Nunca havia me sentido tão sozinha, tão excluída. Não pelos outros, mas por mim mesma. Já não queria mais a companhia de pessoas que somente falavam sobre homens e programas chatos da televisão, e que somente saíam para os mesmos lugares, seguindo a convenção da massa. Não queria mais ser hipócrita e continuar fazendo de meus sorrisos, atos de demonstração do meu interesse pelo assunto da roda. Achava tudo isso muito banal, não conseguia manter limites por dentro. Queria estar com pessoas que se arriscam, que fazem descobertas e que não vivem sempre o mesmo. Cheguei a pensar que o melhor seria ficar em casa, ao som do Bob Dylan, pois pelo menos suas letras me faziam refletir, do mesmo modo como o acorde do seu violão, o som estridente da sua harmônica, mais sua voz rouca e desafinada, me alegravam ao ponto de viver outra realidade. Como encontrar pessoas com aspirações iguais às minhas, que de fato me acrescentassem algo? Alguma psicóloga diria: “você tem que sair mais, se socializar!” O problema era o gostar de movimento. Gostava de observar e sentir o agito das pessoas, de sentir o calor do tempo, de confundir as luzes dos prédios com o brilho das estrelas. O clima que paira sobre a rua, sempre exerceu um poder sobre mim. Talvez soubesse os lugares correspondentes, mas e a coragem para chegar sozinha? Queria falar de rock, de criação, revolução, mas não tinha atitude suficiente para isso. Já demonstrava sintomas de desânimo. Precisava com urgência me encontrar, e Jundiaí, definitivamente, não era o melhor local.
Entretanto, algo inesperado estava por vir. Em fevereiro saiu meu último resultado dos vestibulares, havia passado na Federal de Santa Catarina. Essa foi a notícia que me animou. Não sabia muito sobre Florianópolis, mas dava risada por nada, só de pensar que poderia me mudar para lá. Como seria seguir um caminho nunca antes pisado por mim? Seria como um amanhã, o amanhã a gente nunca sabe, ele é desconhecido. Peguei-me cantarolando uma letra do Bob Dylan: “when you got nothing, you got nothig to lose”, e sem mais receios, quis provar o desconhecido, o impreciso. Pensar nessa que seria a minha mais nova cidade, me trazia uma sensação de liberdade. Era o que eu precisava, mudança. Mudança de ar, de gente, lugares. Era bem aquela letra, poderia ser invisível, começar tudo novo, ser quem eu queria ser, sem dissimulações. Mal podia esperar para ter meu próprio espaço, ter minhas próprias responsabilidades. Sinceramente? Os estudos estavam em segundo plano. Minhas determinações eram outras, estava interessada em me aventurar, isso sim. Enfim, queria viver!
Atirei-me a Florianópolis e ela recebeu-me de braços abertos. Logo na rodoviária, é notável a mistura de raças e culturas. Seguindo em direção à saída, fui observando: uns de terno e gravata com apenas uma maleta na mão, outros segurando uma bolsa e carregando aquelas mochilas enormes nas costas. Uns falando “tu” direto, meio corridinho assim; uns falando em espanhol, outros em uma língua mais distante, com um sotaque carregado, parecendo alemão ou russo. Quanta diversidade! Parecia que estava no lugar certo, onde o conservadorismo cedera um espaço para o diferente e para o inovador.
Na rua, o sol queimava e fazia a pele arder. O clima era diferente, bem marcado. O verão quente, com chuva no final da tarde e o inverno rigoroso, com ventos de cortar a pele. Em compensação, para a minha surpresa e decepção, o centro era bem parecido com o de Jundiaí. Um calçadão extenso, umas três avenidas principais, loja atrás de loja, escolas, restaurantes, tumulto. Contudo, havia uma diferença entre eles. Era a presença do Mercado Público de Florianópolis. Composto pelas alas norte e sul e um vão central, abriga cerca de 140 boxes, sendo esses, divididos entre trabalhos manuais até bares. Fiquei sabendo um tempo depois, que o imóvel foi tombado como patrimônio histórico. Realmente é intrigante observar os contrastes entre as arquiteturas, elas podem dizer sobre os tempos, são suas representantes, suas identidades. Achava destoante, porém, o prédio em si não ser muito bem conservado. Ficava incomodada ao passar pelo Mercado, um dos motivos, era a tristeza do prédio e o outro, a crueldade com os animais marinhos. Isso é um pouco irônico, por justamente gastronomia local ser um dos grandes destaques do Mercado. Não suportava sentir o cheiro de bicho morto, dos camarões e peixes fritos, era repugnante. Mesmo seguindo uma linha mais libertadora em relação aos animais, no fundo eu compreendia que tais alimentos se faziam necessário, não somente pelo comércio, mas pela própria questão geográfica e cultural da comunidade. Mas aos poucos, fui mudando meu conceito sobre o centro. Quando sentia falta de casa, o primeiro lugar que me vinha à mente era o velho e desbotado centro.
Estar em Florianópolis foi como nascer por uma segunda vez, pude ser espontânea. Não sabia sobre os vícios dela, nem ela sabia dos meus, estávamos nos conhecendo e quis me mostrar corajosa e independente. É difícil falar de um costume raiz, não se encontra muitos nativos por lá, a maioria é de cidades vizinhas, outros estados. Fiz como todos, e adotei a cidade como lar. Talvez seja por isso que, independente da individualidade de cada cultura, todos sejam tão unidos e confiantes uns nos outros. É uma gente descontraída, com jeito de domingo de manhã. Lá, é comum pegar carona na rua, ao acaso. Eu preferia caminhar. Não sabia se havia perigo, nem pensava nisso, queria mesmo era seguir. Dentro de um carro, as paisagens passam de um modo muito fugaz. Quase nada ficaria na memória. Somente caminhando para se descobrir os detalhes e intimidades de uma cidade. Era também a melhor maneira de sentir a brisa, de se respirar um ar mais leve e ver as nuvens bem nítidas e definidas no céu. Nos finais de cada tarde, as cores do mundo, em tons suaves, se misturavam e coloriam o horizonte. Era tudo tão próximo, como se o elo entre os humanos e a natureza não tivesse sido quebrado, como se houvesse um equilíbrio; trazia uma paz.
As conversas mais criativas aconteciam nos passeios à noite, geralmente voltando do Centro Integrado de Cultura (CIC), um espaço voltado para exibição de artes, em sua maioria, fora do circuito nacional. Elas eram idealistas, e por isso, sinceras ao máximo. Ficávamos, eu e algumas amigas, recapitulando as cenas mais legais do filme que tínhamos acabado de assistir. Isso exercitava meu cérebro, me deixava empolgada, queria praticar atividades diferentes, tentar alguma coisa nova, qualquer coisa. O importante era aproveitar a não expectativa e o não pré-conceito em relação a mim. Já que ninguém sabia a minha história, ninguém sabia nada, acho que o risco seria mais confortável. A trilha sonora de Encontros e desencontros não saía da minha cabeça. Achava incrível como ela se encaixava perfeitamente com as cenas. A moça do filme era fotógrafa, acabei ficando com essa mesma vontade. Tinha um espaço ao lado do Banco do Brasil que pedia uma foto. Era um gramado verde-palmeira, com uns holofotes de chão na parte da frente e algumas árvores, sem flores, de folhas grandes, na parte de trás. Sempre me imaginei tirando uma foto desse lugar. Essa foto nunca aconteceu. Esse tipo de vazio foi quase o mesmo que senti após assistir Nossa música do Godard. O que o homem controla? Qual a importância da nossa vida, que valor damos a ela? Senti-me completamente impotente.
Já no meu segundo ano por lá, peguei-me passeando sozinha, sem a presença de pessoas interessantes. Parei; refleti. Não era a primeira vez que isso me acontecia, conhecia aquela sensação. Somente então é que me dei conta, que mesmo os rostos sendo diferentes, as avenidas diferentes, no fundo, o sentimento era o mesmo. Como pude ser tão cega na época? Mas me mudar para outra cidade não significava uma nova chance, demonstrava uma fuga. Queria escapar das imperfeições do meu cotidiano e com essa viagem, descobri que se existia algum problema, esse problema era exatamente eu.
A distância foi irrelevante. Percorri uns 700 quilômetros, poderia ter sido mais, poderia ter sido menos. Enquanto minhas atitudes não fossem outras, o final seria sem surpresas. Sei que tentei, tentei durante um ano todo, estava disposta. Oportunidades não faltaram. Conheci pessoas que queria conhecer — aquelas que contribuiriam para a minha personalidade —, pude ser eu mesma; porém, ser eu mesma era não se sentir à vontade, ainda era sentir-se excluída.
Nunca quis viver em cima da navalha, nem acredito que tenha vivido. Mesmo assim, acabei sendo cortada e parece que o sangue não estanca, sempre está aqui, para me lembrar. Tais experiências continuam me influenciando. Aprendi a analisar melhor os fatos, em um sentido de olhar meu interior, me entender, me conhecer. Até então achava isso bobagem. Mas aos poucos, fui compreendendo que, de certo, defendia alguns conceitos quadrados e limitados demais, como por exemplo, querer contato somente com quem tinha o mesmo gosto que o meu. Fui crescendo, me machucando, tentando explorar o lado bom, o que me interessava nas pessoas, porque algumas são assim, as que não são expostas devem ser descobertas. Fui fazendo certas coisas sozinhas, porque às vezes não se há companhia, e ações como essas trabalhavam com minha autoestima. Sempre tento me lembrar de uma daquelas frases de agenda, mas que faz muito sentido, sobre sonhos: “se você não correr atrás dos seus sonhos, quem correrá?” É mais ou menos assim. Temos que fazer.
Agora posso falar com orgulho, que o tempo que passei na ilha foi significativo ao extremo. Minhas primeiras expectativas foram, aos poucos, sendo quebradas. Isso, em um primeiro momento, pareceu ser frustrante, porém, quando vistas de fora, não significaram nada perto do que realmente tinha acontecido comigo, do inesperado. Se tudo tivesse ocorrido como planejado, seria o final feliz, o fim das possibilidades. E o que eu teria para contar? O quão eu teria amadurecido? Tanto absorver a utilidade dessas experiências, quanto praticá-las, é um processo complexo para mim. Parece que a minha mente não se anima em achá-las essenciais, e dessa maneira, as trata de forma banal. Talvez seja um tipo de bloqueio, não sei, sei que luto contra. As experiências não podem passar assim, sem nenhum tipo de contribuição. É por esse motivo que me esforço. Compreender e agir são duas competências dolorosas, contudo, elas são meio para a felicidade.
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Texto publicado no livro “Lugares, viagens e aventuras” www.revistagriffe.blogspot.com
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