta crônica.)


Para que servem as vírgulas. Se nos detivermos com atenção nas minúcias, observamos que há dezenas de usos, nos quais extraímos da mente, como apêndices desnecessários da linguagem, a não ser para respirarmos com mais tranqüilidade. Entretanto, gramaticalmente, poderíamos falar em intercalações, tais como as do adjunto adverbial, da conjunção, ou de expressões explicativas, bem como nos apostos ou no uso após o vocativo, e o que é mais corriqueiro, nas enumerações. E aqui elas se fazem valer, altivas, imponentes, revelando aos incautos a força de seus significados e significantes, mostrando o porquê de suas inserções.
Mas na verdade, estas funções gramaticais não despertam curiosidade em nosso discurso cotidiano, ao contrário, nem percebemos a sua localização, seu uso adequado ou indiscriminado. Via de regra, respiramos saciados, no linguajar afoito de quem, quase sempre, tem pressa absoluta. E lá vai vírgula. Ao menos que sejamos especialistas em lingüística, damos conta de suas funções e qualificamos suas determinações. A nós, pobres mortais, interessa-nos, quando muito, o conteúdo, o texto subjacente ou o ponto final. Este último, absoluto, austero, próprio, poderoso. Deixando pra trás qualquer virgula ou interrogação mais arguta. Encerrando o que nos parece enfadonho, perigoso ou impróprio. Talvez porque não nos atenhamos às indagações que a vida nos dirige e passamos o rodo de graça nos momentos mais simples, mesmo que recheados de novidades e reflexões. Queremos o ponto final e com ele outros pontos, outras procuras, outros caminhos, sempre atentos ao fim, ao “the end”, “se fini”, ao encerramento, ao fim propriamente dito para começar tudo de novo. Esta é a angústia atual do homem, o homem que consome o tempo sem viver, que reclama das horas escoarem-lhe pelas mãos, como mercúrio de termômetro quebrado. Não percebe a plenitude dos acontecimentos mais puros, mais sensíveis e íntimos de sua existência. Talvez precise parar apenas, desapegar-se dos compromissos fugazes e desnecessários (ou apenas convenientes ao padrão inspirado por uma sociedade consumista e falsa de valores) e projetar seu pensamento e todo o seu coração nas coisas mais simples e proveitosas, essenciais e menos pontuais. Quem sabe, devesse o homem absorver-se do lazer e encontrar prazer em acontecimentos simples do cotidiano, sem deixar-se levar no lodaçal poluído da mídia, padronizando mentes pelo senso comum, produzido para rotular e criar necessidades alicerçadas em valores mercadológicos. Um mundo avesso ao passo amiúde dos velhos, às mãos integradas dos que oram, à mente livre dos que param e meditam, à fragilidade dos meninos de rua, à loucura dos famintos. Talvez pessoas que não se deixem seduzir apenas pelos grandes acontecimentos, mas que extravasem seus sentimentos nos cantos dos pássaros, no grito insistente e intenso do bem-te-vi, no gorjear esquisito da alma de gato em seus contatos diários no amanhecer do dia. Talvez estas não pontuem acontecimentos transitórios, mas cultivem o sabor dos presentes que a natureza via de regra oferece a quem faz parte dela. Apenas.
Tal como as vírgulas e suas pequenas interrupções, que nos instigam a ver nas palavras, mais do que seus signos representam, mas desvendar seus mistérios, desencadear significados, encontrar no contexto a vontade prenhe de saber, de descobrir, de vivenciar o que o outro apresenta. O que nos diz. Não apenas o ponto final, não apenas o encerramento, mas linha por linha, descrevendo cada sensação, cada matiz novo, quase tonalidade, como sons musicais e cores tingindo o mundo diverso que se apresenta no texto.
Quem sabe o seu uso amoroso, delicado, exacerbado como uma paixão fulminante e arrebatadora. As vírgulas de Antonia. Assim ela veste as palavras e anotações e títulos e autores e as remete ao contexto, bem como ao leitor do produto que está acessando. Ela gosta das vírgulas, mas gosta mais ainda dos acessos, das maneiras sutis de informar, do jeito delicado e suave de integrá-las ao contexto, usando e abusando de suas qualificações, sentindo-as como parte integrante da amostra, sem restrição, mas ampliando o conhecimento da informação.
Talvez mostrem o seu frisar a vida com calma e cuidado, o seu passar cauteloso e preciso, alcançando a plenitude do encontro, da interação com o outro, muito mais do que simples considerações técnicas. Para que servem as vírgulas de Antônia? Para chamar a atenção, para mesclar sentimentos, para adocicar as regras. Tal como o cajado sonhado do Caminho de Santiago de Compostela, ela as usa como efeito agregador e até enfeite. Um adorno útil no caminho que vira ponte. Um sorriso aqui, um piada ali, um caso do passado e a história se desenrola recheada de vírgulas, sem pontos, a não ser reticências para um novo recomeço. Sem ponto final, somente vírgulas. As vírgulas de Antônia.
Que importam os apostos, vocativos, advérbios? São as vírgulas que absorvem delicadamente o grande mundo da informação e o fazem com cuidado, esmero, atenção. Afinal, as vírgulas estão aí, para as pequenas coisas, separando e juntando acessos, intercalando assuntos, mesclando títulos, identificando autores. São as vírgulas de Antonia. Não pontos finais. Pontos? Só os de acesso.


Biografia:
Bibliotecário e escritor. Literatura é respirar com sofreguidão a vida, nutrindo-a de sentido.
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