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Adeus Tâmara Isis ou um pequeno recorte sobre a existência
Encontros e desencontros na grande cidade
Mauro Antonio Guari

Adeus Tâmara Isis ou um pequeno recorte sobre a existência

     Algumas questões me aporrinhavam naquela bonita manhã de sábado, bonita mesmo, manhã de outono, ensolarada, nem frio, nem calor, se esta manhã coubesse em apenas uma palavra, seria, agradável.
     Os sentimentos que habitavam minha alma não combinavam com a beleza daquela manhã.
     Continuava morando em uma pensão – palavra forte esta, carregada de preconceito, mas onde foi possível morar, após tantas atribulações que não vem absolutamente ao caso. Também é preciso deixar claro que a “minha” pensão não era de toda má.
     Havia lá as suas regras, e regras existem em todos os lugares, que os moradores ou hóspedes, como a nossa senhoria insistia em nos chamar - existe uma diferença jurídica entra as duas palavras - seguiam ou não.
     Dá para perceber a enorme distância entre as palavras hóspede e morador? É importante saber disso, pois é exatamente esta distância que a nossa senhoria (o nome não interessa, há coisas mais bonitas e interessantes para se saber no mundo), usava quando alguém desrespeitava alguma regra.Era extamente esta distância que a senhoria invocava para punir o desrespeitador.
     Importante também é saber que alguns de nós tentava seguir tais regras, que eram básicas, sensatas, de profundo bom senso, como não fazer barulho depois das 22 horas, não usar a cozinha (antes que esqueça, a cozinha era coletiva) depois das 21 horas, não beber (álcool), não andar sem roupas, não tomar drogas, etc, etc, etc e é claro, a principal regra: pagar o aluguel em dia.
     O problema é que nem todo mundo é dotado de sensatez, então é razoável supor que, de vez em quando, alguém “saía da linha” o que obrigava nossa senhoria a tomar alguma atitude, que poderia culminar com a expulsão do hóspede mal educado (daí a necessidade de sermos tratados como hóspedes, não moradores).
     Foi numa noite, noite qualquer, dessas tantas que já vivemos, em que eu estava sentado perto da lavanderia (também era coletiva) que eu a conheci, vou tentar resumir a conversa que por si só foi bastante resumida; pode parecer um diálogo longo, mas não demorou mais que dez minutos.
     - Oi, você pode me dizer onde é a lavanderia?
     Estava eu ebsorto em meus pensamentos, creio que pensava “na morte do bezerro” como dizem por aí, levei dois sustos: um quando saí de minha inconsciência e outro quando a vi. Pequena, magrinha, muito branca, cabelos levemente tingidos de ruívo, usava uma blusinha “tomara que caia”, dava para ver seus ombros cheios de sardas, devia ter vinte e poucos anos.
     - Eu assustei você?
     - Um pouco, estava pensando e olhando as estrelas (na escada em que me encontrava, era possível).
     - Pensava em que?
     - Em nada, na vida, nada importante.
     - E a vida não é importante?
     - É, ao menos eu acho que deveria ser.
     - Estava pensando sobre o que da vida?
     - Quer saber mesmo?
     - Se perguntei...
     - Pensava numa coisa que li dia desses.
     - Que coisa?
     - Que as estrelas estão tão longe, mas tão longe da gente, que algumas delas já morreram e nós apenas conseguimos ver seu brilho viajando pelo espaço.
     - É mesmo?
     - É o que dizem, você gosta de ler?
     - Gosto de ler revistas, mas não tenho muito tempo pra isso.
     - E o que você faz?
     - Trabalho por aí.
     Não insisti, senti que estava entrando num terreno delicado.
     - E você o que faz?
     - Dou aulas.
     - Mesmo? De que?
     - Filosofia.
     - Aquela matéria chata?
     - É, aquela matéria chata. Mas foi num livro de Filosofia que descobri sobre as estrelas mortas.
     - Que legal.
     - Legal? Como legal?
     - Legal, coisa boa de saber. É legal saber que Deus deixou que o brilho delas chegasse até nós.
     - Como é o seu nome?
     - Tâmara. Foi minha avó que me deu, não gosto muito, gosto de Isis.
     - Isis? Por quê?
     - Dizem que é nome de uma deusa e acho que combina melhor comigo; Tâmara parece nome de “mulherão” e eu sou pequena.
     Pequena e encantadora, pensei, também pensei que ela não perguntou meu nome, não quis essa intimidade.
     - Bem, a lavanderia fica lá em cima, à esquerda.
     - Tá bom, vou lavar minhas roupas, obrigada.
     - De nada, Isis.
     Essa foi a única conversa que tive com ela, mas cheguei bem perto por duas vezes: A primeira foi quando, descendo por uma rua, eu a vi dentro de um bar muito suspeito; fazendo ponto junto com outras mulheres.
     Quem diaria! A pequena e doce Isis vendia seu corpo, com seus ombros cheios de sardas; o motivo dela entrar nessa vida eu nunca soube. A segunda foi numa noite, quando passava perto do seu quarto, ouvi seu choro, a pequena Isis estava chorando, podia bater e perguntar o motivo, mas não fiz isso, apenas comprei dois chocolates e deixei em sua porta, sem nenhum bilhete.
     O tempo passou e chegou nesta radiosa manhã de sábado, de outono, em que estou profundamente chateado e ranzinza.
     É que nesta manhã eu faço aniversário, completo cinquenta anos, o que deixa a solidão maior ainda. Cinquenta anos, e a única certeza que tenho é que não viverei outros cinquenta.
     É nesta manhã perfeita, que acordo cedo e vejo que a pequena Tâmara Isis está de mudança.
     O pequeno caminhão está parado lá fora e ela carrega suas poucas coisas. Poderia ajudar, pedir seu telefone, desejar felicidades, mas não fiz nada disso, preferi, sei lá por qual motivo escrever estas linhas.
     Sorte pequena Isis, sorte.
     E quanto a mim?
     Só resta ir embora.
     Enfrente, marche!



Biografia:
Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, professor da rede estadual de ensino.
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