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O clipe do ano?
(This is America: uma provocação)
Roberto Queiroz

Às vezes uma música é só isso: uma música. Pode fazer rir, chorar, exorcizar nossos demônios, aprender com nossas derrotas e mágoas. E às vezes o que está em jogo não é a música, mas o que ela diz sobre o que estamos fazendo com o mundo e com nós mesmos. Aconteceu nas últimas semanas.

Quando eu me deparei pela primeira vez com o videoclipe de This is America, de Childish Gambino (pseudônimo musical do ator e roteirista Donald Glover) amontoado em meio a outros vídeos do youtube, pensei: "lá vem babaquice!". E tudo porque a imagem que aparecia associada ao vídeo não me remetia a nada realmente empolgante. Parecia algo do tipo "é... mais alguém reclamando de algo na terra do Tio Sam". Mas - e sempre existe um mas no mundo mágico da internet - tudo isso mudou completamente quando comecei a assistir o vídeo.

Muito mais do que a música em si (não curto o gênero a que se propõe This is America, considero-o bad boy em excesso para o meu gosto), a provocação por trás da apresentação, dos requebros e caretas, confesso, é das coisas mais corajosas que eu vi no mercado fonográfico nos últimos anos. E a América (Ah meu Deus! A América) anda merecendo um sacolejo em meio a tantas escolhas infelizes que vêm fazendo nos últimos tempos.

Os EUA elegeram Donald Trump indignados com o rumo do país. Mais: elegeram-no como uma espécie de messias ou fênix renascida das cinzas. Então que aguentem os opositores!

This is America é muito mais do que um afro-americano expondo as mazelas de seu país (no caso, a dita "maior nação do planeta". Fala sério!) que vive dias de reviver tragédias e catástrofes do passado sob a ótica do "naquele tempo, sim, nós éramos felizes". E com isso, volta-se o desrespeito, o racismo ganha novo fôlego e com ele a misoginia e a homofobia, e não bastasse tudo isso a Ku Klux Klan ganha força novamente e toma seu espaço de volta pelas beiradas.

No clipe de Childish Gambino, a sociedade americana comemora, festeja, dança, pula, grita, em meio a tragédia cotidiana, ataques terroristas, fome, miséria, em suma, uma catarse surrealista. Porém, mais do que isso, Donald Glover (seu criador) aponta também um dedo para o restante do mundo: que sociedade mundial é essa que comemora tanto em meio a tanta desgraça e tanta falta de solidariedade?

Eu sou suspeito para falar da humanidade porque nunca vi nela um desejo realmente forte de respeitar o seu semelhante. Há pouco tempo, li um livro do filósofo Luiz Felipe Pondé de nome Amor para corajosos, em que ele defendia a ideia de que o ser humano da contemporaneidade adora vender a imagem de que "amo a humanidade, mas detesto meu semelhante". Aliás, uma contradição muito bem-vinda se levarmos em consideração o que a vida se tornou: uma enorme busca pelo sucesso, pela vaidade e pelo desejo de aparecer bem na fita.

Childish/Donald expurga isso até os limites do imponderável e esfacela sua pátria-mãe a um nível nunca antes (ou, quem sabe, pouquíssimas vezes) imaginado. Enquanto boçais e vaidosos perdem tempo com aparências e com um way of life onde o que importa de fato é ser feliz e gozar a vida ao máximo, ele mostra o dia-a-dia cruel de quem tenta sobreviver à margem de elites que nunca pensaram em nada que não fosse o seu próprio umbigo e de uma geração "jovem" (o que é jovem hoje em dia? Tem tanto marmanjo de 40 anos posando de adolescente hoje em dia!) que só busca o hedonismo como modus operandi para suas existências vulgares e omissas.

Abaixo do vídeo, nos comentários, pseudo formadores de opinião digladiam-se entre elogios e ofensas ao trabalho do músico (Músico? Prefiro provocador). Nada mais normal do que isso. São tempos de redes sociais onde milhões de pessoas "socializam" com pessoas que nem conhecem na versão carne e osso. E além do mais, todo marketing - seja um xingamento ou um elogio - nessas horas é bem-vindo e pode ser distorcido a favor do criador da obra. Na terceira vez que assisti o clipe (precisei revê-lo algumas vezes, até formar uma opinião coesa) ele já tinha mais de 120 milhões de visualizações. Se, de fato, essa gente toda viu o clipe, aí meus amigos são outros quinhentos... Já dizia minha professora de estatística: "números podem sim ser inventados para gerar ênfase".

Chego ao fim dessa singela análise com uma única certeza: a humanidade regride a sua versão homo erectus em termos de amadurecimento. Vivemos numa era de fantasia onde a dor do outro, o desrespeito ao próximo não importa. Pelo menos, não se houver uma festa ou uma rave perto da sua casa. O problema mesmo começa quando a vítima da história é você. E nesse momento você quer que o mundo pare para dar atenção à sua tragédia.

Em outras palavras: não tratamos os outros como gostaríamos de ser tratados, mas como achamos que os outros merecem. E quando o assunto é merecimento, há sempre dois pesos e duas medidas.

Por mais polemizadores como Childish Gambino no mundo. Agora. O mundo anda carente de gente que discorde.


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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