Minha busca por Deus, depois que matei toda minha família, concentrou-se na música de Bach. Bem antes, eu já tinha entrado em milhões de êxtases, em isolamento absoluto do mundo, mas não com a mesma sensação que tive ao degolar meus pais e incendiar os olhos dos meus irmãos gêmeos. Bach já me propiciava um intercâmbio com esferas celestiais, uma leveza imaterial imprópria às palavras, mas não antes de eu guardar corpos humanos em corpos de porcos. O Evangelista descreve o suplício do mártir, o mártir apresenta seu plano aos homens, as vozes do coral derramam sobre a terra milhões de cacos de diamantes, capazes de salvar o próprio Inferno. Mas nada disso teve sentido, para mim, antes de inundar um bloco de concreto com o cérebro e todos os líquidos da minha irmãzinha de dois anos e sete meses. Nada foi irracional nesses interlúdios. Estou aqui para explicar um a um.
Arturo Gouveia (trecho de um conto contido no livro "A literatura no sétimo círculo")
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